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Foto do escritorJuliano Corrêa

A prótese


Você sabe o que é uma prótese, né? Colando do Wikipedia, vem do grego antigo próthesis (professor Cláudio Moreno, com quem tive aula de português no cursinho pré-vestibular, poderia dar grande ajuda aqui), que significa “adição”, “aplicação”, “acessório”. É um algo artificial que visa suprir necessidades e funções dos indivíduos, tanto internas como externas. Há uma diferença entre prótese e implante: a prótese substitui uma parte do organismo; já o implante, acrescenta volume ou função ao que já existe. Para os singelos propósitos desta crônica, essa diferença não interessa. Nós não falamos, no nosso dia a dia, “prótese de silicone” para se referir às mulheres que querem ter peitões ou simplesmente recauchutar o que já é belo? (Nem estou entrando nas situações por causa de câncer de mama ou coisas do tipo). Eu já ouvi, mais de uma vez, em situações bem peculiares, a frase: “coloquei/vou colocar prótese de silicone (no seio)”. Não era adequado eu interpelar que o correto seria “implante de silicone”, né? Ou o motivo pelo qual se vai implantar a prótese? Não sei, nem me interessa: este site não é médico, e não é do tamanho de seios que eu quero falar (agora)! Então, para nós, é prótese! Abrange tudo.

Por que? Pense comigo: a prótese é algo artificial, ou seja, não original e de fora, que serve para preencher um lugar ou uma função que a pessoa precisa ou deseja. Certo? Pode-se ter prótese, pelo que vi, por qualquer lugar do corpo! Porque qualquer coisa falta originalmente, então tem de se ter algo para fazer a função que minguou; porque o que se tinha de início quebrou, não funcionou mais, assim, tem de ser substituído; porque se tinha tudo desde sempre, mas poderia ser mais e/ou melhor, por necessidade física ou estética, não importa; porque, tendo ou não desde os primórdios, as coisas mudam junto com as nossas necessidades, e aportes externos podem se fazer indipensáveis ou desejáveis. Enfim, os motivos para se colocar uma prótese talvez sejam infindáveis. Vamos concordar, eu e você, que são todos propósitos justos, já que não temos preconceito e não somos fiscais de cú da vida alheia.

Eu acho que no futuro (e não muito distante), a prótese ficará ainda melhor que a natural. Por enquanto, não fica; porém, fica tão boa quanto em muito dos casos, dependendo do que for. Mas não é a mesma coisa. Uma prótese de perna, por exemplo, é fantástica, porque permite que a pessoa caminhe quase que normalmente, mas não é como sua perna (perdida ou nunca tida) originária. As por motivos estéticos, também seguem o mesmo caminho: algumas ficam ótimas; outras, nem tanto. Uma vez, ouvi de uma mulher que colocou prótese de silicone nos seios falando sobre a constante pergunta: “esse peito é teu?”. Queriam saber, porque era tão perfeito, se era natural ou artificial. Ela respondia: “é meu sim, eu paguei!”. Isso é interessante, e acho que vale para todos os casos, porque diz sobre uma apropriação de algo externo ao nosso corpo, o que é tão importante.

“Ah, Juliano, tá meio chato isso: eu vim aqui ver se tinha alguma coisa de psicanálise ou algum texto legal, mas que saco essa dissertação sobre prótese!”. Verdade, até porque é um assunto que eu não domino. É claro que não é disso que eu quero falar. O ponto é: o analista não funciona como uma prótese? Como sempre, eu vou me explicar.

Você sabe né, há diferentes visões da psicanálise dentro da própria psicanálise. Alguns acham isso bacana, é uma “arte”; ok, é normal nesse tipo de campo, mas às vezes vira uma maluquice. Ainda assim, parece que nesta questão, da prótese, em maior ou menor grau, talvez haja uma concordância. É a ideia de Winnicott de que o maior elogio que se pode ter de um paciente é ter sido encontrado e usado por ele. Claro, para isso nós estamos passando por cima das apresentações de casos clínicos em congressos (ou coisas do tipo) onde se mostram as incríveis intervenções e interpretações do analista; e só, nada do futuro do paciente. A gente sabe que isso é jogar para a torcida. Mas (bem) por trás disso, eu acredito que tenha esta noção do terapeuta como prótese, mesmo com as mais diferentes “linhas” da psicanálise.

Naquele livrinho sensacional, "Cartas a um jovem terapeuta", Contardo Calligaris fala algo nesse sentido, acho é que na introdução, quando dedica o livro aos seus pacientes que conseguiram abocanhar a vida com mais vontade e, aí é o importante para nós, que no melhor dos casos, esqueceram dele e até que a experiência aconteceu. Claro, nós como “próteses psicanalíticas” funcionamos um pouco diferente das próteses materiais. É que nós, também não tendo certeza do tempo de duração, estamos nos propondo a sermos descartáveis, é necessário para o sucesso da nossa proposta que sejamos. Talvez como aquelas rodinhas auxiliares que as crianças usam nas bicicletas até aprenderem a se equilibrar bem; depois disso, são descartadas para nunca mais serem usadas, já se pode pedalar por si. Ainda como as próteses que falei, nós também podemos ser substituídos se for o caso: não é sempre assim, às vezes não precisa, mas pode acontecer.

Então, temos (de ter!) um tipo de desprendimento interessante na nossa profissão, não é? Não levamos os louros por alguma melhora, não somos os responsáveis por conquistas, como ocorre em outros ofícios. Não, nós ficamos além, quase como que escondidos. Eu acho que pode ser estranho ou até angustiante esse estado de coisas quando está se iniciando, mas, a partir do momento em que começamos a entender como funciona a técnica, isso fica bem mais claro e, consequentemente, mais tranquilo (Contardo Calligaris também fala disso no livro).

Ora, que um médico se apresente (e até não o fazem muitas vezes, isso os é atribuído) como o responsável por curar alguma coisa da pessoa, não há maiores problemas: seu órgão antes doente continuará funcionando melhor; já no nosso caso, não é assim. Por que não? Nós tratamos das doenças em outro nível, né, das doenças da alma, e estas são diferentes. Em outra crônica,[1] coloquei de uma pessoa com uma neurose obsessiva continuar obsessiva após o término do tratamento: trata-se de uma apropriação de elementos que são seus. Isso vale para tudo, também para a melhora que estamos falando agora. A ideia é que a pessoa melhore (seja lá da forma que for ou o que isso signifique) por si mesmo. Não teria, provavelmente, conseguido sem a nossa valiosa ajuda, mas o que deve ficar é que é uma conquista dela. Por isso que psicanalista (e psicoterapeutas de forma geral) não dá respostas ou oferece caminhos por onde ir: se dá errado, a culpa é dele; mas, e isso é o mais importante, se dá certo, não é mérito da pessoa, é porque “a psicóloga disse”. Isso cria um ambiente altamente antiterapêutico, ou seja, a pessoa se torna dependente do processo (e da pessoa do analista). Que tipo de conquista da sua vida seria essa? Uma prótese eterna desse jeito não é nada saudável.

Nós, analistas, temos de ser uma prótese psíquica, e esta é por definição temporária. Nós nos deixamos ir, talvez seja a coisa mais bonita (e importante) do nosso trabalho. A beleza é que nós emprestamos nossa cota emocional para vivenciar com a pessoa (seja pela primeira vez, ou para repetir) cenários para que algo possa ser “consertado” ou, o que eu acho muito mais significativo, possa ter lugar o que poderia ter sido. Nossa, isso é lindo! E é difícil pra caralho! (Aqui fica um pouco mais claro porque a gente cobra caro, né? Parece que a gente não faz nada, mas imagina o que suga de energia isso!). Estamos lá porque somos necessários, assim como a prótese é: eu nunca acreditei nessa conversa de que fazer análise “é legal”. Não, é sofrido, a gente faz porque precisa. Mas precisa (do analista-prótese) por algum tempo; depois, a gente deve poder seguir com a nossa vida, pois é para isso que a psicanálise serve. A gente se trata para viver, não vive para se tratar!

É a ideia, de Winnicott de novo, do analista funcionar como um objeto transicional. O objeto transicional é essencial para um momento muito importante da vida, mas depois, ele não é esquecido ou reprimido, não há grande operação psíquica nisso, já que ele não sofre processo de luto: ele é simplesmente relegado ao limbo (tanto que podemos lembrar de nossos objetos transicionais, geralmente pela lembrança de nossos cuidadores, mas eles não têm mais significado, nem nos emocionamos com eles). O analista funciona assim, como as rodinhas da bicicleta (você tem saudade emotiva das suas, se as teve?): deixou de fazer sentido, pois não é mais imprescindível – e isso porque a pessoa está podendo, por si só, pedalar, morder a vida com mais vontade.

Dependendo de onde se olhe, esta pode ser uma visão triste do decurso psicanalítico. Não é! Não é romanceada, certamente, é realista como deve ser. Para muito além de poder ser triste, esta é a beleza da atividade do analista. Deixar de ter importância é uma das maiores provas que se pode ter de que o trabalho foi bem feito. Que há alguém por aí vivendo melhor porque servimos como prótese para aquilo que estava faltando. E que não se tem noção da profundidade de que isso foi feito.

 

 

Dezembro, 2023.





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