There we were, now here we are
All this confusion, nothing’s the same to me
I can’t tell you the way I feel
Because the way I feel is oh so new to me
“Columbia” – Oasis
Este é o primeiro artigo de um dos “braços” que anunciei num texto recente (CORRÊA, 2023) para estudarmos o acaso na psicanálise: o tempo. Como ressaltei no mesmo artigo, tempo e espaço, como sabemos da física, não se separam; a separação que faço é mais didática, para organização. Ambos se juntarão ao “braço” do acaso, ou seja: tudo está interligado, qualquer coisa que construirmos depende da e justifica a próxima e a anterior. Mas como, infelizmente, não podemos falar tudo ao mesmo tempo, tenho de escolher uma “ordem” (entre aspas mesmo, pois não haverá linearidade evidentemente – se você acompanhar o trajeto, entenderá como isso é óbvio).
Desta forma, para abordarmos o tempo na psicanálise, temos várias questões, todas elas muito complicadas. Ainda assim, se alguém quer falar verdadeiramente sobre o acaso na psicanálise, todas elas têm de ser enfrentados. Nós vamos começar (ou continuar...), então, pela ideia de regressão, que Freud coloca como tão essencial para a psicanálise e, dependendo de como a concebemos, pode inviabilizar a presença do acaso na psicanálise.
Quando falamos em regressão, o que entendemos? É uma volta linear no tempo? Se não é assim, como seria? Se não é linear, é justo ainda continuarmos falando em “regressão”? São perguntas que guiam este texto. Parto, obviamente, de Freud para chegar a Winnicott, passando pelas críticas de Lacan ao conceito. Não haverá respostas finais aqui (nem em nenhum outro lugar também!), mas já será preparado o campo para afirmar que o conceito de regressão, entendido de uma maneira clássica, não se sustenta e, sendo assim, uma nova forma de entendimento (e nomeação também!) se faz necessária.
A noção de regressão é bastante importante, sendo determinante na formação dos sonhos, e, por consequência, em todas as manifestações do inconsciente. Tanto que Freud (1900/1996) dedica o segundo item do histórico capítulo VII de “A interpretação de sonhos” para este conceito. Logo de início, deixa bem claro: “desprezarei por completo o fato de que o aparelho anímico em que estamos aqui interessados é-nos também conhecido sob a forma de uma preparação anatômica, e evitarei cuidadosamente a tentação de determinar essa localização psíquica como se fosse anatômica” (FREUD, 1900/1996, p. 566-567) [Grifo meu]. Ou seja, ele está falando de uma localização psíquica: não adianta procurar no cérebro os lugares que ele vai descrever, pois não é disso que se trata. Porém, o fato de Freud “desprezar por completo” a semelhança do seu desenho com o físico não quer dizer uma negação de tal semelhança. Como ainda veremos em outros artigos (da “perna” do espaço), não é nenhuma surpresa o modelo usado por Freud. Trata-se, como ele mesmo aponta, do clássico protótipo da neurofisiologia do século XIX do arco reflexo usado (ainda hoje) para explicar a circulação do influxo nervoso (NASIO, 1999). A utilização de tal modelo anatômico só confirma as influências da formação científica de Freud que se mantêm por toda a sua obra com nuances diferentes. É só olharmos seu inacabado livro “Esboço de psicanálise”, escrito já em Londres no fim de sua vida.
"O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta [no tratamento], através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades ainda não imaginadas na terapia" (FREUD, 1940/1996, p. 196) [Grifo meu].
Será que algumas pessoas não chegaram neste ponto ou, simplesmente, escolheram o ignorar, ou, ainda, resolveram interpretar que quando Freud escreve “substâncias químicas”, não era realmente isso que ele queria dizer? Voltando ao nosso tema do momento, por mais importante que seja a ressalva que o próprio faz, citada mais acima, o aparato que está sendo forjado mantém ares de concretude e ascendência de suas pesquisas fisiológicas. Enfim, como já destaquei, ainda teremos muito mais espaço para esse tipo de (importante) debate.
Especificamente para o que nos é grave agora: a ainda dominante (ao menos na mente de Freud) física newtoniana, um dos maiores marcos científicos da história da humanidade, postulava a reversibilidade temporal, ou seja: não importa a direção que se vá, para frente ou para trás, dá no mesmo. Como já disse (CORRÊA, 2023), se o nosso objetivo nessa longa série de escritos que aqui se inicia é estudar a possibilidade do acaso em si na psicanálise, a questão da reversibilidade, ou não, temporal é um dos principais pilares: se admitirmos o tempo como reversível, adeus acaso, pois estaríamos no centro de um determinismo completo (daí também a importância de abordar, como ainda irei, o que é tal “determinismo psíquico”) Como, então, Freud postula a regressão no seu “livro inaugural” da psicanálise?
Freud estabelece que o aparelho psíquico funciona em um sentido, uma direção progressiva de desenvolvimento (já que o modelo é do arco reflexo): vai de uma ponta à outra, da extremidade sensorial para a extremidade motora, passando pelas resistências provocadas pelos sistemas subsequentes (pré-consciente e consciente) ao polo inconsciente, força propulsora responsável pelos desejos formadores do sonho. Isso estaria de acordo com a flecha entrópica;[1] porém, no intuito de explicar como acontece o sonho alucinatório, Freud insere o conceito de regressão. “A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece nos sonhos alucinatórios é dizendo que a excitação se move em direção retrocedente” (FREUD, 1900/1996, p. 572). Como a extremidade motora está “adormecida” durante o sono, faz-se o caminho inverso até a extremidade sensorial, atingindo o sistema perceptivo onde o sonho ocorre de forma alucinatória. Por isso que ele escreverá, anos mais tarde, já em Londres, no derradeiro texto já citado, que “um sonho, então, é uma psicose, com todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose” (FREUD, 1940/1996 p.187). Ele ainda vai postular três tipos de regressão: tópica (pela volta aos sistemas anteriores); temporal (pelo retorno a estruturas psíquicas mais antigas) e formal (uso de métodos mais primitivos de expressão e representação). “No fundo, porém, todos esses três tipos de regressão constituem uma só e, em geral, ocorrem juntos, pois o que é mais antigo no tempo é mais primitivo na forma e, na tópica psíquica, fica mais perto da extremidade perceptiva” (FREUD, 1900/1996, p. 578) [Grifo meu].
Lacan empreendeu, no seu “Seminário 2”, uma severa crítica ao conceito de regressão em Freud, afirmando que “[...] em seu texto Freud permanece tão embaraçado com a regressão quanto um peixe com uma maçã [...]” (LACAN, 1985, p. 186). Pulando a curiosa analogia de um peixe potencialmente embaraçado com uma maçã, o que leva o genial francês a declarar a noção de regressão como desnecessária é a localização que Freud indica para a função perceptiva no desenho que apresenta no capítulo VII de “A interpretação de sonhos” (FREUD, 1900/1996). (Realmente: se olharmos com atenção o esquema arco reflexo de Freud, fica difícil entender a percepção onde ele a colocou). Lacan diz que se o sistema da percepção estivesse em uma posição mais adequada no esquema, ao invés de se encontrar diametralmente oposto ao sistema motor, sistema da descarga, a regressão não seria necessária.
"É, unicamente, por seu esquema ser feito assim que, para explicar a qualidade alucinatória da experiência do sonho, Freud tem de admitir não tanto uma regressão mas antes um sentido regrediente da circulação quantitativa que se expressa pelo processo excitação-descarga" (LACAN, 1985, p. 181) [Grifo meu].
Garcia-Roza (2000, p. 168) também questiona o funcionamento da regressão: “o complicado é explicar como uma excitação pode fazer o percurso inverso ao sensoriomotor e ‘caminhar para trás’. Como um circuito neurônico, que se dá apenas num sentido, pode operar no sentido inverso?”. O autor, então, a fim de ter um entendimento do conceito, lembra, como já ressaltei, que Freud está propondo um modelo lógico, e não mecânico; além disso, a regressão fala de uma noção muito mais descritiva da evolução desse aparelho do que explicativa (que é uma tese corrente de Garcia-Roza). Ambas justificativas são bem claras em Freud (1900/1996, p. 567): “essas analogias visam apenas a nos assistir em nossa tentativa de tornar inteligíveis as complicações do funcionamento psíquico [...]”. Mesmo assim, são delineamentos do aparelho psíquico, além das visíveis inspirações para o mesmo, que acabam tendo um efeito (em quem os estuda). E a alegação de Garcia-Roza (2000) citada acima de que se trata de um modelo lógico, não mecânico, perde bastante força, também devido à formação e aos “impulsos” científicos de Freud; é bem mais baseada em uma interpretação das concepções de Freud, não em sua letra de forma definitiva (como parece ter ficado para boa parte de nós). Isso ficará ainda mais claro em nosso desenvolvimento.
Colocado dessa maneira, mais ainda pelas questões relativas às escolhas científicas de Freud, o modelo freudiano pode se assemelhar ao padrão de reversibilidade temporal que tanto irei combater: da mesma forma que vai, volta, como uma volta no sentido de flecha do tempo mais “organizada”, como um futuro e passado estáticos, definidos, quando justamente a minha proposta é de uma “não volta”. Contudo, ambas essas ideias têm de ser analisadas e desenvolvidas bem mais a fundo. Até porque o que vemos, seja nos textos de Freud, sejam na nossa própria prática psicanalítica, é que essas “voltas”, não são reproduções, mas repetições. Mas Freud (1905a/1996) escreveu, por exemplo, da transferência como reimpressão também, e dizem que ele não usa palavras ao acaso (será mesmo?)... Tudo isso nos coloca na obrigação de termos de analisar tudo isso com muito cuidado.
A elaboração da segunda teoria do aparelho psíquico, com os irmãos em constante crise id, ego e superego, me dá a forte impressão que o impasse destacado por Lacan, assim como a questão de Garcia-Roza, expostas logo acima, poderiam se aproximar de uma resolução, pois as ilustrações de Freud (1923/1996; 1933/1996) parecem melhorar o posicionamento da função perceptiva, e, consequentemente, a operação da regressão, justamente por ser uma teoria com um foco mais dinâmico, do que tópico. Na verdade, tal melhora na ideia de regressão, ao menos dessa forma mais engessada, seria ela desaparecer! Nesse sentido, ainda que realmente não acredite que as críticas de Lacan têm as mesmas motivações que as minhas, concordamos com a sentença final: a regressão não teria razão de existir. Da minha parte, isso é porque, como a segunda teoria do aparelho psíquico pode dar uma ideia melhor, ainda que longe da ideal, não vamos tomar o tempo de forma linear. Não sei se Freud pensava assim de fato, mas suas construções deixam, indubitavelmente, essa possibilidade aberta. Não sendo linear, como o tempo é? Ainda temos um caminho muito longo para chegar nisso, mas já posso adiantar algumas coisas: o único tempo é o presente, passado e futuro também estão todos aqui, neste exato instante, acontecendo. Dessa forma, ao invés de uma “regressão”, o mais correto seria falarmos de uma passagem, afinal, se a ideia não funciona, a palavra que a nomeia também é inadequada. Mas vamos com calma.
Nenhuma reforma no sentido da regressão no sonho é feita após 1920 (como tantas outras são). Mesmo não havendo uma teoria geral mais rigorosa da regressão, e que o termo em si não seja nomeado muitas vezes durante a obra de Freud, como destacam Laplanche e Pontalis (1997), o conceito continua firme e forte até o fim. É esta continuidade que oferece elementos para não acreditarmos, ao menos piamente, num tempo newtoniano em Freud ou, ao menos (é o que vou fazer), que possamos depreender disso outro tipo de entendimento.
Como já podemos saber, a regressão não se restringe somente aos sonhos, estendendo-se por quaisquer processos psíquicos, patológicos ou normais. “A rememoração deliberada e outros processos constitutivos de nosso pensamento normal envolvem um movimento retrocedente do aparelho psíquico, retornando de um ato complexo de representação para a matéria-prima dos traços subjacentes” (FREUD, 1900/1996, p. 573). Ainda que complete essa observação apontando que na vida de vigília a regressão nunca vai para além das imagens mnêmicas, temos uma informação muito importante. Ora, o especial interesse de Freud no sonho, além de ser o principal caminho que leva ao inconsciente, é que este trazia grande vantagem sobre o seu outro grande campo de pesquisa inicial, a histeria: o sonho é comum a todos e serve como base tanto para o funcionamento neurótico, como para o normal (MEZAN, 2006), “[...] o de ponto de articulação entre o normal e o patológico” (GARCIA-ROZA, 1998, p. 63). Assim, o esquema do sonho é o modelo para o funcionamento do aparelho psíquico em geral. Por batido que seja, é sempre especial esse lembrete de Freud (1900/1996).
Quando Freud cita acima a “rememoração deliberada”, podemos, obviamente, pensar também na “não deliberada”, que vemos na clínica, as “associações livres”, e, à vista disso, também na transferência, o coração do tratamento psicanalítico. A repetição dos protótipos infantis que o paciente aciona pressupõe a regressão da libido para fases anteriores do desenvolvimento, “a libido (inteiramente ou em parte) entrou num curso regressivo e reviveu as imagos infantis do indivíduo”; o analista irá seguir seu rastro para descobrir seu “esconderijo” e, assim, “torná-la acessível à consciência e, enfim, útil à realidade” (FREUD, 1912/1996 p. 114). É a ideia clássica do que se faz em uma análise, que podemos chamar de psicanálise epistemológica (CORRÊA, 2023). Neste caso, o processo regressivo leva a repetição na terapia. Bom, aí nós podemos tomar a questão, que, na verdade, está sempre presente, sobre a que realmente estamos nos referindo quando falamos de repetição (é uma cópia? É algo diferente?). Novamente, Freud nos deixa na mão: ele mesmo, na apresentação do conceito de instinto de morte, relaciona a transferência com a nova invenção (FREUD, 1920/1996) e, como está claro, é este segundo momento da teoria que fornece maiores e mais robustos recursos para pensarmos a repetição (e, agora, a regressão) do modo como ainda irei propor. Porém, como Etchegoyen (1989) destaca, apesar de a transferência, a partir de então, estar a serviço do instinto de morte, tendo a repetição como seu princípio explicativo (uma necessidade de repetir), Freud não promoveu uma reformulação de seu principal conceito clínico nos textos que se seguiram após 1920. Ainda aprofundaremos bastante o problema da repetição, dada sua relevância extrema, futuramente; mesmo assim, é de valia já ir marcando alguns pontos.
No campo da sexualidade, na teoria da libido, a regressão se faz amplamente presente em vários textos de Freud.[2] Mantendo a premissa de progressão, as fases do desenvolvimento sexual pré-genital (anal, oral, fálica) se sucedem de maneira que devam ser superadas, elaboradas, a fim de se adentrar na próxima.[3] É através do conceito de inscrição que Freud descreve a regressão que ocorre na evolução libinal. Para entendermos um pouco melhor, de acordo com Laplanche e Pontalis (1997), fixação é um modo de inscrição de conteúdos expressivos no inconsciente, uma conexão da libido com pessoas/situações nas quais esta permanece organizada de acordo com determinada fase evolutiva, o que abre caminho para a regressão.[4] Os autores demonstram como esse esquema de coisas serviu para Freud elaborar a teoria de diversos quadros psicopatológicos (especialmente a perversão), o que leva autores como Galván (2012) a reclamar de o uso da patologia ser quase que exclusivo em Freud na abordagem da regressão; o próprio, inclusive, alerta sobre a regressão ser um dos “perigos” no desenvolvimento da patologia (FREUD, 1917a/1996). Este não é um posicionamento raro, parece ser até comum a ideia de certa “patologização” psicanalítica, de que tudo é patologia. Por comum que possa ser, é completamente equivocado. Além do alerta já citado, e também do fenômeno da transferência e, principalmente, dos sonhos, Laplanche e Pontalis (1997, p. 192) frisam o uso “normal” da fixação que permite a regressão, ressaltando aí, inclusive, sua originalidade. Um uso “[...] em relação a ideias como a de uma persistência de esquemas de comportamentos tornados anacrônicos [...]”, o que também já mostra uma visão mais aprofundada da regressão: não só uma volta, mas uma permanência. Pode-se depreender isso deste trecho:
"Formulamos a concepção de que, com toda a probabilidade, essa regressão, onde quer que ocorra, é efeito da resistência que se opõe ao avanço de um pensamento para a consciência pela via normal, e de uma atração simultânea exercida sobre o pensamento pela presença de lembranças dotadas de grande força sensorial" (FREUD, 1900/1996, p. 577) [Grifo meu].
Nesse sentido, a concepção de Winnicott (1975, 2018a) sobre a regressão contribui muito; e é bem mais pertinente (para mim) também, embora ele fale em progressão algumas vezes igualmente. Ainda que também possa passar uma noção mais patológica, é mais direcionada para a saúde e, principalmente, parece trazer uma caracterização temporal mais adequada. A teoria de Winnicott, fortemente amparada na relação com o ambiente, pressupõe não exatamente fases, mas etapas de amadurecimento que não são sucessivas uma após a outra, tendo assim um caminho não predeterminado, mais “plástico”, marcando uma permanência, uma “mistura” entre os estágios, ao contrário do que poderíamos pensar das fases freudianas (que, inclusive, têm marcos de passagens de uma para outra bem definidos – desmame, controle esfincteriano, etc.). Winnicott (2018c; 2018d) postula uma trajetória da dependência à independência constituída em três momentos: dependência absoluta, onde o bebê não tem como saber do cuidado materno, podendo apenas se aproveitar ou sofrer perturbações deste; a dependência relativa, quando o bebê já tem alguma consciência dos cuidados e, assim, relaciona-os aos seus impulsos pessoais; e, terceira etapa, rumo à independência, na qual o bebê tem um acúmulo de memórias de cuidado, o que lhe permite prescindir dos cuidados maternos desenvolvendo confiança no ambiente. O importante a destacar aqui é o terceiro estágio já pela sua nomeação: rumo à independência, ou seja, nas palavras do próprio Winnicott (2018d, p. 177) [Grifo meu], “independência nunca é absoluta. O indivíduo saudável não se torna isolado, mas relacionado com o ambiente de tal modo que o indivíduo e o ambiente podem ser ditos como interdependentes”.[5] Para além da questão da interdependência, do não isolamento, que ainda nos será valiosa posteriormente, agora é essencial o destaque de o estágio final da independência nunca ser concretizado plenamente, estar sempre um “sendo”, ser uma construção constante e eterna. Desse modo, temos as etapas não sucessivas linearmente, em que se supera uma para entrar na outra, como nas fases sexuais de Freud. Assim, pensar a regressão neste modelo implica uma diferença, visto não ser mais adequado conceber uma “volta”, da forma como intuitivamente faríamos. Há, no ser humano, uma tendência inatapara o desenvolvimento saudável que se atualiza somente na interação com o ambiente, no caso, no contato com a mãe/cuidador (GALVÁN, 2012). Esse desenvolvimento saudável não acontecerá se o ambiente não for suficientemente bom e, em situações como essa, pode acontecer a regressão. Só que esta regressão não está em nome de uma patologia ou algo do tipo, mas em direção justamente contrária a isso. “A regressão em Winnicott pode ser considerada um movimento saudável de um indivíduo com algum grau de doença psíquica” (GALVÁN, 2012, p. 50) [Grifo meu]. Winnicott (2018a) diz claramente que costumava pensar a esquizofrenia como uma regressão no sentido de “caçar” os pontos de fixação, bem à maneira freudiana de busca pela etiologia das neuroses. Porém, por sua vivência clínica, essencialmente com casos difíceis como o borderline, veio a perceber dois tipos de regressão: uma, que é só uma retroação em direção oposta ao movimento para frente do desenvolvimento (e que é a regressão que Freud propõe); já outra, “[...] é bem diferente, embora clinicamente possa ser semelhante. No segundo tipo, o paciente regride por causa de uma nova provisão ambiental que permite a dependência” (WINNICOTT, 2018a, p. 196-197). [6] Completa afirmando que a partir de seus estudos sobre os estados esquizoides, “[...] eu estava utilizando a palavra ‘regressão’ para significar regressão à dependência. Eu não mais me preocupei em saber se o paciente havia retroagido em termos de zonas erógenas” (WINNICOTT, 2018a, p. 197) [Grifo do autor]. [7] Dessa forma, há uma diferença importante de como vemos a regressão em Freud, não apenas pela questão da psicopatologia, mas pela ideia de certo “alargamento” temporal, visto a regressão à dependência não dizer necessariamente sobre uma volta temporal, uma retroação, mas a volta a um estado que pode ser presumido, de maneira mais adequada, como concomitante ao estado presente (e, quem sabe também, futuro).[8]
É, então, como o próprio analista inglês coloca, um processo de cura adequado em um indivíduo saudável: a pessoa se defenderia (através do que ele chama de um mecanismo de defesa altamente organizado) de um fracasso ambiental, que não foi vivenciado, através de um congelamento da situação de malogro, que é uma reação salutar e normal de defesa; a regressão funcionaria, dessa forma, como uma tentativa de viver a experiência passada pela primeira vez (WINNICOTT, 1975; 2018a; 2018b).
"Junto com isso, há uma assunção inconsciente (que pode se tornar uma esperança consciente) de que mais tarde surgirá a oportunidade de uma experiência renovada na qual a situação de fracasso poderá ser degelada e reexperiênciada, com o indivíduo em um estado regredido, em um meio ambiente que esteja fazendo adaptação adequada" (WINNICOTT, 1975, p. 281) [Grifo meu].[9]
Sensacional esse trecho, né! Não é, obviamente, só disso que se trata, mas pensemos essa oportunidade em um ambiente adequado, como o tratamento psicanalítico, que é justamente a concepção que depreendemos de setting da sua teoria. Etchegoyen (1989) comenta a ideia existente de que o setting psicanalítico promove a regressão; porém, ele sugere que o que processo analítico pode é detectar a regressão, o paciente já viria regredido. Dessa forma, o holding[10] propiciado pelo analista/ambiente daria segurança para que a pessoa pudesse, a partir da sua regressão, viver o que ela não teve: isso é algo novo, uma criação, não é lembrado como um fato ocorrido, é vivido pela primeira vez.
A regressão para Winnicott não comporta somente esse teor mais positivo e saudável, assim como para Freud também não se resume somente a algo ligado ao patológico ou alguma anormalidade. Se pensarmos por essa via, da concepção de Winnicott e da possível leitura freudiana que apontei acima, a noção de uma flecha ordenada do tempo já não se sustenta completamente, pois há certa “mistura temporal” acontecendo nesse aparato progressivo e tambémregressivo (isto é, não é nenhum dos dois!), essencialmente por esta atração simultânea. Ou seja, não haveria mais um ir e vir, por isso mesmo a regressão da forma clássica como está colocada perderia a razão de ser.
E há outro ponto ainda mais ou tão importante quanto: nós podemos ter a impressão, e ela não estará errada, de que estamos debatendo algo relacionado ao passado. É importante entendermos como esse passado funciona, e eu acho que falamos bastante sobre o passado na psicanálise, de forma que talvez nem seja necessário reformular algo (é necessário sim, mas não tão ultrajante). Mesmo assim, a contribuição de Winnicott (2018b) é preciosa demais porque insere, junto com o passado, também o futuro, este que terá mais a minha atenção. Se o passado que estamos vendo não foi vivido, e o deve ser pela primeira vez (na terapia), estamos tratando de um passado que não deve ser elaborado, desenterrado, pois não há nada lá; deve sim ser criado, inventado, e de forma concomitante com o futuro/presente. “Em outras palavras, o paciente tem de continuar procurando o detalhe passado que ainda não foi experenciado. Esta busca assume a forma de uma procura por este detalhe no futuro” (WINNICOTT, 2018b, p. 91) [Grifo do autor].[11] Winnicott está debatendo sobre uma situação bem específica (o medo do colapso), mas eu estou propondo esse entendimento de forma mais ampla, como um funcionamento mais geral. Nós podemos concordar que a primeira teoria do aparelho psíquico, “[...] acima de tudo, trata-se de uma tópica temporal. O que Freud propõe é que se pense uma ordem de sucessão temporal para os processos psíquicos [...]” (GARCIA-ROZA, 2000, p. 169) [Grifo do autor]. Porém, existem elementos que permitem que pensemos desta maneira mais “misturada” que estou começando a expor, e isso, ao menos por ora, não é nada demais. Como expressou Gondar (1995, p. 77): “[...] o passado é, na teoria freudiana, uma construção permanente – e inacabada”.
Eu gostaria de unicamente dizer que a regressão não funciona; seria muito mais fácil, mas isso está longe de ser tão simples assim (e tão verdade também). Mesmo que Freud não nos tenha fornecido mais atualizações depois de 1920, a partir de onde o acaso parece ter maior possibilidade de existir, em alguns pontos que seriam relevantes, nós temos de seguir em busca de um entendimento/construção de como a temporalidade poderia funcionar seguindo o pressuposto da irreversibilidade, mas também sem ferir (ao menos, não muito) princípios básicos da psicanálise, como a própria regressão é um indicativo. Se isso acontecer, estaremos fora do campo psicanalítico; não há absolutamente nenhum problema nisso: é só que eu realmente acredito que o acaso pode ter lugar na psicanálise.
Sobre a regressão, ainda, Lacan (1985, p. 175) fala em “reconstrução” do que está no inconsciente; Laplanche e Pontalis (1997), em retorno a formas anteriores do desenvolvimento. “Juliano, mas se tu estás falando da repetição, ou seja, de algo que acaba sendo novo, não é uma reprodução”, você poderia dizer já um tanto inquieto(a) com o alongamento dessa discussão. Sim, isso está correto, até porque iremos estabelecer, o que não é nenhuma novidade, o que é a repetição, e que a reprodução é impossível. Agora, da mesma forma que seria imprudente dizer que o conceito regressão “não funciona”, também o seria simplesmente cravar a ideia que estou tentando desenvolver aqui. Este é só mais um dos vários pontos da teoria de Freud no qual entrevemos o que ele “realmente quis dizer”. Além de seus textos, eu acho que, principalmente, fazemos assim por causa da nossa clínica. Por exemplo: a presentificação de um passado que vemos ao vivo na relação transferencial com nossos analisandos quase que nos impede de conceber a regressão de forma ordenada, como flecha do tempo clássica, estática. Porém, há várias situações e motivos, que ainda teremos oportunidade de analisar, pelos quais não se pode dizer que esse entendimento deve ser totalmente descartado, mesmo após 1920. Por isso não estar colocado sem nenhuma dúvida (ao contrário de outras questões em Freud), temos de pensar como realmente vamos compreender a tal da regressão, se é no sentido mais pragmático, ou de outro, mais de acordo com o que está sendo proposto aqui e, parece, mais consoante com o próprio “espírito” da teoria freudiana. Isso é apenas um componente do que temos de pensar: de que modo compomos o tempo. O acaso nos compele a que possamos pensar outro tipo de temporalidade.
Evidentemente, o tópico da regressão não está esgotado: temos de ver como fica este conceito, mas isso só será possível após a composição estar toda escrita. Muito menos a questão do tempo: estamos apenas começando. Os próximos passos (terão de ser alguns), como acho que já ficou anunciado aqui, serão tratarmos da repetição, noção essencial e altamente labiríntica na psicanálise. Repetindo o fim do parágrafo anterior, o acaso nos obriga a pensarmos uma nova temporalidade, e que, penso eu, traz mais ganhos para a nossa clínica.
Agosto/Setembro, 2023
REFERÊNCIAS
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WINNICOTT, Donald W. (1954). Metapsychological and clinical aspects of regression within the psycho-analytical set-up. In: ______. Collected papers: through paediatrics to psycho-analysis. New York: Basic Books, 1975.
______. (1967). The concept of clinical regression compared with that of defence organisation. In: ______. Psycho-analytic explorations. London/New York: Routledge, 2018a.
______. (1963). Fear of breakdown. In: ______. Psycho-analytic explorations. London/New York: Routledge, 2018b.
______. (1960). The theory of the parent-infant relationship. In: ______. The maturational processes and the facilitating environment. Abingdon/New York: Routledge, 2018c. [Livro digital].
______. (1963). From dependence towards independence in the development of the individual. In: ______. ______. Abingdon/New York: Routledge, 2018d. [Livro digital].
[1] A entropia, outro tema de suma importância para nós que será imprescindível ao longo de nossa jornada, entidade física que rege a segunda lei da termodinâmica, postula a flecha temporal. O calor só pode passar de um corpo mais quente para um mais frio, ou seja, nunca diminui, só aumenta. A relevância disso para nós é posta nas palavras de Rovelli (2018, p. 19): “[a entropia] é a única equação da física fundamental que conhece a diferença entre passado e futuro. A única que aborda o fluxo do tempo. Dentro dessa equação incomum existe um mundo escondido”. Ainda iremos explorar e, mais ainda criar, mundos escondidos... [2] Para citar apenas alguns, que talvez tratem do assunto em maior extensão: os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905b/1996) e as conferências introdutórias XXII e XXIII (FREUD, 1917a/1996; 1917b/1996). [3] A ideia de Freud de fases do desenvolvimento psicossexual obedece muito mais uma ideia do tempo cronológico e progressivo. Nesse sentido, a formulação das posições de Melanie Klein é bem mais adequada, pois as posições não são exatamente “superadas”, mostrando maior permanência e, ao mesmo tempo, evolução. Winnicott, que veremos logo a seguir, segue este caminho. [4] Um analista muito querido, com quem tive o prazer de estudar, fazia uma analogia para explicar a fixação que eu sempre reproduzia em sala de aula: imagine um exército em uma campanha numa guerra. Como o caminho é muito longo, de tempos em tempos o grupo acampa para dormir, alimentar-se, etc. Sempre ficam soldados nesses acampamentos. Se, em algum momento, algo terrível acontece na evolução do exército, para onde eles irão correr? Certamente, para o acampamento onde há mais soldados. Assim é a regressão para as fixações. [5] “Independence is never absolute. The healthy individual does not become isolated, but becomes related to the environment in such a way that the individual and the environment can be said to be interdependent”. Tradução minha, como todas as outras. [6] “[...] is quite different, although it may be similar clinically. In the second type the patient regresses because of a new environmental provision which allows of dependence”. [7] “I was using the word ‘regression’ to mean regression to dependence. I did not any longer care whether the patient had stepped back in terms of erotogenic zones”. [8] Um esclarecimento importante (que eu deveria ter feito já de início): Winnicott desenvolve suas ideias sobre o conceito de regressão geralmente se referindo aos pacientes esquizofrênicos ou borderlines. Muitas de suas construções têm esta base. Por exemplo, Winnicott (2018) vê o tratamento das psiconeuroses da forma clássica freudiana, do inconsciente reprimido, reservando suas produções originais mais para casos mais extremos. Eu as tomo de forma geral, pois tenho convicção de que funcionam assim e, mais ainda, servem para eu apoiar, de certa forma, minhas ideias. [9] “Along with this goes an unconscious assumption (which can become a conscious hope) that opportunity will occur at a later date for a renewed experience in which the failure situation will be able to be unfrozen and reexperienced, with the individual in a regressed state, in an environment that is making adequate adaptation”. [10] Holding refere-se ao suporte, tanto físico quanto emocional, que a mãe dá para o bebê, promovendo um ambiente confiável no qual ele pode se desenvolver de forma saudável (DAVIS e WALLBRIDGE, 1982). Um paralelo pode ser feito com a relação do analista com seu analisando e o settingpsicanalítico, como pode ser visto no belo artigo de Franco (2004). [11] “In other words the patient must go on looking for the past detail which is not yet experienced. This search takes the form of a looking for this detail in the future”.
Esta é a música que eu queria ter colocado no anúncio do Instagram, é a que tem a ver com este artigo (não que a maravilhosa “Columbia” não tenha, claro). “Back to the Old House”, dos Smiths. Porém, esta versão não tem no Instagram: não é a oficial, é, se não me engano, uma versão tocada em um programa de rádio, acústica, mais “crua” (e bem mais linda!). Está na coletânea “Hatful of Hollow”, a que eu ouvia na adolescência, por isso é a minha preferida...
Aqui, sou eu mesmo tocando as partes da música. Não se preocupe, eu não canto. Também não crie expectativas musicais: não sou músico, só brinco. Não há problema: por sorte, Johnny Marr não irá me escutar...