
Há um episódio da ótima série de comédia The Big Bang Theory, no qual Amy diz para seu namorado, o genial e maluco Sheldon, que ele tem um problema com closure, ou seja, ele não consegue deixar as coisas sem um encerramento. Passam-se, então, várias cenas muito engraçadas nas quais ela tenta reprogramar seu cérebro, colocando-o em situações que ele fica impossibilitado de encerrar determinadas tarefas. Obviamente, sua tentativa não é bem sucedida. Eu revi esse episódio dias desses, e fiquei refletindo.
Há uma infinidade de coisas que começamos e não terminamos (ou vamos até o fim), mas eu fiquei pensando mesmo em histórias. As da vida real e, mais ainda, as da ficção (e a ficção não se mistura com a vida real?).
Faz já muito tempo que eu era do tipo (conheço muita gente assim hoje) que se não estava gostando de um filme (ou de um livro, ou de uma música, etc.), simplesmente abandonava. É uma ideia do tipo: “que porra é essa? Tô achando uma merda, não vou perder meu tempo com isso”. Eu acho essa atitude totalmente justificada, não a condeno nem um pouco. Só que também já faz muito tempo que eu mudei: eu posso estar não entendendo, estar odiando um filme (ou um livro, ou uma música, etc. – não vou mais colocar isso, você entendeu meu escopo, né?), mas eu vou até o fim. Sempre. Muitas interpretações e entendimentos podem ser feitos dessas atitudes. Pode ter uma coisa moral, do tipo “se comecei, vou terminar”, que eu até acho que tenho, mas não é o principal, até porque esse princípio pode ser bastante estúpido em algumas situações para além de filmes. Têm circunstâncias que se deve pular fora sim! O motivo que me fez ser desse tipo que persevera mesmo num filme que esteja detestando pode ser resumido assim: “onde essa merda vai dar?”. Não consigo sair disso. E veja a diferença: não estou falando daquele filme que te prende para saber o fim, e aí o fim é uma bosta (como Encaixotando Helena, de 1993... é o primeiro que me vem à mente quando penso nisso – que ódio que senti no fim); não, estou me referindo ao filme que já se acha ruim no decorrer!
Recentemente, eu vi uma série que me capturou pelo nome. Já adianto que não vou falar qual é dessa vez, vou manter o mistério. Além do título, o tema me era muito caro, isso atraiu minha atenção desesperadamente. Eu li sobre, antes de a assistir. Um crítico fazia vários comentários ruins, e terminava dizendo que quem gostou de Dark (melhor série de todos os tempos), nunca deveria dar play nessa outra malfadada. Eu acreditei muito nisso, um tipo de intuição (por vezes, devemos seguir nossas intuições...), mas, mesmo assim, resolvi encarar: o título me pegou demais.
A série realmente é tudo aquilo que o crítico que li descreveu: uma merda. O público a avalia super bem, dizem que é tri emocionante e tal... Mas eu achei o drama forçado (bem forçado), as atuações, por melhores que os atores possam ser, ficam ruins, eu fiquei odiando todo mundo ali. E o mais importante, que me levou até ela, foi o pior de tudo: o nome da série não era referente ao que eu estava pensando, e o tema que eu tanto adoro é colocado de uma forma distorcida, errada mesmo, quase um insulto a uma teoria tão original. A série tem 10 episódios de uma hora cada um, ou seja, não é pouca coisa. No quarto episódio, eu já não estava mais aguentando (chegava até a passar um pouquinho o vídeo quando vinham choradeiras ou encheção de linguiça), cheguei a pensar seriamente em desistir, mas logo depois disse a mim mesmo: “não, agora eu quero ver onde essa merda vai dar”. E vi. Eu entendo o pessoal se emocionar... talvez seja só um estilo que não é pra mim. Mas eu estava mais com raiva do que emocionado. Na metade da história já era tudo claro, dava pra sacar (sem ser esperto) o que estava acontecendo, e quando tudo se revelou no décimo e último episódio, era bonitinho, mas a única coisa que eu pensava (já há alguns capítulos) era: “porra, mas como que esse filho da puta (personagem principal, que é um mala) ainda não se deu conta!”. Isso tudo além do tratamento do tema, como já disse, ser uma piada. Mesmo assim, eu fui até o fim!
Eu já disse que podem ter várias coisas envolvidas. Às vezes, parece até um tipo de briga consigo; pode ser uma punição (pela má escolha?), mas também tem ares de desafio, de não deixar algo pela metade (sabe-se lá o que se teria encontrado no fim), o que traz uma questão moral envolvida como já falei. Mesmo assim, o que mais salta para mim é uma palavra (que talvez seja a tradução educada do “onde essa merda vai dar”): curiosidade. Eu sempre fui curioso por natureza; não é necessariamente uma coisa boa, já me meteu em muitas roubadas essa tal de curiosidade. Mas aí, claro, como sempre, eu fiquei pensando no trabalho do psicanalista, porque eu acho (sempre achei) que o psicanalista é um curioso nato, tem de ser.
“Nossa, Juliano, mas então o psicanalista fica pensando ‘vamos ver onde essa merda vai dar’ em relação ao seu paciente?”. Olha só, eu sei que essa expressão é feia para os corações puros, mas se você a ver com horizontes mais abertos, a gente poderia dizer que o psicanalista pensa isso sim. Vou me explicar, como sempre.
Vamos fazer o paralelo com o que falei até aqui. O analista acha sempre super interessante tudo o que seu analisando está falando? Não! Na boa, quem disser o contrário está mentindo. Eu já tive situações (estou lembrando agora de uma bem específica – não vou expor por motivos óbvios) em que a pessoa me contava de uma coisa que ela iria fazer no fim de semana, uma coisa que eu achava muito legal, e que tinha, como está claro, continuação. Só que, sabemos como acontece, ela espontaneamente não me contou o fim da história! Na ou em sessões seguintes, falava sobre outros assuntos. Eu fiquei muito louco para perguntar: “tá, mas e aquela coisa, como foi???”. A “aquela coisa” era algo intrigante para mim, eu que queria saber o fim da daquela história. Só que aí entra a inegociável ética que temos: trabalhamos (e muito!) pela associação livre,[1] que é tão difícil, não é? É a curiosidade clínica de saber, e fazer por onde haja liberdade para isso, a história da pessoa que me confiou sua história, não a que eu, por ventura, queira ouvir. É bonito isso, né? É nesse sentido que digo “onde essa merda vai dar”, porque não é o que eu quero que aconteça, é o que... simplesmente acontece, e pelas vias imprevisíveis do analisando. Aí que está a beleza.
É claro que não estou ditando normas de como um analista deve ser por natureza. Eu realmente acho que somos todos curiosos, e também acredito, eticamente, que temos o real interesse na história que a pessoa nos conta bem para além da que a gente possa querer ouvir. É diferente da história chata que um amigo conta (e, muitas vezes, repetidamente!): chama-se atenção flutuante, o contraponto da associação livre, é assim que escutamos, ou seja, é uma escuta diferenciada (e, por isso mesmo, que é paga). Só que o mais importante que eu acho aqui é que nós queremos ver o fim da história, além de podermos ter uma participação nos caminhos dela .
Eu sei que, geralmente, acabamos não vendo: e não porque a pessoa desistiu do tratamento, pode estar tudo concluído, mas é que a vida segue né, e disso acabamos não sabendo (o que eu acho uma questão fundamental, sobre os resultados de uma análise, e que se tem praticamente zero preocupação com isso na pesquisa psicanalítica – mas isso é outro assunto). É um fim, eu diria, da história de uma relação.
Mas voltando a um propósito mais amplo, é comum, parece, termos uma dificuldade com o fim da história (é gente com o coração já seco que não tem nenhuma dificuldade com isso!). E agora não estou falando mais das histórias que a gente luta para chegar no fim (essas, damos graças a deus né!), mas daquelas que nós gostamos e que, como tudo, terminam. Uma sutil mudança de rumo que parece complementar o que falei nesta crônica.
Eu sempre fui, diferentemente de outras pessoas, alguém que gosta de ver as coisas de novo. Música é covardia falar: acho que todos fazem; mas filmes (e também livros) que eu gosto eu revejo muitas vezes, (quase) nunca canso. Aí tem aquela coisa toda que sabemos, que repetição no sentido de reprodução do mesmo não existe, quer dizer, sempre acaba se assistindo algo novo. É como ver de novo o diferente, mesmo já se sabendo o fim da história. Mas isso ainda fica em um tipo de mesmo ciclo; eu acho mais problemático (e interessante, para essa nossa discussão) quando se quer continuidade. Não é ver de novo, mas o desejo de continuar assistindo à uma história que já terminou. Isso é o clássico da repetição como conceito tão fundamental da psicanálise. Freud disse que uma das maiores dificuldades que tínhamos era abrir mão de uma satisfação. Essa vontade de sequência, que aparenta ser universal, está me nome disso, não? Certamente, é um tema muito complexo.
Então, paradoxalmente, uma crônica intitulada “O fim da história”, parece que terá continuação... E, mas paradoxal ainda, terá continuação de um texto escrito antes...
Janeiro/Fevereiro, 2025.