Eu andei lembrando de algumas coisas que se conectaram.
Anos atrás, eu tive a oportunidade de participar da elaboração de um trabalho terrível. O “terrível” aqui tem de ser explicado: ele era ótimo, mas difícil até de ler por causa da extremidade das dores envolvidas (no fim, era mesmo o objetivo inicial da autora!). Era sobre luto, mas um luto diferente, que é a perda de um filho. Mais ainda, era sobre o luto da perda de um filho na qual os próprios pais estavam envolvidos como responsáveis! Eu ia dizer para você imaginar a dor, mas desisti: esse tipo de dor é inimaginável, tamanha é a sua devastação total. Inclusive, eu não acho que esse tipo de coisa se encaixe na categoria de luto; não, é muito mais. O trabalho de luto, processo natural e desejável, faz com que fiquemos disponíveis para a vida novamente. Em situações como a abordada nesse trabalho, pode até se ficar disponível por um lado, mas eu acho que talvez outra parte fique morta para sempre, andando junta com aquela que luta incansavelmente para, ao menos, parecer viva. Como todo o trabalho bem feito, este tinha passagens sublimes que, mesmo eu tendo tido contato apenas uma vez, nunca mais esqueci.
A que mais me marcou, continham as falas de um pai sobre a ausência do seu filho (ou filha, não lembro qual era... mas não importa!). Era, o pai, uma pessoa simples, sem muitos estudos, sem grandes capacidades de se expressar de uma maneira mais elaborada. Mas o que ele falou foi, ao mesmo tempo, de uma dor avassaladora e de uma beleza que o melhor poeta não conseguiria escrever. Como é de memória (e a memória nos “trai”), eu não vou conseguir reproduzir exatamente as palavras infelizmente. Mas a ideia central, ah, essa eu lembro bem.
Basicamente, o pai dizia que as coisas tinham murchado. Tudo. As plantas, as árvores, a grama, tudo havia murchado, no sentido de estarem morrendo ou já mortas. Você me entende né? O pai não estava descrevendo uma situação da realidade externa, ele estava falando sobre como ele via a mundo desde então. E aí, ele falava da luz, ou melhor, da falta de luz: tudo havia escurecido. Como se dentro de casa mesmo estivesse a meia-luz. Tudo estava escuro. A cor havia desaparecido: tudo estava preto e branco. Era assim que ele havia passado a ver a vida. O pobre homem se perguntava, em algum momento: será que vai clarear de novo?
Isso é de uma tristeza cortante e de uma beleza emocionante. Quase ninguém conseguiu segurar o choro quando viu a apresentação desse trabalho.
Simultaneamente que, ao acaso, lembrei dessa cena toda, o que me veio a mente foi a ideia, tão importante, de Winnicott sobre criatividade. Ele não relaciona com a criatividade artística necessariamente, ou seja, não é sobre ter grandes talentos, conseguir criar um belo quadro ou compor uma linda história. Não, o viver criativo de Winnicott está nas coisas simples. Simples no sentido de não ser preciso nenhum talento especial, mas altamente complexas se pensarmos no desafio de viver. Desta forma, por exemplo, ter prazer em se arrumar ouvindo uma música que se gosta para sair em um sábado à noite, é um ato criativo. Não vou enfileirar exemplos, você pegou a ideia, né? Quer dizer, o viver criativo é (e Winnicott fala bem isso mesmo) tudo aquilo que “dá um colorido na vida”. Tem a ver com um gesto espontâneo. Isso é criatividade. Até porque, vendo a vida colorida há maiores possibilidades de se achar alternativas, de poder aproveitar o que vida pode oferecer, mesmo que não seja muito, ou, mais ainda, que não seja tudo aquilo que a gente gostaria. É uma discrepância desse nosso pai atormentado que eu descrevi, não é?
Se você costuma me ler, não é nenhuma surpresa que isso me fez pensar na nossa clínica psicanalítica. Há várias versões, todas no mesmo sentido, que podem se aplicadas a esse paradoxo de visões de mundo que contei. Uma vez, uma psicanalista com quem eu estudei (e eu nem gostava muito dela) disse que quando uma paciente chega cheia de instinto de morte (com uma depressão, episódio depressivo, qualquer coisa do tipo), nós, analistas, deveríamos “injetar” instinto de vida. Ainda que essa imagem mais metapsicológica não me agrade tanto hoje, o intuito é o mesmo (e ainda muito válido): injetar vida onde há morte demais. No nosso caso aqui desta crônica, seria injetar cor onde tudo está preto e branco, onde tudo murchou.
Será que se esse pai fizesse um tratamento psicanalítico as coisas iriam clarear novamente? Sinceramente, não sei. A escuridão dele é diferente, não se trata de luto tal qual conhecemos e lidamos, é outra coisa, como já disse. Talvez, isso sim, alguns pontos de luz ele poderia passar a ver, para que a vida não entrasse em uma noite eterna. Mas voltar o dia e o colorido, eu realmente acho difícil: nós temos de ser realistas, esse é o tipo de coisa que quebra (ou, pelo menos, tem grande força para) uma pessoa.
Agora, as épocas, mais ou menos longas, mais ou menos profundas, sem cor todo mundo tem. Eu acredito que quem não as tenha, é mais alienado da vida (ou profundamente abençoado, talvez pela sorte). A vida não é fácil. Eu lembro sempre do que Lou Reed, citei isso no texto do Instagram em outra crônica,[1] disse em uma entrevista de promoção do seu disco Magic and Loss, um disco sobre a morte, sobre a perda de dois amigos queridos. Eu tenho lembranças fortes desse álbum, no sentido do que falei há pouco sobre o poder de teletransporte temporal da música.[2]Eu tinha 15 anos quando foi lançado e eu ouvia esse disco repetidamente, mergulhei na sua atmosfera (ele é maravilhoso! Profundo, cru, verdadeiro e belo, como só um grande artista poderia fazer). Era pelo contexto, as coisas que estavam acontecendo, mas também era pela minha própria personalidade. Fazendo esse tipo de coisa, não era de impressionar que eu fosse totalmente deslocado dos da minha idade, né? Nossa, que adolescente estranho eu fui, hein! Talvez por isso eu tenha me tornado este adulto que sou hoje. Pode ser. Mas enfim, voltando ao assunto, saindo desse instante autobiográfico que você não deve estar interessada, Lou Reed disse, em um momento da entrevista, que a lição do seu álbum era de que “a vida vale a pena ser vivida, mesmo quando nela há dor”. Quando o entrevistador comenta que é uma lição meio difícil de aprender, ele completa: “torturantemente difícil”.
Então, eu acredito que o que se faz na análise é isso: que a pessoa tenha o colorido na vida. Seja um novo colorido porque ela perdeu o seu, seja um colorido que ela nunca teve, não importa. Pode ser feito de diversas maneiras, vai depender do analista; pode ser “injetando instinto de vida”, como falei. Particularmente, já há tempos eu penso que o caminho é pelo acolhimento verdadeiro desses afetos preto e branco, pelo compartilhamento genuíno de uma experiência, uma vivência que não é simplesmente um “viver de novo” (isso é impossível), nem uma soma das vivências de cada um, mas é sim uma história nova formada por um tipo de intersecção das duas vidas envolvidas (do analisando e do analista). Isso é muito especial (e difícil!). Eu tenho essas concepções tiradas da ideia do terceiro analítico de Thomas Ogden, que me remete ao conceito de espaço potencial de Winnicott: um lugar especial para que as coisas aconteçam, da maneira que eu interpreto. Pois ambas essas noções, de Winnicott e Ogden, dizem respeito a algo novo que é criado, não é apenas uma somatória, é uma novidade que aparece de uma relação afetiva extremamente íntima, única e ética em um ambiente seguro. Não é a mesma coisa que desabafar com o melhor amigo!
É como se a gente (analistas) tentasse consertar algo quebrado, ou criar algo que não existiu, mas que poderia (ou deveria) ter existido. É, nessa visão, um trabalho lúdico. Como se nós oferecêssemos as cores, e a pessoa em tratamento definirá quais e como ela poderá usar. Não se trata do desenho perfeito, é muito mais sobre ter cor. Aí, talvez a vida possa ser não só suportável, mas adquirir sentido. Ter sentido é ter futuro. Ter futuro não são essas coisas megalomaníacas que a gente vê em redes sociais (boa parte são falsas), desse bando de canalha vendendo felicidade fácil; é o simples. O colorido da vida é simples, talvez por isso seja tão difícil de conquistar. Não se é feliz o tempo todo, o preto e branco fazem parte da vida, ainda que não devam a dominar. Colorido da vida é vida normal, vida da realidade. Não podemos perder isso de vista (mais ainda nos dias de hoje).
Eu ainda fico com uma pergunta antiga que tenho: será que não existem outras perdas, que não são extremas como a perda de um filho, que também não permitem que o trabalho de luto se consolide? Como se ficássemos com uma parte "morta" enquanto continuamos a viver. Afinal, a vida parece ser feita de uma gangorra entre escuridão e cores, não é?
Como Lou Reed cantou na derradeira frase da última (e esplêndida) música do disco que me expôs aqui como um adolescente estranho: “há um pouco de mágica em tudo, e então uma perda para manter o equilíbrio das coisas”.
Setembro, 2024.
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