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  • Foto do escritorJuliano Corrêa

A TRANSITORIEDADE E O FUTURO

O pequeno texto de Freud (1916/1996) “Sobre a transitoriedade” (“Vergänglichkeit”) sempre foi um dos meus preferidos, daqueles que diz muito em muito pouco; sou fascinado por isso. James Strachey afirma, na introdução da tradução inglesa, que o texto em alemão é uma das provas dos “poderes literários” de Freud, mas mesmo em nossas versões em português se pode perceber tal beleza. Talvez isso tenha sempre me atraído tanto, pois não acho que tenha tido muita compreensão de qualquer tema que seja nas primeiras leituras muitos anos atrás: eu o achava era bonito mesmo. Não sei se era a fragilidade em que o pai da psicanálise se encontrava em meio à Guerra; não sei se era um texto mais “despretensioso”, daqueles que se fica mais livre para escrever (a maior parte dos escritos, na minha opinião, mais belos de Freud são posteriores a 1920, ano a partir do qual ele vai se soltando de certas amarras científicas gradativamente, mesmo que nunca as tenha abandonado por completo, como alguns atestam).

Hoje, eu vejo muito mais coisas neste pequeno escrito; traz muitos elementos para questões importantes que eu venho pensando. Logo, esta é a minha interpretação. O objetivo aqui é, além de admirar a extrema beleza e sutileza deste trabalho, tentar explorar possibilidades oferecidas por este texto, mostrar as portas (algumas delas) que ele abre para se pensar questões essenciais para a clínica psicanalítica.


I - FUTURO DO PRETÉRITO COMPOSTO


Ainda que curtíssimo, “A transitoriedade” revela, talvez em camadas, vários tópicos possíveis de serem desenvolvidos, é altamente complexo (como é de se esperar de um texto de Freud). Sob o terror da Primeira Grande Guerra, Freud reflete sobre a finitute, sobre a morte, tema que seria cada vez mais presente em sua obra. Vindo o mundo de cerca de 100 anos de “paz”, a bestialidade da Primeira Guerra foi algo muito assustador. Com os “preparativos” para a Segunda Guerra, o tópico da destrutividade humana volta à baila na sua correspondência com Einstein (FREUD, 1933/1996). A virulência espantosa da Guerra teve muita influência em Freud, para além das consequências em um nível pessoal (preocupação com pessoas próximas e queridas no front, escassez quase total de sua clínica, grave crise econômica que pulverizou suas economias), como também no desenvolvimento de suas ideias psicanalíticas. Voltou-se para temas mais “sociais” ou “humanitários”, estendendo sua reflexão do individual para o coletivo e para a condição humana. Ainda que não seja, obviamente, decorrente apenas disso, seu principal conceito durante toda a segunda parte de sua produção, a partir de 1920, o instinto de morte, que guiou os interesses de Freud e toda a reformulação que ele empreendeu na psicanálise, foi elaborado sob este novo signo de devastação e terror. Juntando-se a este contexto, o tema que parece ser o principal de “Sobre a transitoriedade” é o luto. Freud já havia escrito seu importante livro “Luto e melancolia”, ainda que publicado só em 1917, dessa forma, ele já está com as ideias do processo de luto e as apresenta brevemente. Mas também julgo que não se pode negar, e aí está o meu interesse, que este é um grande escrito de Freud sobre a temporalidade. Ao menos, eu vejo dessa maneira. É um assunto arisco na obra de Freud, pois, ainda que essencial, não há produção dedicada exclusivamente ao tempo, nem um conceito de fato que dê conta de todo o seu alcance. Para além de toda sua potencialidade da qual dei apenas algumas direções, eu vejo este texto como uma peça indispensável se quisermos pensar a temporalidade (na psicanálise).

Freud (1916/1996, p. 317) inicia o texto contando de “[...] uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso” feita pouco tempo atrás, em um dia de verão. Tais amigos não são identificados. Eu tenho a forte sensação de ter lido sobre isso, sobre quem seria o poeta, mas realmente não sei se é uma lembrança real ou imaginária (“encobridora”, diria Freud?). Provavelmente deve ser a segunda hipótese, já que Strachey informa que a identidade de seus companheiros não pôde ser estabelecida... Seja como for, não importa: Freud se utilizou algumas vezes de um interlocutor para escrever, o que é um artifício muito interessante, envolve mais o leitor em suas ideias, pois a outra pessoa (real ou imaginada) era sempre colocada no papel de um tipo de “advogado do diabo”, ou seja, questionando possíveis pontos fracos da sua argumentação, fazendo com que ele desse melhores explicações (muito para o que seriam alvos de ataques). “A questão da análise leiga”, de 1926, um grande livro, certamente é o melhor exemplo deste estilo.

Pois dos dois amigos de Freud, o tal jovem poeta é o destaque; na verdade, é somente ele que aparece, o que poderia nos fazer pensar o que o “amigo taciturno” está fazendo nessa história. Aparentemente, seria um contraponto ao poeta, mas ele não fala nada. Eu fico pensando se o amigo taciturno não poderia ser o próprio Freud ou, ainda, um tipo de representação da temporalidade, isso tudo da maneira que eu a entendo. (Ou tudo aconteceu mesmo, ainda que não anule estas interpretações). Então, o poeta, apesar da beleza da natureza que vê em sua volta, está desolado:

“perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo” (p. 281).

Freud nos diz que esta preocupação com a “fragilidade de tudo que é belo e perfeito” gera duas consequências: ou o “doloroso cansaço do mundo” tal qual seu jovem amigo demonstrava, ou uma rebelião, não aceitar o fato constatado pela experiência. “Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas às influências destruidoras.” (p. 281). Esta “exigência de imortalidade” é fruto dos nossos desejos que não combinam com a realidade, por isso Freud relata que não pôde refutar a transitoriedade universal, nem em relação ao belo e perfeito.

As duas consequências possíveis que Freud destaca, o “doloroso cansaço do mundo” ou a “rebelião”, parecem-me serem a mesma coisa, apenas apontadas para lados opostos. Eu vejo ambas como reações nostálgicas. Como disse anteriormente em uma crônica, “A vida segue...”, a nostalgia tem base num tipo de recordação pura e direta cujo apego é sempre desastroso, visto ser impossível. Parece-me que o amigo poeta está em um estado nostálgico, vivendo de lembranças (mesmo que sejam antecipadas) as quais deseja sua manutenção (ou mesmo seu retorno) tais quais são/eram. Já a posição de Freud aponta para outro caminho, como podemos ver no restante do texto.

“[...] Essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade, o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor” (FREUD, 1916/1996, p. 317) [Grifo meu].

Interessante que Freud está falando da realidade de fato, a externa, a do dia a dia, não da psíquica, pois está contrapondo o desejo, que parece estar em um sentido inconsciente, a ela. Ao mesmo tempo, também podemos pensar na ideia colocada no segundo capítulo de “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (FREUD, 1915/1996), escrito logo antes, e compartilhando parte da temática, no qual Freud assevera que o inconsciente admite a ideia de morte, mas não a de aniquilamento, por isso nosso apego tão forte a conceitos como alma no sentido espiritual, aos rituais de celebração, lembrança e respeito aos mortos, às crenças de vida após a morte de todas as doutrinas religiosas, etc. Assim, podemos inferir um “encontro” neste trecho que transcrevi acima entre as duas realidades, interna e externa, pois ainda que convencidos de nossa imortalidade no inconsciente, o “teste de realidade” mostra algo diferente, exatamente como o poeta está lamentando a Freud. Isso é relevante para um equilíbrio de pesos: há toda uma tradição na psicanálise (a mais dominante, eu diria tranquilamente) que coloca um gigantesco destaque no que poderíamos chamar, de forma geral, de mundo interno. O que estou questionando é a sua supremacia em nossas produções e também na nossa clínica: por vezes, parece que o tratamento foca dominantemente no mundo interno, como se a vida real da pessoa se resolvesse sozinha como consequência. Será que é assim mesmo? Somente um maluco questionaria a relevância do todo o aparato psíquico; mas, apesar de toda a sua importância, não vivemos, de fato, nele, não é? Assim, deve haver igual atenção para a realidade externa, para a “aplicabilidade” de qualquer produção. É por isso, também, que todas as tentativas de entendimento da temporalidade na psicanálise deram em nada basicamente: houve uma maior preocupação com grandes construções metapsicológicas e se esqueceu de como elas funcionariam na prática.

Também gostaria de chamar a atenção, conforme o segundo trecho que grifei acima, para o Freud “otimista” deste belo escrito; pessimista é o poeta. Freud tinha, como já destaquei no início, todos os motivos (e ainda viria a ter bem mais!) para ser pessimista, como muitas pessoas o classificam, algo com o que nunca concordei. Eu sempre achei Freud muito mais realista. Seu otimismo aparece claramente pelo conforto que tenta dar ao seu amigo, mas também pelo texto em si: trata de um tema melancólico (pela posição do poeta) em um momento tão difícil (seria fácil concordar com o jovem amigo), mas Freud escreve de maneira leve, bela. Mais importante ainda para nós é que tal “otimismo” me leva a pensar em algo voltado para o futuro, algo não tão comum na produção freudiana. A sequência do texto mostra isso.

Freud estava, como vimos acima, comentando sobre o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade implicaria uma perda de valor do que é belo. Ele é enfático: “pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo” (p. 317) [Grifo meu]. Transitoriedade é o estado do que é momentâneo, do que passa, temporário (são definições de dicionário); ou seja, não é nem um estado, é um contínuo. Eu diria, é um evento. Vejam que interessante isso que Freud diz, vale a pena repetir: o valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo! Além de linda, essa definição aponta para o instante, o instante único, exato e, como todo o instante, fugitivo, fugaz, instantâneo. Mas não devemos entender (como o poeta parece estar pensando) esta fugacidade como algo que desaparece em essência. Desparece no sentido da tristeza do poeta, por virar passado, mas está sempre presente como memória afetiva e/ou por seus desenlaces e consequências. Não vejo maiores dificuldades em pensarmos dessa forma, pois está bastante de acordo com a ideia freudiana da importância do passado. Destaquei o futuro, que praticamente não dá as caras nas concepções de Freud, e que teremos de olhar com mais calma em outro momento, devido ao “otimismo” no texto. Mas há mais: a noção de escassez do tempo fala de eternidade; ele vai nos dando inícios disso.

“Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso parece menos bela” (p. 317-318) [Grifo meu].

Neste trecho, Freud reitera a ideia de eternidade que destaquei, mesmo que ele o faça de uma maneira mais concreta aparentemente: uma eternidade em relação à duração de nossas vidas. Mas para os nossos propósitos, clínicos, de que outra eternidade falaríamos? É isso que conta, é disso que se trata, não é? Seja eternidade via a “escassez do tempo”, ou via “durar para sempre”, dá no mesmo: podemos ter a compreensão de uma quebra da linearidade temporal, pois “só” o que temos é o momento atual. Dessa forma, passado, presente e futuro estão todos juntos e, ainda que não receba destaque, o futuro está implicado. Quando Freud fala em “retorno” ou “renovado (encanto)”, obviamente se refere ao passado, mas também há a necessidade do futuro: algo só pode retornar se houver, e de forma relevante, o futuro; e com isso acontecendo no presente (que é o único instante vivido na realidade). Eu o escuto falando sobre a passagem do tempo. A memória mantém o passado. Poderia também trazer o futuro?

Embora eu não vá tratar disso neste momento (como também não estou tratando da questão do futuro, apenas apontando direções), para não fugir tanto do texto freudiano, não posso me furtar de acrescentar algo que não está em Freud, mas que parece ser uma consequência natural das minhas interpretações. Se a “escassez do tempo”/eternidade junta os campos temporais, não seriam apenas passado, presente e futuro, afinal, temos outros tempos (e não apenas verbais), não é? Sendo assim, eu quero destacar o futuro do pretérito composto. Ou seja, não o que foi, ou será, ou é, mas o que poderia ter sido. Vejam bem: eu não utilizo a palavra deveria, pois assim sinto que estaria me referindo às faltas mais básicas que eram necessárias e que podem produzir traumas e/ou psicopatologias; não, eu uso a palavra poderia, o que faz toda a diferença. Este tempo, o futuro do pretérito composto, eu enxergo como o principal espaço temporal para pensarmos na psicanálise (clínica psicanalítica). Como disse, o entendimento disso (se é que teremos) terá de ser feito em outros futuros, mas tenho de colocar, ao menos, as bases do destaque desta ideia. Quando Winnicott (1963/2018) escreve seu clássico texto sobre o “medo do colapso”, fornece uma linha para eu seguir. Abordando o sentimento de “vazio”, ele diz que certos pacientes precisam vivenciar este vazio que pertence ao passado, mas que não pôde ser experenciado (por imaturidade). Não se trata de um trauma, é um não-acontecimento (o que deve ser muito pior).

“É mais fácil para um paciente se lembrar de um trauma do que se lembrar de nada acontecendo quando poderia ter acontecido. Na época, o paciente não soube o que poderia ter acontecido e, assim, não poderia experenciar qualquer coisa, exceto observar que algo poderia ter sido[1] (p. 93-94) [Grifo meu].

É um trecho explosivo este acima. Afastando a noção de trauma, Winnicott já nos diz que não está se referindo a nenhum conteúdo reprimido fruto do desejo frustrado, esse tipo de coisa, mas sim a algo que não foi vivenciado, e precisa ser agora, na relação transferencial com o analista. Também é essencial notar que ele destaca que a pessoa, na época (bem inicial), não soube o que poderia ter acontecido; ou seja: não se tem consciência, não se trata do que se desejou e não se teve, mas simplesmente de algo que poderia ter sido e que não fazemos a mínima ideia do que é. O meu interesse nesse campo temporal vem da minha clínica: vagarosamente, por vários anos, ia percebendo que o modelo clássico de conteúdos reprimidos (assim, apontando para o passado), ainda que válido, não era suficiente, talvez até para a maioria dos casos. Então, tem de ter algo mais, ou a psicanálise não funciona. Winnicott também retira suas todas as construções da clínica, embora sua experiência seja bem diferente da minha. No artigo que estou citando (e em boa parte dos outros), ele tem como base o tratamento de pacientes mais “difíceis”, mais regressivos, casos de psicose, etc. Na minha conjuntura, trata-se muito mais de pacientes “normais”, os “neuróticos comuns”; dessa forma, meus exemplos são os mais comuns que existem, que acontecem com todos nós, todos os dias. Então, se eu decido almoçar em casa ou invés de fora, ou mesmo indo almoçar fora, mas opto por um lugar ao invés de outro, estabelece-se algo que poderia ter sido; e não foi. O que é? Não há a mínima ideia, é um infinito de possibilidades. Claro que contam situações maiores, como se casar ou se separar, trocar de emprego, etc., mas estou querendo marcar que isso diz respeito aos pequenos detalhes, mínimos movimentos. Deste jeito, constantemente eventos que poderiam ter sido (e que não temos a menor ideia do que seriam) estão acontecendo, desenrolando-se. Eu acredito firmemente que isso tem uma importância capital no funcionamento psíquico, na nossa vida real, em sofrimentos que possamos ter.

Eu ainda irei debater muito sobre isso (no futuro), mas por agora, voltemos ao texto de Freud, ele ainda nos oferece mais.


II - REPETIÇÃO E REGRESSÃO


Como ainda quero sublinhar pontos importantes na última citação que coloquei, vou a transcrever novamente para tentarmos não perder o fio:

“Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, de modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso parece menos bela” (FREUD, 1916/1996, p. 317-318) [Grifo meu].

Passando pela eternidade da transitoriedade que prestamos atenção no fim do capítulo anterior, Freud alude a outro tópico de suma importância, que também já esbarramos agora há pouco: a repetição. Não há como abordarmos o tempo sem abordarmos a repetição. Este tema é, além de sua relevância, complexo, mas é pertinente apontar como ele faz seu aparecimento neste pequeno texto. A “beleza da Natureza” retornar no ano seguinte não significa, como todos sabemos, que é uma reprodução, afinal, as flores, por exemplo, não são as mesmas, ainda que sua beleza possa ser equivalente (não consigo deixar de pensar que Freud teve uma inspiração shakespeariana ao escrever esta frase da flor!); a beleza da face humana que adquire renovado encanto, também é outra face, ainda que seja da mesma pessoa (será que é mesmo?). Assim, a repetição é diferente. Na verdade, a repetição é sempre diferente, isso é parte intrínseca; uma repetição no sentido de reprodução (a famosa “repetição do mesmo”) é impossível. Como já venho ressaltando, veremos isso também com mais calma posteriormente, mas é de se notar como Freud, delicadamente, está colocando esta, aí sim, questão essencial em sua teoria, mais ainda a partir de 1920, em um escrito que trata (também) da temporalidade. É como se o tema do tempo tivesse de ser costurado na obra de Freud, como se ele tivesse nos deixado várias pistas por todos os seus textos sem (quase) nunca ter falado disso objetivamente; ainda que estivesse falando disso o tempo todo.

Freud segue seu raciocínio questionando o motivo pelo qual a beleza de uma realização artística ou intelectual deva perder valor por sua limitação temporal. Até cogita a possibilidade de tudo ser reduzido a pó, ou ainda que a evolução traga uma “raça de homens” que não compreendam as obras de poetas e pensadores, ou mesmo uma era geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a Terra. Mesmo assim, ele não consegue conceber a perda da relevância da beleza devido à transitoriedade. “Visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para a nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta” (FREUD, 1916/1996, p. 318) [Grifo meu]. Aqui, temos a memória emocional, o que é uma redundância, pois toda a memória é emocional (da mesma forma de que o que é belo o é pela sua conexão emocional: não existe um belo universal). O que faz com que o instante (oportuno) tenha eternidade (mesmo sendo “fugaz” e nunca mais se reproduzindo) é, nas palavras que Freud escreveu, “sua significação para a nossa vida emocional”, e isso independe de ter havido continuidade ou não na nossa vida real. Claro, há uma grande diferença entre este momento ser “fixado” (isso não tem nada a ver com os pontos de fixação libidinais!) em nossa vida corrente do que continuar a existir em outro lugar (temos ainda de ver do que se trata esta memória e, mais ainda, este “outro lugar”). O “fixado” está entre aspas porque talvez não seja a melhor expressão a ser usada, pois estou me referindo a uma continuidade, ou seja, algo em movimento, não o que fica gravado sei lá onde, como se o instante fosse um tipo de gatilho que podemos aproveitar, fazer uso, e, com isso, desenvolvê-lo, o que quer dizer que não se mantém igual, vai se repetindo (de forma diferente, como já devemos saber). De qualquer forma, seja aonde for estabelecido, o instante permanece, mantendo, assim, sua eternidade.

Há o fim da citação acima, quando Freud escreve “duração absoluta”, referindo que a beleza não depende desta. Para mim, é muito claro que ele está falando sobre os desejos do poeta, então, a duração absoluta estaria quase apontando para uma não passagem do tempo, o que nos levaria aos temas da nostalgia, ou seja, ele está falando sobre uma duração real, concreta, “para além de nós”, como é o mais comum em sua obra; porém, podemos ver isso de outra maneira, se a duração absoluta for entendida como essa forma que foge da temporalidade linear, até pelo “absoluta”, que parece remeter ao que já vimos de eternidade. Ou seja: duração absoluta não é algo que dura para sempre no sentido linear, de permanecer para sempre exatamente da maneira que foi concebido (como o jovem poeta parece reivindicar), o que seria um estado estático (e impossível), mas sim uma permanência móvel, em constante mudança, mas sempre presente. Claramente há ecos nisso que digo de Henri Bergson, afinal, duração é um dos principais conceitos do grande filósofo francês. E sim, muitas ideias minhas coincidem bastante com as de Bergson, contudo, elas se apartam em vários outros caminhos, assim como a (bela) interpretação que Deleuze faz de sua obra.

Então, Freud, vendo que suas intervenções, por mais que as achasse corretas, não tinham provocado efeito algum, descobre a resposta para o poeta ser imune aos seus argumentos: um fator emocional poderoso, uma revolta contra o luto. Na verdade, uma antecipação do luto pela morte da beleza que era transitória. “[...] Como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram [seus amigos] que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade” (FREUD, 1916/1996, p. 318). Daí, ele escreve um parágrafo resumindo de forma magnífica (como ele tinha a capacidade de fazer) o processo de luto que estaria tão mais desenvolvido um ano depois no texto histórico sobre o tema, como já apontei. Certamente, o luto é um assunto essencial, mesmo que indiretamente, quando pensamos a temporalidade (ao menos, da maneira que eu proponho); porém, não irei me alongar nele aqui, visto haver o texto tão importante sobre o tópico, e eu estar seguindo, neste momento, a trilha deste pequeno grande escrito. De qualquer forma, o parágrafo de Freud sobre o luto é, como tudo em “Sobre a transitoriedade”, extremamente rico e nos oferece muito para pensar, além de muitos caminhos a seguir.

Freud, portanto, esquematiza o que é o luto, algo que é familiar para quem estuda psicanálise, mas nem por isso (e esta é uma das grandes “armadilhas” dos textos freudianos considerados “de base”) deixa de mostrar elementos de relevância primeira e, muitas vezes, instigantes e até inéditos. Ele mesmo alerta que o luto por algo que amamos e perdemos pode ser considerado evidente em si mesmo para o leigo; “para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades” (p. 318) [Grifo meu]. Dessa forma, ele nos explica que temos a libido, nossa capacidade de amar, que em um momento muito inicial está voltada toda para o nosso ego (momento que ele chama de narcisismo). Ainda em uma etapa muito inicial, mas posterior, a libido é desviada do ego para objetos (externos), os quais, de certa forma, levamos para o nosso ego. Se estes objetos forem destruídos ou perdidos para nós, a nossa capacidade para amar (libido) poderá substituir esses objetos por outros ou retornar ao próprio ego temporariamente. Freud diz ser um mistério (enigma eu acho uma palavra melhor) o motivo pelo qual o desligamento do objeto deva ser tão penoso (ele já “sabe”, mas não está dizendo aqui). Termina o parágrafo afirmando: “vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto” (p. 318).

Para além do motivo pelo qual não largamos do objeto mesmo quando outro “se acha bem à mão”, que ele irá explicar no texto de 1917, sua breve explanação sobre o luto coloca um ponto muito precioso para entendermos/estudarmos o tempo na psicanálise. São dois pontos, na verdade, mas que se complementam. E, dependendo de como entendemos, contradizem-se. Vou me explicar. Ora, Freud está falando da evolução da libido com todas as suas fixações (sabemos disso porque lemos seus outros textos, tentamos criar uma unidade: é questionável, até certo ponto, se ela existe de fato). É uma evolução que obedece a uma linearidade. São as fases do desenvolvimento sexual: oral, anal, fálica. Isso é bem claro: são fases que devem ser ultrapassadas, tanto que existem eventos que marcam a passagem de uma para a outra (desmame, controle esfincteriano, etc.); é diferente de Melanie Klein, que fala de posições (esquizoparanoide e depressiva). Em Freud, a imagem dessa evolução é menos plástica do que é em Klein, pois na teoria dela as posições não são exatamente “superadas” como as fases freudianas, há mais claramente um “vai e volta”, uma “ondulação” maior entre elas. Juntamente, há a evolução da libido para a relação com objetos, posterior a uma relação exclusivamente com o próprio ego. Existe, do meu ponto de vista, uma grande demanda aqui sobre a presença ou não, e como ela é, do tal objeto externo nesses estados iniciais do desenvolvimento, que eu acho que Winnicott é quem oferece a melhor solução, mas isso vai além da minha proposta agora. Fato é que Freud, por mais interpretações que possamos fazer (e algumas bem grosseiras) propõe uma evolução linear na maior parte do tempo, temos todos os fatos e justificativas para afirmar isso a partir da sua obra. É só isso que ele faz? Claro que não! Mas o modelo sucessivo, tal qual a mecânica clássica dominante em sua época, na qual ele estava inserido, é inegável, por mais que se possa (e se pode muito) ir além no entendimento pelo que ele próprio nos mostra, e neste texto mesmo. Agora, negar esta concepção mais conservadora, é forçar a barra. Neste progresso espacialmente sequencial, Freud afirma, falando do luto, que uma das alternativas é retornar para o próprio ego. Claro, sabemos que a libido nunca deixa o ego completamente (ele nos diz isso), mas há um retorno maciço no luto. Ainda que não nomeie, ele está se referindo ao conceito de regressão. A regressão é essencial na compreensão da teoria psicanalítica, está presente, basicamente, em todas as manifestações do inconsciente, sendo ponto indispensável para a formação dos sonhos e, consequentemente, para as psicopatologias, as parapraxias, as transferências. É só olharmos o capítulo mais famoso e importante da história da psicanálise, o capítulo VII de “A interpretação de sonhos”(FREUD, 1900b/1996), onde inclusive Freud desenha para quem tenha dificuldade de entender: o modelo do aparelho psíquico é o modelo do arco reflexo da Física (com um monte de coisas no meio!). Não há linearidade aqui? (Mesmo com o seu conhecido lembrete de que seus desenhos não devem ser levados “ao pé da letra”, pois não se tratam de lugares anatômicos, etc. – que não sejam lugares anatômicos, isso ele nem precisava dizer, é claro que não são, mas não é um modelo linear?).

Agora, se seguirmos o modelo da mecânica newtoniana, a inversão das equações não faz diferença, não há estabelecimento da flecha temporal. Em muitos momentos de sua obra, Freud se adequa a isso, o que não é nenhuma surpresa, afinal, ele era um cientista de sua época; por mais diferente que fosse, sua formação e seu pensamento obedeciam aos padrões vigentes. Se há uma evolução por fases, linear, volta-se da mesma maneira, não? É o que a lógica diz. Entretanto, como vimos no início deste mesmo texto que estamos discutindo, Freud alude uma repetição que não é reprodução. Isso não é, de forma alguma, inequívoco, mas são muitas as passagens e construções de sua obra que apontam para esse discernimento (outras, não!). Há um imbróglio aqui: como é esta regressão? Em que ela consiste? É um voltar para o mesmo lugar? Se assim for, boa parte (para não ser trágico) do valor clínico da psicanálise vai por água abaixo. É uma volta diferente (como eu - e muitos - entendo)? Se é dessa forma, muito da teorização sobre a regressão perde o sentido. É porque estas duas últimas respostas são contraditórias, e esta contradição está na obra de Freud: em alguns momentos pende para um lado; em outros, para outro. Isso coloca a regressão no centro da nossa tentativa de entender o tempo na psicanálise.


III - ESPERANÇA


Freud se encaminha para o fim do texto, os últimos dois parágrafos, situando-nos na conversa com o poeta: ocorreu no verão antes da Guerra.

“Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que considerávamos imutáveis”. (FREUD, 1916/1996, p. 319) [Grifo meu].

Isso é lindo. Absolutamente lindo. E triste também (afinal, uma coisa não exclui a outra, não é?). Além da bela leitura que Freud faz do momento (e que tanto serve para outras análises, mais “sociais”), ele traz de volta (de maneira diferente!) questões que já levantou, e que eu também já comentei aqui. Começando pelo fim do parágrafo (como quase sempre, eu faço as coisas ao contrário), ele destaca a Guerra nos mostrando que as coisas que consideramos imutáveis são, na verdade, efêmeras. Eu não entendo isso (e o último parágrafo do texto me apoia nesse entendimento) nem como “tudo passa para sempre”, pelo “efêmeras”, nem, muito menos, como que as coisas são ou deveriam ser para sempre de forma exata, pelo “imutáveis”, partes que destaquei no trecho transcrito acima. Eu considero como movimento. A brevidade do que amamos atesta sim que não são imutáveis, mas, de maneira alguma, anuncia seu desaparecimento. É como o próprio Sigmund disse no início: a valor da transitoriedade está na escassez do tempo, ou seja, na sua efemeridade. E este valor, vamos agora um pouco mais longe, não é por persistir apenas na memória, mas por continuar aqui, mesmo que não mais de maneira evidente, não mais presencialmente.

Já no início da passagem citada acima, eu salientei quando Freud fala sobre nossas “esperanças destroçadas” pela irrupção da Grande Guerra. Novamente, ele me dará razão (em parte, ao menos) no último parágrafo daqui a pouco. Como eu disse anteriormente, mais para o início deste artigo, mesmo com a atrocidade da 1ª Guerra, Freud parece ser mais “otimista”, pela leveza e beleza do texto, o que me leva pensar em algo voltado para o futuro. Também escrevi que isso, o destaque para o futuro, não é algo comum na obra de Freud. E não é mesmo! Argumentos do tipo: isso está subentendido, visto nosso tratamento psicanalítico estar interessado no futuro por tratar de como a pessoa estará mais apta a viver a vida melhor, são tão frágeis quanto achar que George Harrison era o melhor beatle (ou, para o que sirva, qualquer um que não seja John Lennon!). Decerto há razão nisso, mas ter algo subentendido em uma teoria, facilmente (e geralmente!) remete ao não reconhecimento deste algo. Estranho alguma coisa estar ali, latente e não por isso menos importante, mas não ser nunca centralizada na teorização. Parece-me mais desculpa pronta para quando alguém questionar. A psicanálise se preocupa muito mais com o passado, seja na teoria ou, pior ainda, na clínica. Existem várias pessoas que se revoltam contra o que acabei de escrever (todo o meu trajeto na psicanálise, em uma instituição plural, deve ter sido uma bizarrice então). Devem ser estas pessoas que acham que o solo de “While My Guitar Gently Weeps” é tocado por George Harrison (e eu não tenho nada contra ele! Ótimo músico! Só estou colocando uma posição).

De qualquer forma, Freud ressalta (eu o fiz na verdade) a destruição da esperança. Essa palavra é tão importante por remeter ao real: todas as pessoas que nos procuram para tratamento têm esperanças, de diferentes formas e intensidades. E é essencial: sem esperança não há tratamento (e nem vida, eu diria – e, afinal, a análise só tem valor porque está voltada para o objetivo de a pessoa viver a realidade da melhor forma possível). Deliberadamente, eu não uso a palavra desejo, tão sagrada (e por motivos errados na maior parte das vezes): desejo de se analisar, desejo de melhorar, de mudar, seja lá o que for. Dos últimos, eu até concordo, ter um desejo de modificar algo em sua vida, ainda que seja questionável; agora, desejo de se tratar? Não, ninguém em sã consciência pode desejar isso! Tratamento caro, longo, para muito além da paciência de qualquer um, com uma pessoa remexendo (é o que a maioria faz) insistentemente no teu passado! O próprio Freud, inclusive, afirmou, bem no fim de sua vida, em uma passagem do tipo que parece que muitos preferem fazer de conta que não existe, que não havia, até aquele momento, nada melhor terapeuticamente do que a psicanálise propunha; porém, “o futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta [no analisando], através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental” (FREUD, 1940/1996, p. 196) [Grifo meu]. Ele nunca abriu mão desse projeto, apesar de tudo. Alguém poderia dizer que eu estou desconsiderando que o desejo é inconsciente, etc. Eu estou sim, mas só da maneira unívoca de interpretação que foi proposta (e vastamente aceita) na psicanálise. É claro que o desejo é um elemento muito importante na psicanálise, afinal, está na sua base: o (significado oculto do) sonho (e de qualquer outra manifestação inconsciente) é uma realização de desejo (inconsciente). Desejo que não pôde ser realizado, seja por impedimentos externos, seja por impedimentos internos (que são os piores). Está lá, no capítulo III de “A interpretação de sonhos” (FREUD, 1900a/1996), é o título do capítulo até.

Contudo, a maneira como o desejo foi colado na psicanálise, mas precisamente em Freud, como sendo, indubitavelmente, o que “Freud disse”, não é correta. É justa, válida, como tantas outras construções que podemos fazer em cima da sua obra (ele, mesmo que possa não ter tido este objetivo, deixou todas estas portas abertas), mas não é “a verdade” de Freud, como geralmente é passada, mas uma possibilidade. O desejo, como aprendermos da maneira que é altamente propagada, é a leitura que Lacan fez da leitura que Alexandre Kojève (quem “levou” Hegel para a França) fez sobre o desejo na obra de Hegel. É uma leitura da leitura do original aplicada a outro autor (e, muitas vezes, são as pessoas que aceitam isso furiosamente que reclamam de tradução da tradução...). é uma produção fantástica, bela, justa. Mas Freud falou do desejo com base em Hegel? Por favor...

Bom, mas já estamos nos desviando demasiadamente do proposto neste momento, inclusive misturando questões, como a importância e o papel de uma metapsicologia. Reconhecemos o caráter inconsciente do desejo e seu valor, mas isso não quer dizer que ele deve ser tomado em uma vertente filosófica (que pouco tem a ver com a psicanálise originalmente), isso de “desejo ser desejo de desejo”, etc. Eu concebo o desejo psicanalítico, tal como foi configurado por Freud, muito mais mundano, nada “divino”, muito mais “palpável”. Por isso, eu prefiro utilizar a palavra esperança aqui, para marcar uma diferença. Não só por ela ser menos poluída ideologicamente do que “desejo”, não só por me dar a impressão de trazer certo frescor para algo que sinto tão rançoso e inadequado para o que penso, mas por ser algo mais “mundano”. Eu estou interessado no real (não o lacaniano, obviamente), ou seja, na clínica psicanalítica, não em grandes construções metapsicológicas ou metafísicas que não levam para lugar algum: não tenho o menor interesse em filosofar, afinal, sou um psicanalista.

Que se fale do passado, que se analise o passado, ok, é óbvio que isso é muito importante em um tratamento psicanalítico; porém, não acho, de forma alguma, que se resuma a isso. Ora, ninguém vai para uma análise predeterminado, com o “desejo” de falar sobre seus pais (afora os que foram bem ensinados de que é isso que se faz em uma análise). Por mais fundamental que isso seja, e que aconteça naturalmente, sem que o analista tenha especial interesse pelo tema (algo que todos negam publicamente, mas não corresponde ao que acontece na intimidade do atendimento), o que move o analisando é a esperança em um futuro melhor. Ter esperança é ter futuro (um possível futuro, que seja). É a esperança de que algo aconteça, que seja experenciado (sim, isso é totalmente winnicottiano). “Não ter futuro: essa sim é a grande tragédia da vida”. Tragédia não está no passado, por pior que ele possa ter sido.


EPÍLOGO


Chegamos, então, ao último parágrafo do texto de Freud. Vamos dar atenção a ele, deveria ser aplaudido de pé, como tudo o que veio antes.

Freud diz que não é surpresa que, ao ser privada dos objetos amados, nossa libido se apegue tão ferrenhamente aos que sobraram, como o amor e orgulho mais vigoroso pela pátria e pelos entes mais próximos (e isso dá margem para toda uma outra importante interpretação sociológica). “Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência?” (FREUD, 1916/1996, p. 319). Ele dá a resposta que já está dada em todo o artigo: os que pensam assim, encontram-se em um estado de luto, que é perfeitamente natural. Além do luto, podemos seguir a linha de pensamento que estou propondo: o fato é que as coisas (os “bens”, como ele chama) não são perecíveis, elas permanecem, só não no mesmo estado e, muitas vezes, não na realidade. Ele afirma que o luto chega a um fim de maneira espontânea, por mais doloroso que possa ser (e sempre é!), deixando nossa libido livre novamente enquanto ainda formos jovens e ativos. Eu acho isso interessante: Freud falou sobre a não indicação de análise para pessoas mais “velhas”, o que naquela época era alguém acima dos 60 anos. Não é mais assim hoje. Um dos motivos que ele colocava era de que o aparato psíquico já não estaria em condições de sofrer as modificações necessárias em um tratamento psicanalítico. Isso tudo vai por água abaixo, não só pela faixa etária modificada, mas se pensarmos em um tipo de aproximação diferente do que ele pensava na clínica. Sempre é importante ressaltar: Freud estava certo! Isso não é medo de contrariar o mestre (já passei disso!), mas é reconhecer o cenário: Freud produziu há mais de cem anos, em Viena; é um absurdo transpor suas ideias exatamente para os dias de hoje (e no Brasil!) e querer que elas façam sentido socialmente com o tempo em que vivemos. Assim, eu entendo o “jovens e ativos” não por uma questão de idade, mas por uma “jovialidade” e “atividade” que tem mais a ver com a esperança e força para ir adiante, independentemente da idade em anos da pessoa. Além disso, ele diz que a substituição dos objetos perdidos pela nossa libido pode ser por objetos “[...] novos igualmente, ou ainda mais, preciosos” (p. 319). Além de “otimista”, ele está confirmando a ideia de que a repetição aponta para uma diferença: talvez o luto nos impeça de ver essa diferença como possivelmente melhor, mas pode ser sim mais “preciosa”. Então, vem o fim, belíssimo, do texto.

“É de esperar que isso [fim do luto] também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta da fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes” (p. 319).

Só irei repetir o que já disse aqui. No entanto, há sim algo a mais: sempre há em autores como Freud. A “fragilidade” que ele cita, e já está presente desde o início, é intrigante, como se fosse motivo de não valorização. Da maneira que estamos vendo, a fragilidade é o único aspecto possível, uma vez que a “robustez” não é real, não é plausível. Mas quando nomeamos as coisas de “frágeis” não quer dizer que são fracas, quer dizer que estão inseridas nesse labirinto do tempo, em que tudo passa e tudo permanece, ou seja, não ficam iguais, mas em constante movimento. Quando Freud escreve sobre reconstruir tudo o que foi destruído, e, talvez, em “terreno mais firme e de forma mais duradoura”, não há como não entendermos a repetição como diferença. Isso pode parecer, para alguns, um tipo de exercício em vão, afinal, todos sabemos que a repetição é diferente, até pela obra monumental de Deleuze; mas não. A repetição diferencial não é um dado na obra de Freud, em muitos momentos ele aponta na direção de uma repetição do mesmo, uma linearidade, como já destaquei. Fato é que Freud nunca nos decepciona: pode-se (deve-se!) questionar suas concepções, mas ele é sempre um autor profundo e instigante. E, afinal de contas, foi ele quem inventou nossa área de atuação, a psicanálise, como falar dela sem o ter como base?


Várias interrogações ficam de tudo o que escrevi, e como tenho interesse de as perseguir (ou talvez sejam elas que me persigam!), devo as identificar. De forma mais abrangente, como já disse desde o início, há a temporalidade aludida neste texto, pois aponta para a repetição, a regressão (através do luto), elementos essenciais para entender este tempo (psicanalítico). Como ficam as relações entre passado, presente e futuro e, mais ainda, o futuro do pretérito composto? É necessário analisar a formação científica de Freud, o contexto no qual ele estava inserido e fazendo parte, pois é bastante determinante em suas escolhas, e também traz várias contradições. Como fica, e qual o tamanho da relevância, de uma metapsicologia na psicanálise? Os tópicos clínicos que destaquei (e que são meu maior interesse) também: como é o “acontecer” na análise, o se sentir vivo (que é viver pela primeira vez o que poderia ter sido) que está intimamente ligado à temporalidade? Como é o futuro? Com base no que escrevi, podemos prever? Como é a repetição e em que estado fica a regressão? O que significa o caminho que sugeri de criação? No que isso se diferencia do que já fazemos em nossos tratamentos? O que é, de fato, algo novo? São muitas arestas que se apresentam para podermos ir adiante. Penso que todas estas questões terão de ser abordadas uma de cada vez, separadamente, mas todas se completando.

Com muita sorte, talvez isso possa ser feito em “terreno mais firme e de forma mais duradoura” do que já fiz antes.


REFERÊNCIAS


CORRÊA, Juliano. “A vida segue...”. 2023. https://www.julianocorrea.com/post/a-vida-segue.


FREUD, Sigmund. (1900a). A interpretação dos sonhos – primeira parte. In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. V.


______. (1900b). A interpretação dos sonhos – segunda parte. In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. V.


______. (1915). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.


______. (1916). Sobre a transitoriedade. In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.


______. (1917). Luto e melancolia. In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.


______. (1926). A questão da análise leiga In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XX.


______. (1933). Por que a guerra? In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII.


______. (1940). Esboço de psicanálise In: ______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXIII.


WINNICOTT, Donald Woods. (1963). Fear of breakdown. In: ______. Psycho-analytic explorations. London/New York: Routledge, 2018.



[1] “It is easier for a patient to remember trauma than to remember nothing happening when it might have happened. At the time the patient did not know what might have happened, and so could not experience anything except to note that something might have been”. Tradução minha.




Vídeo da lindíssima canção de Siouxsie and the Banshees, não exatamente inspiração, mas que fez conexão com este texto. E tem legendas! (Em inglês, mas é sempre melhor termos acesso ao original!).







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