Eu escrevi, há algum tempo, uma crônica[1] baseada (e modificada) de um texto que havia publicado no Boletim Interno da instituição onde fiz minha formação psicanalítica. Esta crônica aqui vai pelo mesmo caminho, mas é um pouco diferente.
Trata-se de uma fala que escrevi para um evento que acontecia (a “Terça Científica”, naquela época estavam chamando alunos em formação para participar e, como eu era muito ativo e exibido, era um alvo fácil), e que fui convidado para falar sobre um tema: acting-in (saco a gente ficar usando as palavras em inglês né!). Eu não fazia ideia do que isso significava na época (e ainda não sei direito, mas agora tenho zero interesse em saber – tanto que, na época mesmo, eu coloquei uma definição, porque pesquisei sobre, mas acabei escrevendo sobre um entendimento próprio que tive sobre o tópico, veja só...), mas mesmo assim aceitei: eu era exibido, queria aplausos. Para compor aquela comunicação, eu parti de um trecho de uma música do U2 que eu adoro intitulada “Acrobat”, e que é do disco que originou minha primeira crônica aqui,[2] meu preferido da banda.
Esse trabalho, não lembro o motivo, acabou não sendo apresentado (tanto que, para escrever esta crônica, li o material depois de tantos anos e achei bom! Talvez eu o publique em algum momento). Eu estou, agora, usando o mote daquela fala (e que foi bem fingido, pois o trabalho original não falava nada das “acrobacias” da música) para escrever sobre algo que me interessa; talvez interesse a você também. Então, como não fui antes, vamos agora para o cerne da questão.
A maravilhosa composição do U2 diz assim (partes dela, claro): “Não, nada faz sentido, nada parece se encaixar / eu sei que você atacaria se ao menos você soubesse a quem atacar / e eu me juntaria ao movimento se houvesse algum no qual eu acreditasse / sim, eu compartilharia pão e vinho se houvesse uma igreja que eu pudesse receber, porque eu preciso disso agora / Para pegar o copo, para o encher / para beber devagar, não posso deixar você ir embora / (...) E eu devo ser um acrobata para falar de um jeito, e agir de outro / e você pode sonhar, então sonhe em voz alta, e você pode encontrar a sua própria saída / e você pode construir, e eu posso querer, e você pode ligar, eu mal posso esperar / e você pode esconder, e você pode aproveitar, nos sonhos começam responsabilidades / e eu posso amar, e eu posso amar”. É muito lindo. (E a melodia, veja no fim, é de tanta potência...). Viu a parte que eu destaquei? “Nos sonhos começam responsabilidades”. Nossa, quanta coisa dá para pensar disso, né?
Freud tem um texto que não é dos famosos, mas é sublime (ele tem vários desse tipo!), mereceria um comentário à parte. É um pequeno escrito de 1925 chamado “Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo”, dividido em três partes (Lacan faz uma bela análise da primeira parte nas duas primeiras lições do, se não me engano, Seminário 21). O segundo capítulo desse artigo tem o título de “Responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos”. Nele, Freud fala sobre os sonhos que afligem moralmente o sonhador, nos quais se faz algo eticamente condenável pela pessoa, que ela despreza e de maneira alguma faria em sua vida de vigília, e que, ao acordar, sente-se profundamente desconfortável com isso. É aquele sentimento tão comum de alívio: “ufa, foi só um sonho”. Ora, dizer que foi “só um sonho” é sinônimo de dizer “isso não é da realidade, isso não tem nada a ver comigo, isso não me pertence”. A questão, e é para isso que ele nos alerta, é que não se trata só de um sonho, ou seja, o sonho é do sonhador! O paralelo disso é quando justificamos algo dizendo que “foi inconsciente”: e o teu inconsciente é de quem, meu amor?
Então, o que Freud está nos dizendo é que o que fazemos nos sonhos, por mais inadmissível que possa ser, fala sobre o sonhador, sobre impulsos ocultos (isto é, inconscientes), e é terapeuticamente necessário que se assuma responsabilidade por isso – e veja, responsabilidade é bem diferente de culpabilidade. Eu vejo a culpa pedindo um aporte de obrigação e até de autoflagelo; já a responsabilidade, envolve um nível mais moral, sem obrigação externa, mas de reconhecimento das nossas ações no mundo. É como quando a Raposa lembrou o Principezinho de que ele era eternamente responsável por aquilo que cativava. É um compromisso ético, e dos mais importantes (e também merece uma discussão em separado). Qualquer um envolvido numa análise, seja analista ou analisando, sabe da importância crucial dessas coisas.
Agora, além das responsabilidades começarem nos sonhos, a música do U2 também mostra grande labilidade: são dúvidas, incertezas sobre para onde se vai e, indo mais longe, sobre o que se quer. Este é o ponto central desta crônica: assumimos a responsabilidade por nossos sonhos, mas os sonhos não são estáticos, eles são mutáveis, às vezes até instáveis. Deve-se assumir responsabilidade por isso também, pelas mudanças dos sonhos, e eu penso ser uma parte ainda mais difícil.
Recentemente, eu vi de uma transformação dessas, relativamente próxima a mim. Aquela coisa: meu maior sonho era isso, consegui; porém, conjunturas mudaram, abandonei meu sonho conquistado e persegui (e, no caso, conquistei também!) outro. Eu, olhando de fora, fiquei um pouco pesaroso, mas por causa dos meus valores: eu achava os sonhos iniciais “melhores” do que os substitutos. Para mim, era como se tivesse tido uma perda nessa troca de sonhos. Imediatamente parei para pensar: o que sabia eu das circunstâncias internas daquela pessoa? O que sabia eu do que poderia ser melhor e mais feliz para outra pessoa? Aí que veio tudo junto pra mim: a canção do U2, o texto de Freud, mas mais ainda a relação analítica no seu caráter ético.
O que quero dizer é que o analista trabalhará, dentre outras coisas, para que a pessoa se responsabilize por seus sonhos (seu inconsciente, seus desejos se quisermos), mas quais sonhos e quais metamorfoses eles podem ter, isso é com o analisando: a análise instrumentaliza para que o paciente possa bancar seus sonhos e/ou a mudança deles, mas quais sonhos são esses, aí é com a pessoa, que justamente pelo processo de análise, espera-se que possa tomar decisões melhores e mais verdadeiras para si, não para fugir, mas, bem pelo contrário, para (se) encontrar. Não é de impressionar: o tempo avança (sempre!), as coisas mudam, as pessoas mudam, os sonhos mudam também; estranho e preocupante seria se eles continuassem os mesmos.
“Acrobat”, do U2, como você pôde ver em partes da letra (o vídeo que deixei no fim tem a letra inteira legendada), mostra uma grande inconstância, incerteza, como já disse, de forma que o acrobata parece ser uma metáfora de um nômade emocional, afinal, Bono canta que deve ser um acrobata para falar de um jeito, e agir de outro. Mas eu e você aqui podemos ver o acrobata de outra forma (talvez complementar): para ser um acrobata é preciso destreza e imaginação, precisão e relaxamento, delicadeza e força, empenho e arte. Não seriam essas características importantes não apenas para se sonhar, mas também para mudar os sonhos? Mudar de forma consistente, não daquela maneira atabalhoada que, por vezes, acabamos fazendo e que, na maioria das vezes, só resulta em frustração e arrependimento.
Pois o processo analítico visa incrementar, ou criar onde não há, essas possibilidades. Assim, a pessoa poderá viver seus sonhos verdadeiramente, com menos medos e amarras, ou idealizar sonhos onde não existem. Extrapolando as premissas de Thomas Ogden, sonhar seus sonhos não sonhados, e até os insonháveis. Afinal, como Bono cantou, é sonhando em voz alta que podemos encontrar a saída; ou a entrada. De que ou para o que? Aí, isso é de cada um.
Para terminar, um elemento derradeiro que se atravessou enquanto eu escrevia esta crônica. Há uma música de 1980, “Woman In Love”, da maravilhosa Barbra Streisand, fruto da sua parceria com o “Bee Gee” Barry Gibb. Inclusive, ali ela sustenta uma mesma nota por incríveis 11 segundos! Um recorde que só foi superado tempos depois por Whitney Houston naquela música que eu acho horrível, “I Will Always Love You”. Pois, o primeiro verso da canção diz assim: “A vida é um momento no espaço / quando o sonho se foi, é um lugar mais solitário”. Nossa, eu achei isso tão significativo. Porque eu penso que o sonho é justamente isso (também): o lugar do futuro, o instante no espaço em que temos esperança. Não é assim também que procuramos uma análise? Com ou para termos esperança? Para podermos sonhar nossos sonhos, nossas experiências emocionais?
Mas aí acho que já estamos começando outro assunto, não?
Setembro – Novembro, 2024.
[2] https://www.julianocorrea.com/post/reiventar-se-from-the-sky-down-e-o-achtung-baby-e-a-zoo-tv-do-u2
Como prometi, “Acrobat”, do U2, com legendas em português.
Aqui, a bela canção de Barbra Streisand. Preste atenção na assombrosa sustentação da nota que ela faz. É na entrada para a segunda repetição do refrão, em 2m24s.