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Foto do escritorJuliano Corrêa

As frases maravilhosas


Alguns escritores têm a sensacional capacidade de abrirem seus textos com frases maravilhosas. Às vezes, até no título! Eu lembro de três livros que eu li exclusivamente por causa do título. “Sonho de uma noite de verão” foi a primeira peça de Shakespeare que li. É boa (não considero das suas melhores), mas o título... Só ele para mim já vale, desperta tanta coisa, traz e cria tantas memórias e sensações em mim... eu fico fascinado de alguém conseguir inventar um título desses.

O outro, foi “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera. O nome é lindo também, mas me gerou mais curiosidade de entender, e com o ar mais poético e misterioso. O livro é fantástico! E “explica”, de certa forma, o título: há toda uma construção sobre o peso, que geralmente vemos como algo ruim, e a leveza, que geralmente vemos como algo bom. Um exemplo que lembro, pois achei uma das passagens mais belas, é quando uma das protagonistas termina seu caso amoroso por vontade própria e fica se sentindo mal com isso. Por quê? Ele não insistiu, não a perseguiu, deixou-a livre. Aí há uma reflexão sobre as duas medidas não serem como normalmente podemos pensar: a leveza que nos faz tirar os pés do chão (da realidade) pode não ser muito boa; já o peso do amante sobre o próprio corpo pode ser algo fabuloso. Ou seja, relativiza a visão das coisas, o bom ou ruim é dependente do contexto. Enfim, como seu (agora ex) amante não estava causando nenhum estorvo em sua vida, chega-se à conclusão: seu problema não era de peso, era de leveza, ela estava enfrentando a insustentável leveza do ser. Nunca esqueci disso, de tão lindo que achei.

O último dessa pequena lista é “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, que é um caso à parte: talvez tenha sido o melhor livro que já li (esta eleição é bem complexa e controversa), minha vontade é escrever muitas páginas sobre (transcrever o livro inteiro talvez?), mas isso não seria nem um pouco suficiente, o que parece estar de acordo com a história. Eu li quando era muito novo (tinha uns 15 ou 16 anos – deveria ler novamente hoje), tanto que tive de desenhar uma árvore genealógica para me situar (os personagens têm todos o mesmo nome!), o que hoje seria muito fácil encontrar na internet (funciona, não por repetição de nomes, mais ou menos como com a série “Dark”). Eu resisti muito a ele porque, veja só, quando via a primeira página, era um parágrafo inteiro, e isso me cansava! Um dia, ao acaso, comecei a ler a primeira linha e simplesmente não consegui mais parar. Eu li uma crítica que disse que a primeira e a última página deveriam serem lidas de joelhos, pois eram momentos sublimes da literatura universal. Não discordo nem um pouco. O livro começa com a lembrança que o Coronel Aureliano Buendía teria, muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, da tarde em que seu pai o levou para conhecer o gelo (eu me arrepio só de lembrar disso!), quando o mundo era tão recente que muitas coisas não tinham nome, era preciso as apontar com o dedo; termina com Aureliano Babilônia decifrando, finalmente, os pergaminhos do cigano Melquíades, que revelavam o destino dos Buendía: que as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda chance sobre a terra. Isso tudo passando por Remedios, a Bela, mulher mais linda que já existiu no mundo, que ascendeu aos céus ao morrer virgem, pois era pura e simples, e assim, desprezava, achando graça, todos os homens que a cortejavam, e tantas outras histórias fantásticas contidas nesse livro. Parece que vai ter uma série baseada nele na Netflix (já vi até a chamada). Vamos ver... O próprio Garcia Márquez nunca vendeu os direitos do livro para o cinema por pensar (o que eu concordo) que sua criação não poderia ser colocada na tela de forma adequada. Seus herdeiros pensaram diferente...

Mas eu iniciei falando de frases sensacionais que abrem as obras. São várias. “A metamorfose”, de Kafka (grande inspiração para Garcia Márquez), que inicia diretamente ao ponto dizendo da manhã que Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrando-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso (em nenhum momento se fala que é uma barata!); “O estrangeiro”, de Albert Camus: “hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”; ainda, o magnífico “Os Maias”, de Eça de Queiroz, quando conta que a casa que família habitava era chamada de “O Ramalhete”.

Shakespeare, novamente, está no topo da lista. Só dois exemplos. Em “Antônio e Cleópatra”, logo no início na 1ª cena do Ato I, Cleópatra pergunta: “se é amor de fato, diga-me quanto”, ao que Antônio responde: “há pobreza no amor que pode ser medido”. E aquela que eu acho a maior abertura literária de todos os tempos, a primeira fala de “Ricardo III”: “agora é o inverno do nosso descontentamento”. Falo com a maior sinceridade: eu pagaria para ir ao teatro ouvir somente esta frase ser declamada. A peça é maravilhosa, mas só esta fala já seria valeria a pena. É sublime! (E veja, estou me atendo somente aos livros, teríamos tantas outras frases nas músicas também...).

Toltsoi tem um lugar importante neste “inventário” também. É famosa a abertura do belíssimo romance “Anna Karenina”: “todas as famílias felizes se parecem; as tristes, o são cada uma a sua maneira”. Mas há outro início deste russo (na verdade, é o início do 2º capítulo – o 1º é muito curtinho, mas a novela em si é pequena) que é o que me levou a escrever esta crônica. “A morte de Ivan Ilitch”. Diz assim: “a história da vida de Ivan Ilitch foi das mais simples, das mais comuns e, portanto, das mais terríveis”. (Todas as citações aqui são meio de memória e meio copiadas, ou seja, não confie cegamente nelas). Este trecho fez eu lembrar de tudo (e muito mais!) que escrevi até agora, mas me fez pensar em algo além, algo sobre o qual já venho escrevendo de certa forma, e que ainda será muito importante para o que tenho em mente.

Com a experiência de já ter feito tanta coisa muito idiota na minha vida, é claro que eu não iria fazer uma “análise” desses títulos e/ou inícios de livros; isso seria uma das coisas mais ridículas (e olhe que eu já fiz muitas). Não só por eu não ser muito favorável a análises literárias desse tipo (“psicanalíticas”), que acabam analisando mais o autor do que tirando riquezas da obra. Mas é que essas frases, como a abertura do monumento de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, “durante muito tempo, deitavam-me cedo”, são deslumbrantes a partir da leitura. Isoladamente, muitas delas não despertam nada. Você mesmo, se não leu algum dos livros que estou citando, deve estar vendo sentido nenhum nessas frases; agora, se leu, deve estar se encantando e abrindo um largo sorriso. É a memória que impõe a beleza. Como na música: uma nota sozinha não faz sentido, mas a harmonia entre elas produz algo que toca na alma. O que vou fazer é só uma pequena digressão da forte frase do russo genial.

Tolstoi condiciona, no trecho, a vida “simples” e “comum” como causa para ser “terrível”. Como acabei de dizer, o livro mostra isso mesmo: a vida de Ivan Ilitch foi sim terrível; e também foi simples e comum. Só que, aí vem a digressão: eu fico pensando que esta não é uma associação necessária, ou seja, não exatamente porque a vida de Ivan Ilitch foi simples e comum que ela foi terrível. Há conotações que podemos pensar nesse “simples e comum”.

Ivan Ilicht morreu (já está no título), mas será que viveu de fato? Eu, que já li o livro, acho que não, e aí está a questão.

Eu costumo pensar (acho isso desde sempre – e já repeti aqui no site!) que o simples é o difícil de se dizer/fazer; da mesma forma, talvez a vida comum seja a complexa de se viver. Como diferenciamos uma vida simples de uma vida...... qual palavra usar para esta oposição? Pois, da minha parte, eu achava, durante muito tempo, que uma vida verdadeiramente excitante deveria ter amores arrebatadores (que deixariam Romeu e Julieta com vergonha), trabalhos fantásticos (Prêmio Nobel seria pouco), e por aí vai. É uma ideia que acho que é fruto de uma parte romântica da minha formação pessoal (achei lindo o Werther do Goethe morrer de amor! Isso tudo quando estava no colégio ainda), mas que acabei, com tempo, pensando que não é tão legal assim, além de ser um tanto (ou um muito) fora da realidade. Afinal, a grande “história de amor” de Romeu e Julieta (que é do gênero tragédia – e teria muitas frases lindíssimas para colocar aqui também) acontece entre dois adolescentes de 13 e 17 anos (tudo bem, o contexto era outro), durante 4 dias, e termina com uns 6 mortos (os dois protagonistas se suicidando)!

Já há tempos, penso diferente. A vida (o que engloba a cidade em que se vive, o trabalho que se tem, as relações que se estabelece – ou as que se escolhe não estabelecer), nada disso diz sobre se ter uma vida rica, “extraordinária”, ou pobre. As coisas que realmente ficam na memória são as simples, e isso independe de serem grandiosas ou não. Eu não vejo o “horrível” da vida de Ivan Ilitch por causa do “simples e normal” – sua vida era, aparentemente, muito pouco excitante, trabalho burocrático, monotonias nas relações afetivas, etc. Mas não acho que é isso que fez sua vida horrível. O que a fez foi o fato de ele já estar morto antes de morrer fisicamente.

Claro, eu estou lembrando de Winnicott (em várias frentes, na verdade!). Como sua ideia da importância damonotonia, da rotina para o bebê, ou seja, o normal é que é o bom, o desejado, o necessário para que disso se possa fazer algo (seja lá o que for); a fuzarca, coisas a mais, podem ser ruins. Também a sua ideia central de a pessoa se sentir viva e verdadeira (o grande objetivo da psicoterapia psicanalítica); também na sua concepção de criatividade que é intrínseca a isso da maneira que vejo. Para Winnicott, o viver criativo não é ter o talento para grandes produções artísticas, mas sim ver um colorido na vida. É a “área do brincar”, dos fenômenos transicionais, tão essenciais para o nosso desenvolvimento. Desta forma, por exemplo, arrumar-se com prazer para sair à noite ouvindo uma música que se goste, é viver de forma criativa, uma maneira de encontrar seu lugar no mundo. É estar vivo de forma verdadeira. Sentir que a vida vale a pena ser vivida, uma ideia geral da teoria de Winnicott.

Winnicott nos diz sobre o verdadeiro e falso self. No verdadeiro, temos o gesto espontâneo, uma série de maneiras de se expressar, sempre relacionadas ao que há de mais autêntico, autêntico do cerne do ser; já o falso, toma forma justamente para proteger o verdadeiro quando este está ameaçado (pelo ambiente) e, em gradações mais graves, pode levar ao sentimento de irrealidade, de ser um “morto-vivo”, de somente estar aí, sem ser no mundo. Não é isso, a conquista de seu ser verdadeiro, que tentamos fazer com nossos analisandos? A partir daí, muito pode se desenrolar nos mistérios do acontecer. Só que o verdadeiro self não se dá assim de forma tão fácil. Lou Reed, falando sobre seu primoroso “Magic and Loss”, um disco sobre a morte, composto através da perda de duas pessoas muito queridas suas, diz que a lição do álbum é que a vida vale a pena ser vivida, mesmo quando nela haja dor; uma lição, ele completa, torturantemente difícil.

Há o caso da paciente de Winnicott que se suicidou. Eu sempre achei que é famoso por ter estudado isso muito cedo, mas realmente não sei se é (e nem procurei saber, pois não me interessa). Ele fala brevemente do caso no seu assombroso texto “Medo do colapso” (não lembro se cita em outro), e é muito forte e emocionante (a capacidade de lançar uma bomba em poucas linhas, como os autores que citei no início – e dele mesmo em outra crônica[1]). Ele conta que a mulher, que sofria de esquizofrenia, pedia para que ele a ajudasse a cometer suicídio pela razão certa. Posteriormente, não sendo bem sucedido, ele percebeu que o que ela queria era a sua afirmação de que ela já havia morrido na tenra infância. Assim, Winnicott atesta que talvez ele e sua paciente pudessem ter evitado a morte do corpo até que a velhice cobrasse seu preço. Ele pensa que o suicídio não é nenhum tipo de resposta, mas um ato de desespero mandando para a morte um corpo de uma mente que já morreu.

Ivan Ilitch morreu. Mas ele nunca viveu. Talvez ele nunca tenha nascido. Nós podemos aspirar à grandes conquistas e realizações, não há problema algum nisso; porém, o que faz nos sentirmos vivos, o que faz a vida valer a pena é como, seja lá o que for, é vivida. Evidente que todo o ambiente conta, gosta-se mais disso do que daquilo; mas não é o que vai definir, isoladamente, nosso lugar no mundo.

Eu acho que tudo isso se conecta diretamente com as minhas duas crônicas anteriores[2] [3], que formam, ao que parece ser, uma trilogia (nunca pensei que faria uma!). Assim, o que talvez possamos entender disso tudo, é que todas estas aberturas e títulos sensacionais são, na verdade, simples! As frases maravilhosas são comuns! Ainda, são dependentes da nossa memória e da nossa vivência do instante, ou seja, é o que se faz delas. E não há nada externo que seja extraordinário quanto a isso.

 

 

Agosto/Setembro, 2023.



Esta é a música que eu queria ter colocado na chamada do Instagram, mas não está disponível.... Disco que foi tão importante para mim. Quem com 15 anos adora um disco como este? Se posso dar uma dica... ouça e, acima de tudo, leia as letras desse disco todo. E da discografia de Lou Reed. E, talvez mais ainda, do Velvet Underground também!






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