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A cidade e o escritor

Foto do escritor: Juliano CorrêaJuliano Corrêa

Eu realmente não lembro do nome (e nem da história!) de um filme que vi uma vez, há tempos, mas uma cena nunca me saiu da memória (foi só esta cena que vi, na verdade, talvez por isso eu não lembre de nada!): um escritor jovem, lutando contra as dificuldades de escrever, trava um diálogo com um escritor mais experiente e (parecia ser) seu mentor. O mais velho aconselha o mais novo a investir nas angústias contraditórias que sente em relação a cidade onde nasceu (e vivia?), pois ressalta que este é um tema central na literatura. Diz que todos os grandes escritores tinham grandes conflitos com sua terra natal. Tem sentido.

Há vários escritores (todos o que vou citar são da minha preferência, a lista é certamente bem mais extensa e intricada, mas deveria ser feita por um especialista, que não é o meu caso) que trazem seus lugares (e seus tempos!) como marcas de sua escrita. Alguns, de forma indireta; outros, diretamente. Assim, por exemplo, Kafka e García Márquez (que foi muito influenciado pelo primeiro) nos oferecem lugares fictícios e/ou não nomeados, ainda que saibamos das referências pessoais do contexto de onde viviam/viveram. Já outros, como Dostoiévski, Érico Veríssimo e Machado de Assis, estão diretamente relacionados aos seus ambientes, amando-os, mas também com suas fortes críticas sociais, de forma que nos transmitem a sensação de realmente passarmos a conhecer os lugares que descrevem, pois são muito vivos!

Eu tive, recentemente, uma surpresa muito agradável aqui no Rio de Janeiro. Fui visitar uma amiga querida que mora no bairro de Laranjeiras; saímos para tomar um café. Enquanto andávamos, li em uma placa que estávamos na rua Cosme Velho (o bairro Cosme Velho é vizinho de Laranjeiras). Na hora lembrei de Machado de Assis e comentei com ela que parecia que eu estava em um de seus livros. Ela se animou e disse: “então, era aqui que eu queria te trazer!”. Tratava-se de um café (muito legal, vou deixar algumas fotos) onde foi a casa de Machado de Assis (como tantas coisas, não preservamos certos lugares como eram...)! O nome era bem sugestivo: “Capitu Café”! Ao lado, havia um pequeno espaço chamado “Alienista”. Eu adorei! Sério, senti emoção de estar ali. Um sentimento meio louco de ver a história quando a história não está mais lá.

Isso parece dar, seja da forma que for feito, personalidade para o escritor. Não sei se é necessário, é questão de estilo. José de Alencar, um autor que não me agrada, pois não gosto do romantismo brasileiro, como já citei em outra crônica,[1] tinha o objetivo de escrever uma “literatura nacional”. É um mega objetivo! Só que, por exemplo, ele escreveu “O gaúcho” sem nunca ter ido ao Rio Grande do Sul. A despeito da envergadura das obras, não se vivencia bem mais os pampas lendo (o maravilhoso) “O tempo e o vento”? É uma questão de gosto sim, não sou crítico literário, estou falando de quando se sente a alma no que se lê. E aí esta conexão com o lugar parece ter importância, não absoluta, claro, mas bem ampla. Podemos pensar em Shakespeare também em relação a isso (e seria até covardia lembrar de Proust!).

Estou querendo dizer que não podemos falar do que não se viveu? Até estou sim um pouco. Se você já visitou (ou mesmo foi viver em) algum lugar mais popular, já deve ter tido esta experiência: é muito engraçado (para não dizer patético) pessoas que você conhece e que já passaram um fim de semana em tal lugar, dando direções como se fossem nativas do local, como se conhecessem as entranhas e os costumes da cidade por terem estado uns parcos dias lá! É um fenômeno impressionante, mas comum. Visitei minha irmã por 14 dias em Nova Iorque, agora sou nova-iorquino, domino a cidade inteira, sei o que é viver lá. Por favor, né! Ao mesmo tempo, podemos sim “falar do não vivenciado”, mas de forma diferente (por isso as aspas!).

Eu estou pensando na análise. Estou lembrando de uma situação específica, mas é do tipo extremamente corriqueiro para qualquer um que trabalhe na clínica: a pessoa querendo muito saber se eu era casado (enfrentava problemas no casamento), justificando tal demanda pelo fato de que se eu fosse casado entenderia melhor o que ela estava passando. Ora, se formos pensar assim, eu nunca poderia, por exemplo, atender uma mulher, né! Meu público para atendimento ficaria extremamente reduzido: teriam de ser parecidos comigo! Ainda assim, esta ideia da relação dos escritores com a cidade parece continuar funcionado na terapia: a questão não é eu já ter tido a mesma experiência que a pessoa, até porque isso é impossível, visto sermos pessoas diferentes e mesmo que nós estivéssemos em um casamento, como no exemplo, o casamento é diferente, então essa justificativa é uma grande besteira. Mas é essencial sim ter a mesma experiência compartilhada, que é o nosso objetivo no setting analítico. Isso não se dá por conhecimentos prévios (além da nossa técnica, claro). Ou seja: não é já termos vivido a mesma experiência (o que é materialmente impossível!), mas vivermos agora uma história que é só nossa. Então, por esta via, é isso mesmo: não dá pra falar do que não se viveu!

Mesmo que não sejamos escritores (não sei se você é!), se nos empenhamos em pensar sobre nós mesmos, seja da maneira que for, eu acho que nossa cidade (a que se nasceu, a que se vive, tanto faz) se apresenta como algo relevante e conflitante. Conflito não quer dizer que seja ruim necessariamente: mas sim que é uma relação complexa. Refletirmos sobre nossa cidade talvez seja correlato a devanear sobre as nossas próprias origens, nossa história. Num processo assim, atritos e confusões são naturais, talvez até desejáveis, não por serem bons (geralmente não são!), mas por serem necessários para... crescer.

Você percebeu que comecei falando de cidade literalmente, mas agora estamos em um nível mais simbólico, né? É por isso que quando estamos em crise e resolvemos nos mudar (literalmente), “mudar de ares”, isso não resolve o problema. Não tenho oposição: não se pode argumentar contra o fato de que nossa vida realmente muda quando nos mudamos de cidade; porém, além de todo o perrengue da mudança (literalmente falando), o simples deslocamento geográfico de um lugar para o outro não fará diferença para suas dores psíquicas. Ok, pode até fazer um pouco, afinal, é uma mudança, sempre traz algo diferente. Mas é que este sofrimento que tratamos na psicanálise é como os espíritos maus: grudam e seguem a pessoa para aonde ela for (assista à “Invocação do mal” – ou, mais ainda, à “Poltergeist”, o original, se você for corajoso(a) e vintage – e entenderá o que quero dizer kkkkkk).

Mantendo o clima que escolhi para esta crônica, é aquela coisa: você pode sair da cidade, mas a cidade não sai de você (eu até hoje almoço, muitas vezes, até antes do meio-dia por causa de todos os anos que vivi em São Miguel do Oeste...). Vale para o mal e para o bem.

Maio-Agosto, 2023.



Abaixo, como prometi, algumas fotos do "Capitu Café", lugar que achei muito especial.







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