
Se você me acompanha um pouco, sabe que eu sempre coloco fotos e músicas associadas ao que escrevo (às vezes, só no Instagram, geralmente está aqui também – eu não coloco imagem nos textos psicanalíticos aqui... afinal, o que é a vida sem algumas manias, né? Mas é para diferenciar também). Tanto as fotos como as canções, são todas pessoais: de alguma forma, elas têm alguma relação com o que escrevi, mesmo que seja sutil e que seja (sempre) só para mim. Não tenho o menor interesse em explicar isso, pois arruinaria o sentido, como abordei na última crônica: [1] o significado é para mim, você, que chega até aqui, pode e deve ter o seu próprio.
Recentemente, eu escrevi um Texto Psicanalítico, “Psicanálise ontológica e acaso – um prelúdio”,[2] para introduzir uma linha de estudo sobre o acaso na psicanálise que vou desenvolver (já há um sobre,[3] logo haverá mais outro). A música foi “A New Career In A New Town”, do eterno David Bowie, altamente significativa para mim, e que coube muito bem naquele texto e naquele momento. Não vou falar sobre ela, visto não ter sido o que fez eu escrever esta crônica; foi a imagem.
Eu escolhi uma foto que eu senti ter tudo a ver com o escrito e também com a música, eu costumo ter isso de “encaixe” dessas coisas que são tão essenciais para mim com o que escrevo. A foto é do terraço de um hotel no Leme (Novotel), no Rio de Janeiro, onde eu fiquei por um dia quando vim para cá fazer a entrevista para a seleção do doutorado, em 2016... O hotel não era na Avenida Atlântica (óbvio), fica uma quadra para dentro do bairro, mas como era muito alto, do terraço parecia que se estava na beira da praia; a foto dá essa sensação. Para quem não conhece, o Leme é tipo a “pontinha de Copacabana”: ali é o início, a pedra do Leme (com um pôr do sol lindíssimo), o Posto 1, e logo, depois da Avenida Princesa Isabel, já se inicia o bairro mais famoso do Brasil. Eu acabei morando bem no fim de Copacabana, no posto 6 (as pessoas se localizam aqui na orla da zona sul pelo posto de salva vidas, que dá ideia da altura que se está), numa região que alguns chamam de “Copanema”, pois é a divisa com Ipanema: duas quadras que eu ande é Ipanema e o Arpoador (mas o aluguel é de Copacabana, o que faz uma grande diferença!). Questão é que esta foto do texto citado pega até o fim de Copacabana, justamente onde eu viria a morar. Eu não tinha a mínima ideia disso, obviamente, quando tirei a foto, queria só mostrar a paisagem. Ainda que fosse algo antigo, de pensar em viver aqui, nunca achei que fosse acontecer... cuidado com o que desejas!
Mas quando publiquei o artigo com a chamada com a foto no Instagram, uma supervisionanda minha comentou: “ai, que rico”. Quando nos encontramos, virtualmente, falamos sobre a surpresa. Primeiro, ela achou que aquela era a vista de onde eu morava (quem me dera), expliquei que não era. Ainda assim, ela questionou se eu não via o mar do meu apartamento; sim, eu vejo, lateralmente, mas vejo sim. Aí, ela disse algo do tipo: “ah, é que pra quem não mora na praia é algo legal, pra ti deve ser comum”, ao que respondi automaticamente: “não! Nunca ficou comum pra mim”. E isso fez eu escrever esta crônica, bem simples, sobre algo bem simples, e que penso há muito tempo. Eu também sempre falo que acho o simples é o mais complicado de dizer, de se viver.
Minha irmã morou muito tempo em Nova Iorque, tive a sorte de poder fazer uma visita quando ainda vivia lá: que cidade espetacular! Claro, estou falando de Manhattan, talvez um paralelo de eu sempre falar do Rio da zona sul: são cidades muito grandes, há muito mais que isso (e não tão bonito...). Mas eu amei Nova Iorque com todas as minhas forças! Pensei, como pensei quando estive no Rio antes de viver aqui: ah, eu moraria aqui com certeza. Foi uma delícia tudo, mas mais ainda andar pelas ruas de lá. É muito verdade o que Alicia Keys canta lindamente (é impossível não se apaixonar por ela, né?) em “Empire State Of Mind (Part II) Broken Down”: “estas ruas te farão sentir novo em folha”! Que me desculpe Frank Sinatra, mas eu acho esta a mais bela homenagem. Ainda que o “se eu conseguir vencer lá, eu vencerei em qualquer lugar” tenha sido incorporado na música de dela (que é de Jay-Z), e é eterna a frase: “eu quero acordar na cidade que nunca dorme”. Enfim, não precisamos escolher, e podemos de tirar proveito disso! (Eu mesmo já ia me trair no “mais bela homenagem” acima, escrevendo que era para a “cidade que nunca dorme”! Não há como fugir disso).
Quando vim morar no Rio, além de tantas outras coisas, como que aí eu ia ver o Brasil “de verdade” (o que foi verdade mesmo, pois a gente não vê completamente quando se é de Porto Alegre, ou do sul em geral eu acho), minha irmã me disse uma coisa que nunca esqueci: “nunca deixe o Rio ficar uma coisa comum pra ti”. Ela me falou que mesmo depois de tempos já morando em Nova Iorque nunca deixava de se impressionar, mas por coisas simples: estar andando na rua e pensar “porra, eu moro em Nova Iorque!”. Não é querer a imitar (o que já quis muitas vezes, irmã mais velha né...), mas é porque houve identificação, fez sentido para mim.
Assim, naturalmente, eu sempre tive isso desde que vim morar aqui, um encantamento que nunca terminou (ainda que, obviamente, tenha mudado). Eu acho, sinceramente, que o Rio é, potencialmente, a melhor cidade do mundo: em qual outra cidade há, ao mesmo tempo, a conjunção de natureza abundante e linda e vida cosmopolita de cidade grande?[4] Como uma amiga querida me falou: o Rio deveria ser (muito mais) cuidado. Ela disse isso justamente em uma dessas situações “comuns”: havíamos nos encontrado com outras amigas no bairro de Laranjeiras; na volta, passamos pelo túnel Rebouças, pela Lagoa (que sempre é espetacular!) e chegamos na Vieira Souto, já no fim de tarde com o sol se pondo, Morro Dois Irmãos ao fundo, o céu naquelas cores que fica difícil descrever, uma imagem maravilhosa (coloquei uma foto de um instante desses na crônica “Winnicott, o sucinto”[5]). O Rio é o cartão de visita do Brasil. Deveria muito ser cuidado.
Então, as coisas nunca foram comuns aqui para mim. São muitos exemplos, não tenho como falar todos.
O Cristo Redentor não foi colocado, claro, no Corcovado por acaso: é um morro que se vê de vários lugares da cidade. Então, muitas vezes eu estava andando distraidamente, olhava para cima, lá estava o Cristo. Isso sempre foi uma sensação extraordinária, não importava quantas vezes eu visse. Sempre dava uma paradinha para me impressionar. Inclusive, eu tinha um ponto “meu” na praia, bem no fim de Ipanema, última ou penúltima barraca antes do Leblon, que tem a ver com isso. Depois de ir em vários locais, fui neste; pessoal da barraca (como quase sempre) muito legal, lugar não era muito cheio (sempre fui para pegar sol, então, guarda-sol dos outros me atrapalha!), tudo bom. Mas quando entrei no mar ali pela primeira vez e olhei para a cidade, percebi que eu estava justamente numa posição que havia espaço entre os prédios que deixava o Cristo à vista. Naquele exato momento, eu pensei: aqui vai ser o meu lugar. Quantas vezes eu estive na água gostosa (quando não estava terrivelmente gelada, o que é recorrente) e calma (o que também não é normal, pois o mar do Rio não te mata, ele te humilha te derrubando com as ondas), vendo o sol já baixo brilhar nas ondulações do mar, e olhar para o Cristo... É outro nível de vida.
Não é apenas visão de pontos turísticos, como o Pão de Açúcar, as pedras do Arpoador, a pobreta da Urca (que é muito melhor que a mureta!). É o normal da cidade, o caos, a diversidade, a essência. Há uma arquitetura da natureza deslumbrante, um morro (não estou falando das favelas) grandioso que se impõe ao olhar quando na muvuca da Barata Ribeiro, ou mesmo no campus da Praia Vermelha da UFRJ; uma pequena amostra da Mata Atlântica em uma rua qualquer no bairro (com direito a beija-flores e macaquinhos passando na sua janela!). O simples deslocar-se pela cidade pelo Aterro do Flamengo, a Baía de Guanabara, é algo que sempre foi emocionante para mim. Logo que cheguei, quando estava por umas duas semanas em um apartamento no início de Copacabana, saí num domingo (dia que passei a gostar!) no fim da manhã para andar pela orla (uma mão da avenida fecha domingso e feriados, então enche de gente caminhando, crianças – e adultos – de bicicleta, skate, patins, cachorros... é muito bom); na volta, pensei, por tudo o que vi: dá pra ser feliz aqui.
Ingênuo que seja (e é) esse pensamento assim, mais simplista, há uma beleza além da tal “arquitetura da natureza”, uma “beleza de alma”, uma coisa de “cheiro”, como costumo dizer; não sei explicar. É que tomar uma cerveja no quiosque da praia do fim de tarde, claro que tem toda uma vista linda (como pode se ter na Urca ou em Santa Teresa)... mas é mais que isso: é a atmosfera, o clima da cidade que, inadvertidamente, toma lugar de uma maneira quase agressiva, no melhor dos sentidos, pois a beleza pode dar esta sensação quando é elevada. É um sentimento de plenitude que eu sempre tive.
“Ah, mas tu estás falando de coisas em cidades grandiosas, assim fica fácil não achar comum”. É verdade, ainda que muitas pessoas não gostem dessas cidades que estou exaltando. E também, é uma grande possibilidade normalizar esses eventos quando eles fazem parte do seu dia a dia. Mas o que eu realmente quero dizer com esta crônica vai além das belezas de uma cidade maravilhosa (ou que nunca dorme). Pode valer para qualquer cidade, mas mais: para qualquer trabalho, hobby, relacionamento. Tudo bem que o que escrevi sobre mim foi natural, nestas outras situações é necessário esforço na maior parte das vezes; porém, o princípio parece ser o mesmo. Que sua cidade não seja das mais atrativas, que suas atividades sejam “normais”, que seu relacionamento amoroso dure anos: eu tenho certeza que houve algum momento de encantamento. Não há nenhuma regra que diga que isso deve cair na vala do comum, pode sempre continuar (e, se pensarmos bem, é!) algo novo, mesmo sendo a mesma coisa. O arrebatamento não vem exatamente do que é “novo em folha”, pela primeira vez, mas do que é sempre novo aos nossos olhos, é isso que cativa constantemente. É uma besteira pensar (como eu pensei durante muito tempo) que o “grandioso” é o que faz uma vida feliz. O simples, que é o difícil, é o que é, no fim das contas, extraordinário. Desta maneira, o comum é o que pode fazer a vida valer a pena. Será que estamos falando de amor?
O “se tornar comum”, como suscitou com a minha supervisionanda, traz uma ideia de morte para mim; tipo: aquilo era tão excitante e agora não me desperta emoção alguma, ou seja, está morto. Com isso, obviamente, não estamos mais vivendo seja lá o que for, o que, no fim das contas, é o mais indispensável. Não é viver uma vida de fantasia achando que tudo é sempre maravilhoso e bonito: a vida é difícil e, possivelmente, sem sentido sim; mas o nosso olhar sobre ela faz toda a diferença.
Eu tenho a forte sensação que estes pensamentos estão me levando (e espero que esteja levando você que está lendo também!) além do proposto aqui. Parece que vamos precisar de uma continuação...
A minha visão lateral do mar, talvez mais ainda pela manhã onde o sol nasce e faz o mar brilhar ao infinito em milhares de pontinhos iluminados em suas ondulações, o cheiro forte da maresia que me atacava repentinamente mesmo dentro do apartamento (coisas que me ajudaram tanto no isolamento da pandemia): nada disso ficou comum para mim em nenhum instante. Isso talvez tenha sido o mais importante.
Julho, 2023.
[1] https://www.julianocorrea.com/post/o-texto-vivo [2] https://www.julianocorrea.com/post/psicanálise-ontológica-e-acaso-um-prelúdio [3] https://www.julianocorrea.com/post/a-regressão [4] Dentre tantos que existem, há um texto de Ricardo Freire, “A valsa de uma cidade”, que, dos que já li, é o que melhor define o sentimento que eu tenho sobre o Rio de Janeiro. Li pouco antes de me mudar (é dali que eu peguei a dica de sempre pegar a janela do lado direito nos voos no Santos Dumont!). É antigo, de 1998, algumas coisas estão desatualizadas, mas a maior parte continua valendo. Não poderia deixar de compartilhar aqui nesta crônica. https://www.viajenaviagem.com/destino/rio-de-janeiro/valsa-de-uma-cidade/ [5] https://www.julianocorrea.com/post/winnicott-o-sucinto
Iria colocar a música a Alicia Keys que citei como “tema” desta crônica no Instagram; porém, ficou estranho: falo bem mais do Rio de Janeiro e coloco música em homenagem a Nova Iorque? Então, coloquei aqui como adendo.
Esta é a música de Alicia Keys, legendada e traduzida.
Aqui é ela ao vivo, no piano. Essa é a do apaixonamento.
Por último, uma versão ao vivo na Times Square em 2016, misturando com a original de Jay Z (também traduzida).