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A felicidade

Foto do escritor: Juliano CorrêaJuliano Corrêa

Quando eu dava aula, tinha uma mania que aplicava em quase todas as provas. Essa coisa das avaliações era o pior para mim: elaborar algo para “provar” o conhecimento da aluna objetivamente de algo como a psicanálise, que se apreende via inconsciente! Uma insanidade. Mas eu era obrigado. Então, eu tentava fazer algumas coisas diferentes, como uma questão extra para analisarem a epígrafe da prova (eu sempre colocava epígrafe). Outra coisa que comecei a fazer com frequência a partir de certo momento, foi colocar uma questão dissertativa com base em um quadrinho. Calvin e Mafalda eram meu preferidos (acho que só fiz com eles). São muito ricos! Essa tirinha da Mafalda que ilustra esta crônica (e é seu mote), nunca coloquei numa prova, mas ela me fez pensar como tantas outras dela e do Calvin me fizeram.

A Mafalda, se você não conhece, é criação do genial Quino, cartunista argentino que morreu em 2020. Mafalda é uma menina de 6 anos que adora os Beatles e odeia sopa. Mais importante que isso, é uma crítica mordaz e sagaz da situação do mundo da época, mas bem além também: da nossa condição humana. E essa crítica é sempre divertida, irônica, mas acima de tudo, certeira. Mafalda é maravilhosa!

Então, esta tirinha que me fez escrever esta crônica fala da liberdade. Não é necessário ser livre para ser feliz de verdade? Não vou a transcrever: se você está lendo isso aqui, pode ver a figurinha também né! É que eu acho uma grande sacada o chaveiro perguntar para ela se ela trouxe o modelo da chave da felicidade, que Mafalda chama de esperto o velhinho. Pode parecer um golpe, né? Mas não é! O velhinho estava certo!

Eu acho que a felicidade é uma ideia correlata à de liberdade num certo sentido. Você que está aqui agora, escolha qualquer uma dessas palavras e me diga o que é. É complicado dar uma definição, não? É como no fim do histórico curta-metragem “Ilha das Flores” (vou deixar abaixo), de Jorge Furtado, que diz: “liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda” (essa frase é de Cecília Meireles, como o filme dá crédito). Ou seja, falamos sobre, desejamos (ok, nem todos, toda essa galera que gosta de opressão não deseja, né), mas não entendemos o que é. Liberdade é fazer tudo o que se quer? Não, isso é perversão (ou loucura em geral), pois vivemos em sociedade. Qual é o limite, então? O que é ser livre? Quando eu sou ou me sinto realmente livre? Faz a gente se perguntar se isso existe de fato, não? A felicidade vai pelo mesmo caminho, essas perguntas podem ser repetidas.

Em “O mal-estar na civilização”, um livro maravilhoso e altamente potente, Freud faz uma belíssima e realista análise sobre a felicidade e a busca pela felicidade de todos nós. Há uma frase famosa que circula pela internet que diz que “a felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conceito é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz”, que é atribuída a ele. Digo que é atribuída porque realmente não lembro dessa frase em nenhum texto de Freud. Também me parece um pouco “faceira” demais para ele a ter escrito. Bom, mas eu sou desconfiado mesmo com essas coisas, como já falei em outra crônica,[1] é normal que eu esteja errado. Inclusive, se você, por ventura, souber em qual texto dele está esta frase, por favor me avise, pois eu fiquei curioso! É claro que que não procurei em toda a sua obra, mas no “Mal-estar” não está, isso é certo.

Freud discute vários caminhos da busca pela felicidade, pontuando que a repressão dos nossos instintos mais poderosos dificulta extremamente nossa vida na civilização. O que, como a liberdade, faz pensar se a felicidade mesmo realmente existe, ou apenas temos instantes que podemos chamar de “felizes” nesse mar que é viver. Não vou entrar na análise ou exposição do livro, não é o objetivo aqui. Agora, ainda que a tal frase famosinha não esteja lá, seu conteúdo está. Ele escreve assim (e nessa você pode confiar, pois estou copiando do livro): “a felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo”. E este é o ponto.

Esta é uma das razões (talvez a principal) pelas quais em um tratamento psicanalítico não damos conselhos, não apontamos direção, enfim, basicamente não ditamos regras de como a pessoa deve viver. A ideia é poder instrumentalizar, fazer o papel de prótese, como já falei,[2] para que a própria pessoa possa encontrar o seu caminho e, assim, a sua felicidade. Ou seus momentos de felicidade tão plena. Porque isso é muito pessoal mesmo. O que é bom (“feliz”) para mim, não é o mesmo que para você, e, essencialmente, para ninguém mais. É único. Eventualmente, claro que esses caminhos podem se encontrar, então os instantes felizes podem dobrar.

Aí está a riqueza da tirinha da Mafalda. O que ela pede ao chaveiro é o que muitas vezes as pessoas nos pedem em uma análise, ou mesmo o que se pede na vida em geral para o outro: a chave da felicidade. Porém, a original é de cada um, mesmo que não se tenha ideia de como ela é ou onde ela está (e será que está em algum “lugar”?). Eu acho que é algo que decerto se crie no core, naquele núcleo tão importante e (que deve ser) inviolável, de tão íntimo que é, que Winnicott nos fala. E talvez possamos dizer que, parecido com o chaveiro, o analista ajuda a fazer cópias (o trabalho analítico é sempre conjunto). Aí, quem sabe, aos poucos a chave possa aparecer mais no nosso bolso.

Ser feliz o tempo todo é alienação (ainda mais nesse mundo em que vivemos). Talvez a saúde seja conseguir aproveitar ao máximo estes poucos instantes de felicidade que conseguimos ter, porque temos a possibilidade de encontrar a nossa chave, que é sempre fugitiva e errante, mas é nossa.

 

 

Dezembro, 2023.




Este é o curta “Ilha das Flores”. É muito famoso, você já deve ter visto. Mas se não viu, assista! Vale a pena. São menos de 15 minutos.






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