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  • Foto do escritorJuliano Corrêa

"A vida segue..."


É interessante o que a internet nos traz aleatoriamente sem estarmos procurando; ok, nem tão aleatoriamente assim, há o tal algoritmo mostrando coisas semelhantes ao que já foi visto, parece que é o novo “desejo inconsciente”. Eu fui pego de surpresa, no YouTube, por uma série (acho que é) do Brian Johnson, o segundo vocalista da história do AC/DC, na qual ele entrevista músicos em uma van. O meu espanto foi o ver entrevistando o Sting! Parecia uma coisa tão sem parentesco! Aí soube, no episódio, que ambos são de Newcastle, dividem lembranças dos seus inícios lá, etc. Então, eles estão na van, batendo papo, rodando por Nova Iorque, e param no CBGB & OMFUG na Bowery, no East Village, o “berço” do punk. A sigla é para o incomum nome para um bar: Country, Bluegrass, and Blues and Other Music for Uplifting Gomandizers! Bar histórico, onde bandas como Television, Talking Heads e Blondie (além dos Ramones, claro) despontaram, foi lá que o Police fez seu primeiro show nos Estados Unidos, em 1978. Hoje loja de John Varvatos, o famoso designer mantém, dentre seus produtos caríssimos, o famoso toldo da entrada e o mesmo formato físico do lugar (menos, obviamente, o icônico banheiro!), e, como dito no episódio, está mais limpo e cheira melhor.

Quando os dois artistas estão lá, conhecendo o “novo” lugar, e lembrando do “antigo”, em um momento Brian puxa Sting para o lado e sussurra: “mas é meio triste, né?”. Ele está dizendo isso por ser saudoso do CBGB. Sting responde: “não, é interessante”. O eterno baixista e vocalista do Police então diz: “eu não sou realmente nostálgico” (isso é confirmado por várias entrevistas e atitudes dele, dá para acreditar). O vocalista do AC/DC se entristece um pouco dizendo que é uma pessoa nostálgica, que fica nostálgico procurando por um sentimento, mas tentando concordar com seu conterrâneo, assevera: “life moves on”, ao que Sting concorda: “vamos viver o momento”. A vida segue.

Não ser nostálgico não significa, absolutamente, não levar em conta o passado. O próprio Sting fala de uma “música que vem pelas paredes” no CBGB pela história do lugar, e ele mesmo toca músicas do Police em seus shows até hoje, mas é bem diferente. Quero dizer que ele não nega de forma alguma o passado, faz parte do atual, do que ele é; mas, ao mesmo tempo, ele não vive no/do passado, sustentando-se apenas das imensamente bem sucedidas músicas de sua antiga banda. Ele não faz como, por exemplo, grupos como The Who (que é um dos melhores que já existiu, não misturemos as coisas) fazem: de tempos em tempos, há mais de 30 anos, realizam uma “turnê de despedida” tocando somente canções antigas (e já bem deteriorados...), sem nenhuma produção nova; ou como, ainda pior, o Guns N’ Roses, que tentam fazer exatamente o mesmo show de 1992 em 2022. Sério, eu fiquei profundamente angustiado com este show deles no último Rock In Rio, que é outra coisa que me intriga: por que o Rock In Rio tem de ter show do Guns? Porque eles fizeram um show histórico 30 anos atrás? (Não será surpresa se tivermos um show do holograma do Freddie Mercury com o Queen daqui a pouco...). Voltando: eu fiquei angustiado porque achei que o Axl Rose fosse morrer no palco a qualquer momento! Era assustador o ver suando e vermelho pela tremenda força que fazia para cantar e performar como em 1992; um arremedo patético do que foram. Por que isso? Fazia-me esta pergunta (que serve para vários outros...) o tempo todo enquanto sofria (não mais que ele) vendo aquele show. Por que continuar tentando (e falhando miseravelmente) fazer a mesma coisa ao invés de seguir? Não é mais 1992! Até ele pediu desculpas pelo desempenho depois.

Live moves on. É importante ir em frente. E isso não tem nada a ver com aquela coisa, principalmente quando algo ruim ocorre na vida da pessoa, de “não se pensar nisso” ou “bola pra frente”! Esse tipo de coisa geralmente é uma grande bobagem! (E este site não é de coaching!). É como naquela belíssima música dos Tribalistas: “na vida só resta seguir...”. Porque não há outra opção. Agora, como é esse seguir adiante, isso sim é o interessante (e altamente complexo).

Eu entendo a nostalgia como querer que o passado continue exatamente como foi ou, pior ainda, que ele retorne de forma intacta. Ora, a história já nos mostrou (e a ficção também) o quanto desastroso isso é em um contexto mais amplo, de sociedade, do que o nível pessoal que eu abordo aqui e que é o meu interesse. Sempre dá merda! Isso é trágico justamente por ser impossível. Não sou eu que estou decidindo isso, é a Física: a entropia, base da segunda lei da Termodinâmica, também tão importante para a mecânica quântica, estabelece a irreversibilidade temporal. Ou seja, não se tem escolha, sempre se segue adiante.

O nostálgico tem um problema com o futuro, ou apego demasiado ao passado, o que dá no mesmo. Assim, sua lembrança parece ter muito pouco do presente e do futuro, e muito de um passado anormal. Por que anormal? Não tem nada a ver com o que o passado foi de fato (pode ter sido bem normalzinho); tem a ver com um passado que continua a ser precisamente, sem tirar nem por, como foi. Ora, nossa memória tem duas características essenciais: o enlace afetivo (deve ser por isso que elas se criam) e a passagem do tempo. Ambas se misturam: o afeto envolvido está sempre se movendo, por isso que, por exemplo, uma canção que traz fortes lembranças de toda uma época/situação é ouvida hoje com seu forte apelo sentimental do passado, mas invariavelmente assume novas cores emocionais. Este nostálgico (que perfeitamente podemos chamar de conservador, reacionário) constitui uma memória estática, que não se renova, não se (re) constrói. Ou seja, nem se trata mais de memória, afinal, não se lembra do que ainda não passou. Além disso, ele desconsidera a unicidade da memória. Que quer dizer isso? É como eu ter ido ontem, digamos, na “pobreta” da Urca, aqui no Rio (lugar que eu adoro!), e a pessoa que supostamente foi comigo dividir a mesma lembrança que eu: está posto, nada muda isso, fomos lá, bebemos, conversamos, vimos o sol se pondo lindamente (é um dos mais belos do Rio de Janeiro), o Cristo iluminado, os barcos na Baía de Guanabara, os aviões decolando do Santos Dumont. Mas eu e esta pessoa temos a mesma lembrança deste momento tão bom? Se temos, algo está errado, pois está parado, concreto, uma simples lembrança “burocrática”. Não é assim que funciona, é? Nossa lembrança está em movimento. Pelo contexto, pelas nossas emoções próprias, eu e minha companhia imaginária não temos a mínima possibilidade de dividirmos as mesmas memórias de nosso passeio mágico. Talvez seja por isso que pessoas que foram quase que literalmente quebradas por eventos da vida relatem verem as coisas em preto e branco. A memória é colorida, da mesma forma como Winnicott disse que a criatividade é o que dá um colorido na vida; memória e imaginação dividem o mesmo processo cerebral, podem pesquisar nos trabalhos neurológicos/cognitivos. Não é exagero dizer que o nostálgico vive em um mundo morto, pois o tempo não passou. Na verdade, ele não tem nem memória, nem imaginação.

A memória é afetiva, portanto, mutável, sempre em movimento: o evento é o mesmo, mas pode se tornar uma memória agradável ou horrível dependendo do nosso investimento emocional agora, e isso pode mudar o tempo todo. Dessa forma, a memória carrega muito mais do presente/futuro do que do passado que, em si, está morto, somente sobrevive (e com força) por causa dos nossos afetos atuais. Trazemos o passado conosco sob a medida do futuro. Faz uma grande diferença. O passado não se resolve no passado (escavando-o), mas no presente, no futuro (criando-o). Assim, o passado é criado tanto quanto o futuro.

Isso traz grandes consequências. Se andamos “sempre em frente”, como se explica o passado que está sempre aqui? Como fica tudo isso? Obviamente o tempo não segue uma imagem linear, nem circular ou espiral (esta última ainda é menos pior que as anteriores), mas sim a alegoria de um labirinto. Eu ia colocar como título desta crônica “A vida segue adiante”. É um pleonasmo. Mas eu não preocupo com isso: uma das bases da minha escrita é o pleonasmo! (Às vezes propositalmente; outras, por ignorância mesmo). Não foi uma questão do português culto (ele tem pouco lugar aqui), mas porque a vida segue sim, mas não necessariamente para frente, ela pode seguir para trás também! Isso é totalmente contraintuitivo, mas assim é a mecânica quântica e ela nos mostra isso: pode-se avançar para trás também ao mesmo tempo. Só que isso não é “voltar no tempo”, não é viver novamente. Não se revive o passado, mas se pode viver o que já foi (mesmo sem ter sido), exatamente por estar aqui ainda (mas sempre de maneira diferente, afinal, não somos nostálgicos).

Eu disse, mais no início, que esta é uma questão de alta complexidade; não há respostas para isso aqui. Teremos de fazer muito mais ainda (e espero que eu faça) para começarmos a compreender, a ter uma noção melhor de como isso realmente funciona em nossas vidas, mas também na clínica com os analisandos, que acaba sendo quase sempre o meu interesse principal.

A questão é como se segue adiante, já que não temos outra escolha de “direção”; nos exemplos que dei: é bem diferente como The Who ou o Guns N’ Roses “seguiram posteriormente” e como Sting/The Police “seguiu”. Não é, obviamente, o fato de tocar as mesmas músicas ou reunir a banda para uma turnê, mas como se faz. O passado, é claro, sempre está conosco: lembramos vividamente de situações, objetos, contextos, às vezes, nos seus mínimos detalhes, e gostamos (nem sempre!) disso. Só que, para muita tristeza, não dá para reviver o passado tal qual (nem se for para promover mudanças!). Nada se repete! É sempre diferente.

Isso tudo não quer dizer que Brian Johnson seja um nostálgico; eu que apenas peguei seu “instante de nostalgia” para ilustrar uma ideia. As memórias que os dois artistas dividem na van até chegar ao CBGB talvez mostre isso (basicamente tudo que eles conversam é calcado em memórias!): é claro que lembramos de (certas) coisas e temos saudades. Mas isso não quer dizer que queiramos as reviver, ou que elas continuem sendo do jeito que foram. Após a ida no bar do punk, Sting leva o amigo ao Phebe’s, duas quadras dali. O motivo: quando do primeiro show do Police no bar, Sting saiu no intervalo para comer alguma coisa naquele café. Ele conta que, além de faminto, tinha dinheiro contato (já com o que ganhou do show) para comer alguma coisa, então, quando a atendente foi servir mais café, recusou, pois não poderia pagar. Ela falou: “querido, aqui é América, a segunda xícara é de graça”. Lembrando-se disso, ele diz para Brian Johnson: “sabe, naquela noite eu me apaixonei pela América, quer dizer, isso é fantástico”. É uma coisa boa, mas não é uma lembrança saudosa; faz parte de quem ele é como uma memória afetiva e de grande peso. Será que ele pensou isso, teve esse apaixonamento naquele momento, ou algum tempo depois? Certamente não. Este apaixonamento é da lembrança que ele tem.


O episódio (chama-se A Life on the Road) está em três partes no YouTube, vou deixar o link para todas, pois é tudo muito legal, mas é o que está na terceira que eu mais me baseei (a história do CBGB e tudo mais). Está no original em inglês e não tem legendas (o que é ruim para quem não entende inglês...). Mas da terceira parte, ao menos, pelo que escrevi dá pra ter uma noção pelas imagens mesmo.

Parte I:


Parte II:


Parte III:





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