Uma vez, há muitos e muitos anos (quase que numa galáxia muito distante), enviei um e-mail para uma amiga. Era quando o e-mail era uma grande sensação ainda, não existiam as redes sociais e os aplicativos de comunicação mais instantânea (entregando a idade, né!). O problema daquele e-mail foi que... não era para ela! Eu realmente não lembro sobre o que era, nem para quem deveria ter sido encaminhado, só recordo, muito bem, que assim que foi enviado, e eu percebi que tinha sido para a pessoa errada, entrei em pânico: era muito grave. Tentei, desesperadamente, encontrar uma maneira de anular aquele e-mail; em vão: não havia (ou, pelo menos, eu não encontrei) essa possibilidade. Cheguei a comentar da minha indignação, com argumento que mantenho até hoje: se a pessoa ainda não abriu sua caixa de e-mails, ou seja, não faz ideia de que mandei um, não é óbvio que deveria ter a opção de cancelar o envio, fazer com que aquele e-mail desaparecesse? Claro que sim! No fim, eu escrevi outro e-mail para ela explicando a situação e pedindo que ela desconsiderasse. Dei, evidentemente, uma desculpa esfarrapada inventada na hora; nem lembro se ela respondeu. Quer dizer: não era tão grave como eu pensei.
Eu já mandei muitos e-mails/mensagens que achei catastróficos, de me corroer de arrependimento logo depois: nunca deu problema, a maioria não deu em nada, ou até deu em coisa boa, bem melhor do que eu poderia esperar. É um medo não justificado. Mas essa é a explicação racional, e parece não valer de nada nesse assunto.
Ainda há tempo, mas já bem depois da primeira situação que expus, mandei uma mensagem de WhatsApp para alguém (de novo, não tenho a mínima memória de para quem foi!) e, novamente: meu deus, que tragédia, tenho de apagar antes que a pessoa veja! Ali, eu estava relativamente tranquilo, pois sabia que o WhatsApp tinha a função de excluir; porém, olhando mais de perto, vi que removia a mensagem, o que era ótimo, mas deixava uma notificação dizendo que a mensagem tinha sido apagada! Porra, aí não ajuda, né! Ou talvez até piore a situação. Lembro que fui pesquisar se não havia uma maneira de fazer aquela mensagem sumir do mundo (ou de retirar a capacidade de ler da pessoa que a receberia, e de todos os que a rodeavam!). Ao invés da solução, que parece também não existir, deparei-me com um texto de uma famosa escritora gaúcha (eu, que devo estar com problema de memória, mais uma vez não lembro quem era! Não vou chutar algum nome, pois não quero dar crédito indevido) sobre o tema. Ela compartilhava do meu suplício: por que não existe um mecanismo exterminador de mensagens? Por que não nos é permitido apagar nosso arrependimento, viver como se nunca tivesse acontecido? Além disso, ela também comentava que a artimanha do aplicativo de deletar a mensagem sim, mas avisar que isso foi feito, era a maior sacanagem. Era uma dupla humilhação: a primeira, ter mandado merda; a segunda, ter tido um chilique e tentado eliminar a merda, mostrando-se um paspalhão que não sabe enfrentar as situações. Para a surpresa de zero pessoas, não lembro o que deu dessa minha situação, nem se apaguei a mensagem (acho que não, depois que li a cronista daqui).
Talvez você, perspicaz em sua leitura, possa estar pensando: “mas de onde eu venho, a gente chama isso de ato falho”. Sim, claro que é. Eu acho, digo isso sempre, o ato falho uma das coisas mais legais numa análise, porque desmonta (no bom sentido) a pessoa; já no nosso dia a dia, é horrível, pois é ser desmantelado em praça pública! Quando eu dava aula e trocava alguma palavra que queria dizer, depois de já ter ensinado sobre o ato falho, as alunas todas riam e começavam a gritar: ato falho! Ato falho! Eu, para manter minha autoridade, dizia: professor não comete ato falho, ele só se engana. Claro que era ato falho.
Apesar disso, esta crônica não é sobre ato falho (tem um Rodapé Psicanalítico sobre o assunto no meu canal no YouTube[1]). É, na verdade, sobre querer apagar mensagens (o ato falho já está posto)! Fico me perguntando, e pode parecer uma pergunta simplória: por que há o impulso de apagar uma mensagem enviada?
Ok, eu sei que existem mensagens comprometedoras: pode ter algum nude (ainda que hoje isso mais deixe as pessoas famosas – e aptas a ganhar dinheiro – do que as difame), pode ter algum segredo que não deveria ser compartilhado, pode conter algum plano mirabolante para assassinar o governo. No entanto, há aquelas (como as minhas) sem essa gravidade toda, mas que mesmo assim são alvo da fúria suprimidora do emissor. As minhas não tinham nada do que acabei de citar, mas mesmo assim pareciam devastadoras, não poderiam ser lidas de forma alguma. Pois não só foram lidas, como o mundo não terminou, e eu continuei inteiro (por fora, ao menos).
É que eu fiquei pensando em duas coisas. A primeira, é a ideia utópica de apagar o horrendo, efetivamente, de forma que o outro não vá ler. Certo, dá sim grande alívio (teria dado tanto para mim...), mas não anula o fato de ter sido escrito, mais ainda, de aquilo, seja lá o que for, ter sido sentido. Eu te apresento o superego. O superego, criado por Freud na sua segunda grande teorização do aparelho psíquico, é a instância crítica, a responsável, dentre outras coisas, por vigiar e punir o pobre do ego (que está tendo de dialogar com este e com o id, parceiros difíceis de se chegar a um acordo). Ora, o superego é o responsável pelo sentimento de culpa, que é diferente do remorso. Veja que interessante: se eu sou cruel (voluntário ou involuntariamente, não importa) com alguém, eu me sinto mal, sinto culpa (remorso), a não ser, claro, se a pessoa mereça... Contudo, o sentimento de culpa do superego não está preocupado com o ato: basta o pensamento, o desejo de ter feito. Você já passou por isso: desejou que um fulano qualquer, um filho da puta, morresse; logo depois, foi inundado de culpa. Por que? O tal fulano não morreu, absolutamente ninguém ficou sabendo desse seu desejo horroroso, então, por que a culpa? É esse talzinho do superego. Para o superego não importa se fez ou não, se alguém soube ou não; pensou, ele (o superego) sabe, e ele pune (a força da punição varia de pessoa para pessoa). Nas primeiras possibilidades que aventei, a condenação seria externa; com o superego, é interno o castigo, o que é bem pior, e é sempre...
Aí, é inevitável o resultado: vais fugir da condenação externa, mas a interna vai continuar te massacrando (bem mais) por sei lá quanto tempo. É isso? Quer dizer, vale a pena todo o esforço para apagar aquela, que agora parece ser, inocente mensagem enviada “por engano”?
A segunda coisa que fiquei pensando é que a loucura para fazer desaparecer mensagens que parecem ruins talvez seja uma tentativa de apagar sentimentos, consequentemente, apagar lembranças. Nós sabemos que memórias não se apagam assim, né. Que dirá dos afetos... É aquele tipo de coisa: não quer brincar, não desce pro play... Se descer, tem de estar disposto a todas as consequências, boas e ruins da brincadeira.
As palavras podem até ser extinguidas, externamente, o que poderia evitar uma nudez explícita; porém, internamente, não conseguimos escapar de estarmos nus em relação ao que sentimos, mesmo que se expresse via sintoma. Não tem jeito. Pode evitar o vexame externo, mas o constrangimento interno pelo que se sente, esse vai permanecer. Assim, o alívio da eliminação externa do ato falho, da mensagem cheia de amor, será momentâneo (e por pouco tempo): o afeto continuará, se for o caso, envergonhando. E, vamos combinar, nesses casos, a vergonha não é por ser algo perverso, é só por ser verdadeiro e a gente querer esconder, né! Vamos dizer as coisas diretamente. Dessa forma, o principal não se elimina, pois a gente não consegue apagar nossas lembranças, nossos desejos, por mais distantes que possam estar, por mais dolorosos que possam ser: são parte (e importante) de nós. Se der para evitar um vexamezinho externo, que bom! Mas, no fim, teremos mesmo de lidar com os significados do ato falho e nossos medos do que quer que seja. É bem mais difícil do que apagar uma mensagem, né?
Além disso, último apontamento, o ato falho, não necessariamente esses meus que relatei, não deixam de ser acasos. Encontros, como todo o acaso é. O tal “erro” pode ser entendido como um encontro, encontro ao acaso, claro: se o apagamos, perdemos do que poderia ser. O acaso é impossível de ser eliminado, simplesmente acontece. Desta forma, não importa as possibilidades tecnológicas que possamos ter, nada irá evitar que o acaso ocorra, visto ser inerente aos eventos, nem mascarar o fato de ele estar presente – temos os fatores internos que envolvem permanentemente os acontecimentos (mais ainda os que venham a ter valor afetivo posteriormente), estes não mentem e são resistentes a qualquer ação externa que ingenuamente tente dar conta do que não se pode dar conta, só pode deixar ser.
No fim das contas, e eu não gostaria de me render a isso devido aos meus argumentos da vida toda, o Gmail e o WhatsApp estão certos: não devem mesmo possibilitar que emails e mensagens sejam excluídos sem deixarem rastros. Seria como apagar, além de documentos importantes, sentimentos verdadeiros que o arrependimento não remove sua verdade. É impossível que afetos, se são genuínos, sejam apagados. Mais ainda que encontros ao acaso deixem de acontecer...
Novembro, 2024.