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Foto do escritorJuliano Corrêa

O trabalho sobre música que ninguém escreveu


Bom, esclarecimentos iniciais: em primeiro lugar, eu realmente não sei se, de fato, esse trabalho nunca foi escrito. Eu, ao menos, nuca vi ou ouvi falar, mas minha procura não foi profunda, na verdade, eu mal procurei (inclusive, se você, por acaso, souber que esse trabalho existe, por favor me avise!). Em segundo lugar, é óbvio que eu não estou (agora pelo menos...) escrevendo esse trabalho, eu estou só lamentando ele não existir (ou eu nunca ter visto).

Há pouco tempo, recebi de uma amiga muito especial uns trechos do livro de memórias de Dave Grohl, vocalista e guitarrista do Foo Fighters, ex-baterista do Nirvana, que eu nem fazia ideia que existia: O contador de histórias: memórias de vida e música. Ele escreve: “desde pequeno, sempre medi a minha vida por parâmetros musicais, não por meses ou anos. Para me lembrar de um lugar ou de uma época específicos, minha mente se guia fielmente por canções, álbuns, banda, para alguns, sabores desencadeiam reminiscências. Para outros, são imagens ou cheiros. No meu caso, são sons, tocando como uma mixtape inacabada esperando pelo momento de ser enviada”. Bonito né! Isso se conectou com uma ideia bem antiga, mas que vai sempre se atualizando, que tenho.

Eu e um grande e longevo amigo lá dos tempos de faculdade, com o qual já tive longuíssimas discussões musicais, sempre falávamos que há um trabalho (acadêmico seria, pelas nossas formações e nosso trabalho – hoje, muito mais dele) sobre música que ninguém escreveu ainda. A discussão entre nós era (e era para ser assim) bem leiga mesmo, debate entre amigos.

É que assim: eu já vi muitos trabalhos psicológicos sobre música, alguns até bem de perto, mas todos eram em outro sentido do que eu e meu amigo pensávamos. Comumente, essas produções são sobre musicoterapia, uso e benefícios da música para tratamento, principalmente com pessoas que sofrem de psicose, esse tipo de coisa. Absolutamente nada contra! Eu acho isso ótimo. É só que o que a gente pensava (e eu penso até hoje – acho que ele também, faz tempo que não falamos disso) era bem diferente.

Antes ainda, exemplo pessoal e atual (para já começar a explicar). Em 1989, o The Cure lançou aquele que muitos (eu entre eles) consideram o seu melhor disco: Disintegration. Robert Smith estava em uma crise pessoal (também porque ia fazer 30 anos! A criança...), e em relação à sua banda também: o sucesso comercial pop que estavam tendo o fazia sentir que um tipo de essência da banda havia ficado de lado. Assim, o álbum foi concebido como uma volta às origens mais góticas do grupo dos primeiros lançamentos (Seventeen Seconds, Faith e Pornography, escute: os três são ótimos!). Nossa, o disco é um primor, maravilhoso! Eu sempre adorei.

Pois hoje, esse disco (mais especificamente a faixa-título) é a trilha do meu momento atual. Por que? Não sei! Aí já está a primeira riqueza: é claro que, por vezes, temos trilha sonora da vida porque a letra diz exatamente o que estamos vivendo; porém, em muitas outras vezes, não! A música simplesmente cola ao instante por puro acaso. Às vezes, nem é uma música que gostamos, ou até nem a conhecemos direito. Ela gruda, fim de papo. Só que mais que isso, ela marca profundamente: não é só trilha sonora no sentido de “descrever” o instante, ou servir para enxugar as lágrimas ou ecoar as alegrias. Não! Ela se torna parte integrante e essencial daquela época da vida. Indistinguível, impossível de separar.

Eu sempre tive trilha sonora da minha vida. De certa forma, falei disso numa crônica recente, das músicas que ficavam importantes e eu passava tempo as ouvindo no meu walkman, e que sempre que as ouço novamente me levam “de volta”.[1] Seja por músicas que grudavam como estou falando, seja por eu mesmo ter canções na minha cabeça no momento em que coisas aconteciam (ou deixavam de acontecer). Eu sei que isso é meio estranho, pois pessoas já me disseram, quer dizer, não é algo que todo mundo faz. Essa conexão ao acaso não precisa ser com música, e nem desse jeito: pode ser com um filme, um livro, uma imagem, um cheiro, etc. O aroma e o gosto do chá e das madeleines fazem o personagem de Marcel Proust (re)viver cenas e dar início nas milhares de páginas de seu gigantesco romance Em Busca do Tempo Perdido. É disso que se trata no que estou falando da música.

A música tem o poder de (nos fazer) viajar no tempo. Literalmente! Não é ouvir aquela canção e lembrar de determinada circunstância. Não! É integralmente estar novamente naquele instante, de verdade! O ambiente físico, os contextos, as relações, os cheiros, os pensamentos, os sentimentos, tudo está ali! É como, ao ouvir tal música novamente, ter uma máquina do tempo e ser transportado para outro momento. Como disse, não só lembrar: é estar lá com todos os sentimentos verdadeiramente acontecendo.

Talvez pela característica da música, de vagar por entre subjetividades sem ter seu aspecto objetivo, concreto, tal qual Hegel postulou nos seus Cursos de Estética, que ela possa ser esse lugar mais privilegiado de superposição temporal (ainda que outros elementos funcionem também, como acabei de dizer logo acima) com uma força tremenda. O tempo deixa de existir (ou passa a existir de outra maneira talvez) quando somos capturados por essa dimensão emocional.

Claro, não é (e isso é o mais legal ainda!) algo estático; bem pelo contrário: é altamente móvel, sempre em movimento, afinal, o tempo passa.[2] Ou seja, as canções podem adquirir novas significações, ao mesmo tempo em que não perdem as suas “originais”. É uma grande suruba (no melhor dos sentidos) temporal! Então, o fato de tal música assumir outro significado ou posição afetiva não significa, de forma alguma, que perca a antiga: ambas (ou mais de duas com certeza) andam juntas (lado a lado?), podendo tranquilamente vagar entre o bom e o ruim (isso é só consequência). É sobre esse poder da música, de teletransporte afetivo através do tempo, que nenhum trabalho falou ainda.

Como sempre, eu penso na clínica psicanalítica. Já existem experiências desse tal teletransporte, que Einstein chamou de “ação fantasmagórica” (no mau sentido), na mecânica quântica, trata-se do entrelaçamento quântico. (Lembrando: eu faço uma extrapolação – ou torção, como acho que cabe bem chamar –, pois os conceitos quânticos funcionam – e muito bem – no mundo subatômico, das “coisas pequenas”; o mesmo não se dá, de maneira alguma, no mundo das “coisas grandes”, que seríamos nós, pessoas). Esse entrelaçamento fala de partículas que interagem, influenciam uma à outra, mesmo à distância, mesmo uma grande distância, mesmo à anos-luz de distância! De fato, uma só pode ser descrita completamente em função da outra, tal é o seu estado de emaranhamento. Sem nenhum contato físico de qualquer tipo: o que se faz aqui, tem influência lá. Louco né? Por isso que Einstein não concordava...

Então, o que eu penso é: não se daria o mesmo na relação transferencial? Pois eu vejo a transferência como um emaranhamento desse tipo quântico, muito mais do que a pessoa transferir sentimentos/situações do passado para a pessoa do analista. Na verdade, já faz algum tempo que eu tenho a tendência de achar essa visão, totalmente clássica, meio obsoleta: há muito mais nessa relação. E é aí que entra a música, agora já de uma forma mais elaborada: são canções psíquicas o que ouvimos (como analistas) na sessão psicanalítica. Não se trata de vasculhar o passado, o “tesouro escondido” que está sendo “transferido” para a situação atual. Trata-se sim de escutar a melodia, as dissonâncias, as notas erradas que acabam se encaixando, os tempos diferentes tocados juntos que soam estranho, mas podem fazer sentido no final. Pode até parecer a mesa coisa, entendo, mas não é,[3] há um elemento nisso tudo que modifica a maneira de ver essa relação: o acaso da composição, assim como o acaso é o fundamento da música que gruda diferentes tempos e conduz (sem querer conduzir) nossos embalos emocionais.

Dá para ver o motivo desse trabalho sobre música nunca ter sido escrito, né? Não é exatamente sobre música, é sobre transferência, sobre psicanálise, sobre a vida em si. Vai muito além. Mas acho que isso dá uma noção do poder da música: não é uma coisa qualquer, não é “uma música que tocava quando tal coisa aconteceu”; não! É muito mais que isso! Ela vira trilha sonora à força, não é um planejamento do que encaixa melhor como, por exemplo, eu faço com as músicas das minhas postagens, com significados e tal. O significado, se tiver, pois muitas vezes não tem, pode vir depois, inventado pela nossa necessidade de sentido, igual fazemos quando contamos um sonho. Fato é que entrelaça no nosso momento de vida e nunca mais se perde, ainda que se modifique: é ouvir a música e toda uma história é novamente (re)criada.

Não é questão de interpretar a música, isso eu mesmo não gosto e, na maioria dos casos acho uma grande besteira! É o que a música nos provoca, o que ela nos arremata afetivamente agora de forma inapelável e nós não temos como escapar. Não somos nós que escolhemos, ninguém escolhe, pois o acaso, se é acaso mesmo, não tem intenção, a música se apropria da nossa dor ou da nossa alegria. Qual é a sua música agora neste instante?

 

PS: Por tudo que escrevi, da “bagunça” temporal da música, fica difícil, pela primeira vez, colocar a data desta crônica, pois ela é desde sempre. Então, objetivei: coloquei a primeira vez que rascunhei este texto, e a última vez que terminei de escrever. Os escritos têm uma vida estranha e própria né...

 

 

Abril, 2023... – Agosto, 2024.



[3] Ainda que pareçam iguais, essas situações transferenciais não são o mesmo. Escrevi um texto psicanalítico que aborda essa diferença, Psicanálise Ontológica e Acaso: um prelúdio:



Eu escolhi colocar como trilha desta crônica no Instagram (veja que difícil colocar trilha na crônica meio que sobre trilhas!), dentre tantas outras que eu poderia pensar, a música do Yes. Foi muito marcante em um momento muito ruim para mim, e que depois virou uma coisa muito boa. É assim né... Mais interessante é que essa música não significava nada para mim, estava perdida em um CD de um filme que eu amo (e que também é muito importante nesse sentido de marcar!), mas eu nunca a escutava! Naquele dia, lembro bem, ela tocou ao acaso, e aí teve esse horizonte maravilhoso, triste no instante, desconhecido aberto para mim. Tudo sempre muda (ainda que Robert Smith cante no final: "nós ambos sabíamos como o fim sempre é", será que sabemos mesmo?).

Mas eu vou deixar para você, que chegou até aqui, a música que falei que está ditando a minha trilha deste instante: a faixa-título do disco do The Cure. Vou além: depois de “Disintegration”, também vou colocar o vídeo de “Pictures Of You”; não tem realmente a ver com o meu momento, mas eu sempre adorei essa música, letra e melodia, então, talvez ela tenha relação. Ou talvez, na verdade, eu só esteja querendo mostrar para você algo que eu gosto, o que está perfeito para o objetivo do meu site!






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