The Godfather, “O Poderoso Chefão” para nós, é uma obra-prima do cinema. Dirigido por Francis Ford Coppola, que também assina o roteiro juntamente com Mario Puzo (que escreveu o livro que inspirou o filme, e que também roteirizou os dois primeiros filmes do Super-Homem, ou seja, é o meu herói pessoal!), e a sublime trilha sonora de Nino Rota, além de um elenco recheado de talentos, é uma trilogia de, acho que poderia se dizer, uma tragédia familiar. Claro, essa família é da máfia, o que muda muita coisa.
Eu amo. Com todas as minhas forças! Eu sei quase todas as falas (dos três filmes!) de cor, escrevi a monografia da minha formação psicanalítica usando a trilogia (ou a expondo, ela me usando, enfim...). Não se preocupe: ainda que seja difícil para mim, eu não vou escrever aqui todos os detalhes e coisas maravilhosas que essa magnífica história nos oferece... (quem sabe, uma outra hora...). Eu vou, com muito autocontrole, focar no que quero destacar neste instante (e vou usar The Godfather né, pois tudo está ali!). Então, vou resumir.
The Godfather é, apesar de tudo, a trajetória de Michael Corleone, o caçula de Vito Corleone, chefe de uma das famílias mafiosas de Nova York na primeira parte do século passado. Como bem aparece no primeiro filme, Michael é preparado para romper os limites da família com a ilegalidade, ser, como o próprio pai lhe diz, um senador ou um governador, não um mafioso. Ainda que ele também tivesse essa ideia, acaba se voltando para os negócios da família a fim de proteger o pai. No segundo filme, ele já está estabelecido como o grande chefe da família, arrasando com todos(dessa vez eu não vou dar spoiler) os que se coloquem como obstáculos de seus objetivos ou como ameaças a ele e sua família. O terceiro filme é uma tentativa de voltar aos objetivos iniciais (a vida na legalidade) se redimindo dos seus tantos pecados. E é esta última parte (uma fala dela, na verdade) que me interessa agora e me fez escrever esta crônica.
Em uma cena, ele explica para Kay, seu ex-esposa com quem teve dois filhos (e com quem protagoniza um rompimento muito forte no segundo filme), como as coisas chegaram ao ponto em que estavam, como ele mesmo chegou ao lugar onde se encontrava. Após dar todas as justificativas (que são altamente questionáveis), ele diz: “você tem que entender, Kay, eu tinha vida completamente diferente planejada”. Nossa, que cena linda!
A justificativa de Michael parece esfarrapada. Só que ele tinha mesmo, e fortemente, outros objetivos; foi “levado” para a máfia por sentimento de proteção ao seu pai, ou seja, por razões emocionais potentes. De qualquer forma, eu acho que realmente pouco importa se suas justificativas são justas ou não. Nós temos motivos e pronto, não é assim?
Talvez você seja alguma das exceções, como eu vejo, mas eu acho que todos nós temos coisas nas nossas vidas que não saíram como o planejado. É assim que acontece. É algo que não controlamos, está além de nós, e muda o rumo da vida de verdade! É a “prova” da força do acaso em nossas vidas... Mas, mesmo eu tendo um grande apreço (para dizer o mínimo) pelo tema, esta crônica não é sobre o acaso.
O que eu fico pensando é: o que ocorre com aquilo que foi planejado? Aquilo que foi desejado, alentado, cuidado, projetado para o futuro e que, pelas mais inesperadas razões, ruiu. A vida que estava planejada para uma direção, dá uma reviravolta e assume outra (isso se der sorte de ainda ter alguma direção, acontece muito de ficar à deriva!). Assim, o meu olhar não se volta para o que foi ou para os desvios (por maiores que sejam) que tomaram lugar, mas sim para o que não foi, para o que poderia ter sido. Se você me lê com alguma frequência, já sabe desse meu interesse. Eu tenho convicção de que se sofre mais pelo futuro do pretérito composto (o que poderia ter sido) do que pelo passado (o que foi), o presente (o que é), ou mesmo o futuro (que pode vir a ser né: a certeza no “será” é mais medo ou desejo...). Não que não se sofra pelos outros tempos, absolutamente, mas é que o futuro do pretérito composto não foi, mas poderia (talvez possa ter sido planejado...). O fato de não ter sido não anula sua realidade: está aqui conosco como todos os outros tempos (psíquicos, poderíamos dizer?). Fica, se quisermos chamar assim, como um fantasma (não uma fantasia!), e fantasmas assombram.
O que estou falando é de uma vida não vivida, que talvez doa ainda mais do que uma vivida de forma desastrosa. Por que? Porque ela deixa possibilidades sem a mínima garantia de realização. É mais do que arrependimento ou mágoa, que estão baseados em eventos “palpáveis”: é um sentimento que ainda teremos de encontrar um nome para ele. Não tem nome porque é um fantasma, é virtual, muito mais difícil de apreender (ou entender, se for o caso), mas tão real quanto qualquer outra coisa e, portanto, fazendo parte decisiva dos nossos afetos.
Planos são feitos e desfeitos, muitos contra o nosso desejo, o tempo todo. Outros planos podem surgir, a vida segue (pois não existe outra alternativa), histórias podem ser construídas e histórias arruinadas permanecem fazendo de nós o que somos. Mas e aquelas vidas que ficaram em um tipo de estado de suspensão, que poderiam ter sido, ou seja, não pertencem ao que foi, nem ao que não foi, e tampouco ao que pode ser: o que acontece com elas? Onde elas ficam? Porque ninguém vai conseguir me convencer que elas não têm uma imensa importância na nossa vida “real”.
Michael Corleone pagou (será?) pelos seus pecados, teve suas perdas (e, sim, com muitos danos![1]), a maior delas, julgo eu, foi a perda da vida que não teve, que está indissociada da vida que acabou levando (e que tentou, sem sucesso, consertar no fim). Ele nunca se tratou (pudera né, não combinaria alguém naquele contexto dos filmes fazendo psicanálise), o mais perto que chegou disso foi uma confissão a um padre que seria o futuro papa (em uma das cenas mais lindas, está no terceiro filme). Fazendo um exercício bem imaginativo, se ele tivesse procurado psicoterapia, talvez as coisas pudessem ter sido diferentes.
Talvez ele pudesse “recuperar a vida não vivida”, plagiando o título do livro de Thomas Ogden, numa ideia que vem muito baseada na teoria de Winnicott. Não é viver a vida que poderia ter sido: esta passou, a chance foi perdida; não há como reviver o que já foi, imagine o que nunca se deu! Mas acaso seja possível que a vida corrente seja melhor, não apesar da que não se teve, mas justamente por causa dela, por ela estar sempre aqui, mesmo sem nunca ter existido de fato.
Julho/Agosto, 2024.
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