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Foto do escritorJuliano Corrêa

Os virtuoses


Eu toco violão. Isso tem de ser explicado. Eu tenho um ótimo e lindo violão que eu amo, cuido, mas não sou músico. Uma vez, num barzinho maravilhoso de rock no Flamengo, o Lado B, um dos poucos que existem aqui no Rio de Janeiro, aconteceu uma coisa curiosa (quando me mudei pra cá, eu tinha uma fantasia, acho que baseada na explosão do rock nacional da década de 1980, de que o Rio era uma cidade “muito rock”; não é. Nem um pouco. Nesse quesito, Porto Alegre é muito melhor). Aconteceu que, no auge da animação com a dupla que tocava um rock da mais alta qualidade, uma mulher que estava na mesa do lado me pediu licença para ir ao banheiro. Parou, encarou-me e disse: “eu te conheço? Você é músico?”. Comecei a rir, claro (será que é porque eu visto chapéu, brinco e anéis? Ou minhas unhas! Eu aprendi a tocar com as unhas da mão direita, simplesmente não consigo sem elas estarem longas, mesmo que eu use palheta...). Eu disse, rindo, para a tal mulher: “não, eu só brinco”. Ela ficou me olhando desconfiada e disse antes de sair quase me dando uma lição: “geralmente os que ficam dizendo isso são os tocam muito bem”.

Ainda que sua ideia fosse interessante, estava completamente errada quanto a mim: eu só brinco mesmo. (Eu coloco, eventualmente, vídeos no Instagram de mim tocando alguma música que gosto: ali está a prova. O que você puder ver de bom, não é talento, é treino!). Eu sempre digo, e isso é muito verdade, que qualquer música que eu toco é fácil, porque eu consigo: eu não toco bem! Não é algo natural, eu tenho de fazer muito esforço!

Eu não sei se é por isso, talvez seja mais ignorância mesmo, mas desde que comecei a tocar (tinha uns 15 anos) sempre achei que os bons músicos eram os virtuoses. Somente! Ou seja, aqueles que têm um domínio completo e impressionante da técnica de seu instrumento. Não penso mais assim há tempos, mas ainda acho o tema interessante.

Há alguns anos, eu vi uma entrevista com Stewart Copeland, baterista do Police e um virtuoso: está sempre nas mais altas posições em listas dos melhores bateristas de todos os tempos. Ele falou uma coisa intrigante: que o jazz é o refúgio dos medíocres! Nossa, eu fiquei chocado. Ainda que não seja o ritmo que acompanho e conheço, sempre aprendi que para tocar jazz tem de ser muito bom! São virtuoses (eu mesmo nunca conseguiria tocar em uma banda de jazz! Mas já disse que não sirvo de parâmetro). Então, ele continuou dizendo que o difícil era o blues (o que eu sempre achei o fácil, pois são três acordes sempre na mesma sequência!). A explicação para estas afirmações é que chamou mais ainda a minha atenção: ele disse que qualquer um que treinar 16 horas por dia faz o que um músico de jazz faz; mas com o blues você só tem aqueles três acordes para falar tudo o que sente, aí é preciso de alma, algo a mais. Não é que eu concorde exatamente com tudo isso (ele gosta de falar mal de jazz!), mas achei significativo e me fez pensar.

Seguindo com bateristas, eu sempre achava (quando admirava  os virtuosos) que Ringo era o cara mais sortudo do mundo: um baterista ruim que deu sorte de estar na maior banda de todos os tempos. “Por que achavas ele ruim?”. Era mais a comparação: para mim, baterista era (e, na boa, ainda é) John Bonham, aquela (como o próprio Stewart já disse) montanha vindo para cima do instrumento, Neil Peart, Keith Moon, esse tipo; Ringo ficava só naquela batidinha sem graça. Era o que eu pensava. Eu não sei qual é o adjetivo certo para o sentimento de olhar hoje para besteiras que falávamos aos quatro ventos cheios de si (vergonha parece não ser suficiente). Você tem isso também? Enfim, pelo menos a gente tem a oportunidade de conhecer mais, evoluir, pensar diferente (não todos!).

Eu pude compreender que a potência de John Bonham não era, claro, descer a mão na bateria (isso qualquer um faria), mas a sua técnica extrema, suas sutilezas usando o antebraço (ele era fã de James Brown e essa pegada mais soul). Já com Ringo, eu lembro de uma entrevista na qual ele falava de sua participação em “God”, música do primeiro (e maravilhoso!) álbum de John Lennon. Lennon queria um baterista que mantivesse um ritmo bem marcado, e achava Ringo o melhor do mundo nesse sentido. O que me impressionou (e só então que eu fui perceber, escute e você também perceberá, é muito legal), foi a observação que Ringo fez quanto a sua marcação: “eu não repeti nenhuma volta”. O que eu estou chamando de “volta” é a pequena frase de bateria que tem entre cada verso. É a música famosa e polêmica na qual Lennon vai cantando que não acredita em mágica, em Elvis, na Bíblia, em Reis, em Jesus, nos Beatles (para terminar dizendo que só acredita em si próprio). A “volta” que falo é após cada “não acredito”, uma pequena quebra para retornar para mais um verso. Pois Ringo faz algo diferente em todas as “voltas”. Eu achei isso sensacional!

Eu não deixei, de forma alguma, de admirar muito os notáveis em seus instrumentos, só expandi minha consideração (que, lá no fundo, eu sempre tive). Uma vez, um amigo me contou de um show de um conhecido (na época) guitarrista virtuose que ele foi: disse que quase dormiu. Diante da minha surpresa, ele explicou: tecnicamente ele era perfeito, mas a música era vazia. Quantas canções/artistas conhecemos que estão longe de serem os exímios tecnicamente, mas que têm alma, compõem coisas que nos arrebatam infinitamente? Vários artistas não têm destreza apurada, mas criam obras magnificas; não são grandes músicos? Dee Dee Ramone não sabia as notas no braço do baixo, mas foi o principal compositor dos Ramones. Ramones não é bom? Eu poderia falar muito mais, enfileirar exemplos de obras-primas que são simples, sem nenhuma inovação ou malabarismo perito, só uma mesma velha sequência de acordes, mas não vou: hoje, eu também quero ser simples assim.

O talento virtuoso certamente é bem-vindo, mas por si só não leva a lugar nenhum. Trata-se de alma, de inspiração. Não será assim em todas as outras áreas da vida? De que vale o saber técnico, várias especializações, se não temos o tato, na expressão cunhada por Ferenczi, para fazer uso? Não estou (nem poderia!) falando contra sermos experts em determinado campo, mas há algo mais intuitivo, criativo, e extremamente necessário que não pode ser aprendido. Ser “bom” em algo vai muito além do conhecimento técnico, por mais necessário que possa ser. Isso é conquistado só quando nos soltamos das amarras (externas e internas) e podemos fluir com nossa essência verdadeira, por sorte, vibrante.

 

 

Agosto/Setembro, 2023.


Esta é uma crônica na qual tranquilamente eu poderia ficar colocando vídeos para sempre para ilustrar os virtuoses e os não virtuosos, mas vou me controlar. Por isso, vou postar “só” quatro, dois de cada “tipo” que abordei.

São vídeos de músicas com grandes significados para mim; eventualmente eu penso que ainda irei escrever sobre elas, separadamente. Quem sabe? Como não sabemos do futuro objetivo, aí vão os vídeos para colocarmos som no que eu falei. Ah! Todos são ao vivo, pois aí podemos ver a emoção, a mágica acontecendo, e eu acredito essa é a melhor justificativa para o que escrevi.


Citei Oasis na crônica, então, não poderia ficar de fora. Esse documentário “Now and Then”, abrange dois shows do Oasis no seu auge, a turnê do seu segundo disco (tão bom quanto o primeiro) que os colocou como a grande banda do mundo naquele momento (eu tive a oportunidade de ver um show da turnê do terceiro álbum, um pouco depois, em São Paulo – 1998). Na época, era tão difícil conseguir estas coisas.... Eu tinha gravado em uma fita VHS (nem lembro como consegui). Hoje, eu tenho o DVD (que também já está antigo né! Há o documentário inteiro no YouTube), mas a lembrança forte é daquela época quando era difícil, eu estava no início da faculdade, 1996, tudo era tão diferente...

Aqui, é o início do show, com uma dobradinha sensacional: “The Swamp Song” seguida de “Acquiesce”. Veja (e sinta!): não há nada virtuoso, seja na composição ou na execução, mas não é extremamente contagiante?


Agora, uma apresentação de virtuoses (mas com emoção, além da qualidade insuperável). Eu adoro esta música do Rush, “Spirit Of Radio”. Só que aqui eles nos oferecem uma “introdução” assombrosa de seis minutos e meio até chegar na canção. É um deleite completo. Cada um, um exímio especialista técnico no que faz. (Destaque, claro, para Neil Peart, o baterista: ele faz com que os outros dois, Geddy Lee e Alex Lifeson pareçam músicos “normais”! Além disso, faz parecer ser fácil tocar bateria como ele, dada a naturalidade com que ele faz). Uma vez, eu quis mostrar isso para meus amigos; eles não quiseram ver: 11 minutos! (e a música começa só depois de 6 minutos). Eu, como sempre, forcei a barra. Eles, apesar de contrariados, foram ficando interessados: porra, que coisa boa isso! É maravilhoso. Se você entende de música (eu mesmo não entendo), pode ver todas as variações de tempo, tom... e eles estão, o que é o mais importante, se divertindo muito! É disso que se trata a música (e o tratamento psicanalítico, e vida) né: independentemente da virtuose, ter diversão!


Este é um momento marcante da turnê de 2001 do U2 para promover aquele é deve ser o seu terceiro melhor disco, All That You Can’t Leave Behind. O U2, como falei na primeira crônica que publiquei aqui,[1] praticamente inventou esse tipo de espetáculo. E esta cena é maravilhosa. Estão em casa, na Irlanda. Mais uma vez, é uma junção de duas canções. Eu lembro muito de ouvir a linda “All I Want Is You” no meu walkman (se você é jovem, não saberá o que é!) e também ver o clipe que me emocionava bastante. Pois na metade do vídeo (ali pelos 4m30s), eles fazem a transição para a maravilhosa “Where The Streets Have No Name”, onde Bono exaspera seus talentos vocais fazendo uma homenagem para seu pai, que tinha sido enterrado dias antes deste show. É belíssimo. Veja: essas músicas não são difíceis de tocar, são até fáceis tecnicamente falando, mas como alguém irá as executar como eles, fazendo com que as pessoas tenham esta reação emocional que vemos? Como que isso não é, como todos os vídeos que estou deixando aqui, falar com deus?



O último de tantos exemplos que escolhi (foi bem difícil pra mim!). Lembra muito a minha adolescência, quando eu ficava procurando esse show para poder assistir (uma época sem internet...), também tinha gravado esse show em VHS. O Genesis é uma banda de músicos altamente virtuosos, todos eles. Este vídeo é de um medley que eles faziam naquela turnê, emendando partes de várias músicas num ritmo alucinante e perfeito (com o maravilhoso solo de guitarra composto por Steve Hackett, e com Phil Collins literalmente estraçalhando a sua bateria e duetando com Chester Thompson; dá saudades...). Eu me delicio até hoje com isso...


PS: Até aqui há um “extra dos extras”. É exagero, mas o site é meu, então eu exagero o que eu quiser! E você escuta o que lhe convir (ou não escuta nada!). É que esta não poderia ficar de fora, é uma menção honrosa. Eu também ouvia Depeche Mode no meu walkman (lembro de estar na 8ª série). Esta música é bem especial para mim (e é daquele que eu acho o melhor disco deles, Music for the Masses). Para mim, é emocionante ver Dave Gahan levando absolutamente todo o público a fazer a mesma coreografia da música que fazia lá nos anos 1980 (veja, aos 4m40s, as pessoas já começam a balançar as mãos ao alto porque sabem o que está por vir!). É emocionante, de lavar a alma. Decida você quanto a virtuosidade destes aí... “Veja as estrelas, elas estão brilhando, tudo está bem hoje à noite...”




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