Está acontecendo aqui em Porto Alegre a Feira do Livro. Pela 70ª vez! Eu sei que todas as cidades têm uma feira do livro (na verdade, não sei não, não pesquisei, acho, de fato, que não são todas, mas com certeza muitas têm!), mas a de Porto Alegre é diferente. Tudo bem, digo que é diferente pela relação emocional; você também não acha “diferente” coisas da sua aldeia? Em certo sentido, são diferentes mesmo: culturas diversas, histórias distintas, coisa e tal. E talvez tenha um acento maior aqui: povo gaúcho/porto-alegrense é bairrista, orgulhoso de suas raízes, algo que tem seu lado bom e seu lado ruim.
Seja como for, a Feira deste ano é, realmente, especial: o local onde ela acontece, a Praça da Alfândega, onde fica o MARGS, no Centro Histórico da cidade, estava, há alguns meses atrás, muito debaixo d’água; se você mora no Brasil, ficou sabendo.[1] Então, é, como várias outras coisas estão sendo por aqui, um símbolo de resistência, força, recuperação, essas coisas.
A Feria do Livro é um evento legal demais, gostoso demais: há atrações artísticas, rodas de debates (tudo de graça!), bares para se reunir com os amigos e tomar um café, um chopp (ou uma água!), e, claro, os livros. Muitas bancas, muita variedade, tudo junto, descontos, etc. O intuito da Feira quando foi criada, em 1955, era de popularizar o livro, injetar gás no mercado livreiro incentivando a leitura. Poucos motivos são mais nobres que esse. Para quem gosta de ler, para quem gosta de cultura, mas mais ainda para quem gosta de livros (pois é uma coisa diferente, já vou chegar aí), é um parque de diversões.
Eu sempre gostei muito de ir, mas passei mais de 16 anos sem poder comparecer, pois não morava em Porto Alegre e era inviável vir pra cá nessa época do ano. Coisas da vida. Mas enquanto eu morava aqui, ia sempre: matava aula (do colégio e da faculdade!) para ir, passava tardes inteiras lá. O que eu mais gostava era os balaios: grandes caixas com livros jogados sem nenhuma ordem ou organização para serem vendidos por preços baratíssimos. Para gente como eu, é um recreio ficar muito tempo fuçando naquela montanha, parando para analisar livros dos quais nunca se ouviu falar, na esperança de se encontrar algo que se ame. Eu era o garimpeiro na Serra Pelada tentando encontrar o ouro escondido.
Só que, apesar de todas as doçuras, a Feira também é altamente perigosa para pessoas como eu.
Certa vez (eu devia estar no último ano do colégio ou bem no início da faculdade, não lembro bem), eu fui na Feira e, como sempre, havia um preparo importante: o dinheiro. Naquela época, eu ainda tinha a seguinte estúpida ideia: vou levar pouco dinheiro para não gastar muito. Não que eu tivesse muito dinheiro, mas poderia levar mais. Se você tem esse tipo de concepção em relação aos gastos, repito: é uma ideia idiota. Faça um tratamentozinho que te ajude a ter mais autocontrole, porque esse externo não funciona. Enfim, lá meu fui eu com pouco dinheiro, suficiente para comprar um livrinho ou outro.
Durante um bom tempo, tudo estava normal: eu passeava pelas ruas da Feira, olhava os livros, perguntava coisas para os funcionários das bancas, aproveitava o ambiente. De repente, algo aconteceu: a loucura.
Eu queria comprar todos os livros ali. Todos. Mesmo os de autores que não conhecia, sobre assuntos que eu não sabia, mesmo os de temáticas que eu não gosto, mesmo os que eu até era contra ou detestava; todos! Entretanto, é claro, eu não tinha dinheiro. Não teria de qualquer forma, mas poderia ter um pouco a mais para acalmar o tsunami interno. Naquele momento, eu estava morrendo de sede; quando ia comprar algo para beber, pensei: mas se eu pegar o dinheiro do guaraná, posso juntar e comprar livros com ele. Eu cheguei ao ponto de me sentar em um dos bancos da praça, tirar meu dinheiro do bolso para contar exatamente quanto eu tinha (já havia decorado os preços dos balaios), e fazer um planejamento financeiro para poder comprar mais livros. Havia uma quantia separada para eu poder pegar o ônibus para voltar para casa; porém, no limite da razão, eu comecei a desenvolver teorias nas quais eu poderia pegar o ônibus sem pagar (para pagar depois!) e, assim, usar aquela quantia para... comprar livros, quaisquer livros! Não sei quanto tempo esse surto durou, mas repentinamente como chegou, passou. Fiquei até assustado comigo mesmo. Não lembro mesmo se comprei algum livro naquela tarde (certamente devo ter comprado né...), ou fui embora com medo do que eu poderia vir a fazer.
Jô Soares uma vez disse, numa entrevista não lembro com quem, que há dois prazeres separados em relação aos livros: um, que todos sabemos, é o de ler o livro e se deliciar com as aventuras e emoções que a leitura e a imaginação nos trazem; porém, o outro prazer é ter o livro, colocá-lo no seu lugar sem a menor perspectiva de quando será lido. Isso pode parecer estranho, né! Mas, ao menos para mim (e para outros que já conheci), não é. Eu tenho livros que comprei há mais de 20 anos e ainda não li. Aliás: não tenho a menor ideia se irei ler algum dia. Por que comprei? Ora, porque é importante! É importante ter esse livro! Por que? Aí a resposta fica mais difícil... Eu realmente não sei... Mas muita gente (talvez você também?) concorda comigo que, por exemplo: ter “Ulysses” na sua prateleira, mesmo que nunca vá ser lido, é importante! Não é nem para mostrar para os outros que se lê James Joyce, é para mostrar para si mesmo! É louco isso, mas é verdade: é olhar para o livro, bonito, que talvez nunca será folheado, e sentir uma satisfação imensa por o ter. Ler e aproveitar é outra conversa. Uma coisa é ter a sua biblioteca; outra, é ler a sua biblioteca. São deleites completamente diferentes.
Ao contrário do que possa parecer, eu não acho que isso é uma coisa consumista ou acumuladora obsessiva; eu vejo como estilo, no sentido de algo muito pessoal. Pense comigo: se eu acumular muito dinheiro (de forma retentiva, ou de forma dos bilionários, mas aí não é conversa para mim – penso que não é para você também...), quando eu morrer esse dinheiro fica sem ter sido aproveitado por mim, vai ter algum fim certamente, mas eu acumulei em vão; agora, os livros são diferentes: quando eu morrer, eles também terão um destino, só que mais interessante ainda, pois eles vão poder alimentar a alma de alguém, o que o dinheiro não faz (a não ser que seja para comprar livros! – ou LPs). Só que ainda mais importante que isso: eu vou ter desfrutado em vida a sua presença mesmo sem ter lido. Pode-se ter segurança com dinheiro guardado, mas só um livro (que não será lido) na estante fornece paz ao espírito. Está lá, esse é o passo essencial; vou ler? Esse é o bônus para nos levar para outras dimensões que permitem suportar nossa vida aqui. Se você não está vendo sentido nisso, deixa assim: não há nada mais que eu possa explicar, pois não se trata de entendimento, mas de sentimento.
Ainda permanece uma questão: e aquela loucura toda de (querer) comprar todos os livros? Não foi melhor mesmo, então, não levar mais dinheiro? Olha, eu já gastei tanto dinheiro em tanta coisa inútil e insignificante, que se eu tivesse gastado “todo” aquele dinheiro (eu falo como se fosse uma fortuna!) naqueles livros que eu não fazia ideia sobre o que eram, teria sido um gasto bem mais justo. Eu acho assim: decisões tomadas no calor da emoção (quase) sempre dão merda (e falo por mim também); no entanto, quando você ama e quer, verdadeiramente, algo, talvez o ímpeto momentâneo não seja tão ruim. Buscar o que se deseja se libertando de amarras (do passado?), bancando e assumindo nova postura frente ao bem que surgiu ao acaso (ou ainda melhor: que foi encontrado por você).
Isso não é, de forma alguma, dica de como fazer na sua vida, combinado? Estou só dizendo que se eu tivesse gastado todo do meu pouco dinheiro naquela distante Feira do Livro em Porto Alegre, eu não estaria arrependido. Consideraria um investimento. De alma.
Ao contrário desse monte de publicações que a gente vê hoje falando sobre determinado assunto, por exemplo, corujas, e, no fim, dizendo “este post não é sobre corujas”, tentando dar lição de moral (para alguém como eu, que via o desenho do He-Man, isso é quase uma ofensa), esta crônica é sim sobre livros. Livros... que guardam tantos mistérios, amores escondidos, histórias esquecidas, e... futuro, esperanças.
Novembro, 2024.