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Foto do escritorJuliano Corrêa

As quatro notas


Uma vez, estava falando para o meu analista sobre um tipo de encruzilhada que eu me encontrava. Tinha a ver com a produção da minha tese: eu estava meio perdido, sem saber exatamente por onde ir, que tom usar, etc. A sensação era que eu precisava de algo novo que me desse rumo novamente, pois eu me sentia sem nenhum. Então, ele disse mais ou menos assim: “você tem que encontrar as suas quatro notas”. Parece estranho, né? Mas foi uma intervenção muito importante, tinha relação com coisas que eu já tinha contado para ele. Vou explicar, afinal, é o motivo desta crônica.

Em 1975, o Pink Floyd lançou Wish You Were Here, que é o meu disco preferido da banda (é uma escolha bem difícil). Há um documentário maravilhoso de 2012, The Story of Wish You Were Here, que mostra como foi a produção do disco, como se chegou ao resultado final, os percalços para se chegar até esse fim, além da história do desaparecimento de Syd Barrett (eu não encontrei mais esse documentário, de onde eu tiro a maior parte das informações que vou colocar aqui, on-line para deixar o link, mas ele está disponível em alguns streamings). Eles entraram no estúdio para trabalhar a sequência de The Dark Side Of The Moon, lançado dois anos antes, um dos discos mais bem-sucedidos da história da música (permaneceu por 990 semanas na parada americana da Billboard, a mais importante do mundo!). Um grupo de homens com não mais de 30 anos atingiram um sucesso e dinheiro, segundo as palavras do guitarrista David Gilmour, “capaz de preencher os mais selvagens sonhos de qualquer adolescente”. Ainda completou: “tínhamos de entender o motivo de estar nesse negócio, se éramos artistas ou empresários, precisávamos entender por que queríamos continuar”. Roger Waters, baixista e letrista, o grande estruturador dos temas floydianos, disse que eles estavam praticamente terminados naquele ponto. É aquele tipo de máxima, que por vezes é verdadeira: o grande sucesso/objetivo que tanto se almeja, vira, ao ser conquistado, a própria ruína. Eu penso que isso acontece pelo fato da sensação de não se ter mais para onde ir: queria chegar até aqui, cheguei, e agora?

Dessa forma, eles estavam sob a “maldição” de Dark Side. Impossível replicar o que foi feito, o que se faz então? Justamente quando o que deu tão certo era a inovação. Os dias no estúdio eram de marasmo, não havia concentração, inspiração ou vontade para criar, faltavam ideias. Aí entram na história as 4 notas.

Si bemol, Fá, Sol e Mi. Nessa ordem (sendo as últimas duas notas soltas, o que faz bastante diferença no que a gente escuta, pois dá uma permanência do som). Essas são as 4 notas. O que elas têm de especial? Muito!

Essas 4 notas que “saltaram” (guarde essa expressão) da guitarra de Gilmour evocaram sentimentos, memórias em Roger em relação a Syd Barrett, uma das mais trágicas figuras do rock. Syd foi um dos fundadores do Pink Floyd, líder e principal compositor do grupo, a grande figura do primeiro disco, The Piper At The Gates Of Dawn, de 1967. Era tido como genial em vários sentidos, muitas pessoas acreditam que poderia ter se tornado muito grande no meio artístico. Foi afastado do grupo por seus companheiros porque... “enlouqueceu”. O diagnóstico de Syd é algo controverso, não há definição sobre. Fato é que ele se tornou cada vez mais bisonhamente errático até que sua participação, mesmo que apenas como compositor, como foi aventado pelos outros membros, ficou impossível. David Gilmour foi chamado exatamente para o substituir. Syd, após frustradas tentativas de seguir em uma carreira solo logo em seguida, virou recluso, morando com a mãe, tendo interesse em pintura e jardinagem. Apesar das muitas insistências, recusava entrevistas e qualquer coisa relacionada ao Pink Floyd: as lembranças não lhe faziam bem. Morreu em 2006 aos 60 anos. Procure sobre ele, vale a pena (ou espere eu escrever especificamente sobre!).

Tem a história famosa (e muito triste) de que Syd Barrett apareceu, já no fim das gravações, nos estúdios de Abbey Road. Levou tempo até que os integrantes da banda o pudessem reconhecer. Menos de 10 anos se passaram desde a última vez que tinha se visto, mas a aparência de Syd havia mudado bastante. Antes elegante, magro, bonito, cabelos esvoaçantes e despenteados, agora estava gordo, com os cabelos e sobrancelhas raspados. Ele simplesmente ficou lá, meio que sem saber do que se tratava. Todos no estúdio ficaram chocados quando perceberam de quem se tratava. Era triste demais a perda do grande talento materializada. Dizem que ele se ofereceu para tocar guitarra; mostraram “Shine On You Crazy Diamond”, mas ele ficou indiferente: teria comentado que era uma música antiga.

Então, as 4 notas levaram Roger Waters a criar um tipo de homenagem que expressava sua profunda dor pela perda do amigo, o “diamante louco”. As 4 notas foram o rumo que eles não tinham para a composição daquele disco mágico. Elas foram o embrião de “Shine On You Crazy Diamond”, canção para Syd, que é o tema do álbum: dividia em nove partes, ela inicia (com as cinco primeiras) e termina (com as quatro últimas) o disco, deixando três outras músicas entre elas. Ao todo, com as nove partes, “Shine On” tem mais de 25 minutos. É absolutamente maravilhosa! A letra (curta, em comparação com o tempo da música) é linda, emocionante (mais ainda se, como nós, sabemos da história). “Lembra quando você era jovem? Você brilhava como o sol / Agora há um olhar nos seus olhos, como buracos negros no céu / Ninguém sabe onde você está, quão perto ou quão longe / Vamos lá, seu delirante, seu visionário, vamos lá, seu pintor, seu flautista, seu prisioneiro, e brilhe! / Vamos lá, seu menino, seu ganhador e perdedor, vamos lá, seu mineiro da verdade e da ilusão, e brilhe!”. (Quase coloquei a letra toda, é difícil fazer escolhas aqui!). Musicalmente, também é fabulosa! Eu dou destaque para o irresistível solo de Gilmour na parte VI, e para a parte IX, com o órgão, piano e sintetizador de Richard Wright fazendo sua comovente homenagem ao amigo desaparecido (inclusive, bem no finalzinho, com os versos de “See Emily Play”, segundo single da banda e composto por Syd. É lindo demais!). E, claro, as 4 notas, na parte II, após a abertura com a camada sonora hipnotizante de Wright em tons menores.

As outras músicas não são exclusivamente para o amigo fundador, ainda que estejam diretamente relacionadas a ele: falam sobre o desejo de ter sucesso na música e ser queimado (como a brilhante capa do disco propõe) pela indústria musical. E tem a faixa-título, talvez a canção mais famosa do Pink Floyd (e certamente das mais belas): “Como eu queria, como eu queria que você estivesse aqui / Nós somos apenas duas almas perdidas nadando no mesmo aquário, ano após ano / Correndo sob o mesmo velho solo, o que nós encontramos? Os mesmos velhos medos / Queria que você estivesse aqui”. O que há de mais lindo que isso?

Wish You Were Here é um álbum sobre ausência. Esse é o tema. Ausência de um amigo, no caso, mas estendida para todas as ausências que sentimos na vida. Eles mesmos estavam ausentes nos primeiros momentos em que se encontravam no estúdio para produzir um material novo. É sobre falta, de coisas ou pessoas, mesmo as que não morreram, como era o caso, mas que, inesperadamente, ficam ausentes. São vários tipos de ausência que podemos ter, como já falei em outra crônica.[1]

Este disco é um evento extraordinário! E tudo teve início naquelas 4 notas! Agora vem a parte mais interessante: de onde vieram essas 4 notas? O próprio David Gilmour usou a expressão que elas “saltaram” de sua guitarra. Em outra entrevista, ele diz que não lembra direito, que ele devia estar brincando na guitarra, que provavelmente deveria ter sido um erro ao tocar um acorde de lá menor. Ou seja, como tantas outras coisas, as notas surgiram ao acaso, sem nenhum objetivo ou plano, sem nenhuma razão de ser. Só que despertaram sentimentos profundos em Roger Waters, quer dizer, aconteceu um encontro, e, a partir daí, houve um plano, um processo de desenvolvimento. Adquiriu um sentido. Mas não havia sentido algum originalmente, isso foi criado depois.

Entendeu o porquê de a intervenção do meu analista ter sido tão certeira? Claro, eu ainda vou explicar mais.

As 4 notas surgiram naquela época, assim como surgem aqui nesta crônica, como uma metáfora daquele tipo de “luz” que nos encontra (e nós encontramos ao mesmo tempo) para iluminar o período ou instante de escuridão. É algo muito íntimo, talvez o mais íntimo, talvez parecido com o que Winnicott diz sobre o nosso âmago não comunicável (e que assim deve permanecer!)[2]. Porém, paradoxalmente, pode comunicar de outras formas, indiretamente, digamos assim, para, quem sabe, servir de criação, como as 4 notas. É de criatividade que estamos falando, mas a winnicottiana: ainda que o exemplo aqui seja a arte (música), não é disso que se trata, diz respeito ao que dá colorido para a vida.[3] É relativo ao gesto espontâneo, não depende de nenhum grande talento, mas sim do que temos no nosso cerne que pode vir a ser. Então, como meu analista falou para mim das minhas 4 notas para a minha tese, não seria de cada analisando nosso encontrar (obviamente, ao acaso) as suas 4 notas e, partir daí, fazer algo sublime no contexto de suas próprias vidas? Incrementando a ideia de Freud para a felicidade, amor e trabalho, não poderia ser esse caminho, das 4 notas, o significado de uma quebra de barreiras para ser feliz na realidade?

Falando sobre Wish You Were Here, Roger Waters disse que o disco “é cheio de pesar e raiva, mas é também cheio de amor; você tem de ver além do pesar e da raiva para as possibilidades do amor”. Nossa, isso é muito Winnicott! O psicanalista britânico nos ensina que o ódio vem antes do amor. Como assim? Eu tenho de poder investir o meu ódio no mundo externo (que, aqui para nós, pode ser o psicanalista em um tratamento, Winnicott usa sempre a mãe na relação com seu bebê, mas dá no mesmo, é um paralelo perfeito), ver que não há retaliação, ou seja, que esse ambiente suporta meus impulsos. Assim, eu começo a ter confiança, eu acho que posso ter um lugar no mundo, e, como as coisas não funcionam no “olho por olho”, eu posso ter a segurança de amar. Eu não vou ser destruído por isso. Independentemente das nossas preferências, é uma teoria belíssima, não é? Talvez seja mesmo necessário passar pelo pesar e pela raiva para se chegar nas possibilidades do amor.

Surgidas pela força do acaso, as “4 notas” tomaram para mim, por tudo o que contei, o significado de algo muito profundo que temos, talvez o core não comunicável de Winnicott que falei acima, que pode “dar as caras” dessa forma: ao acaso, para que, só então, possamos fazer (ou não!) algo delas, ter a pontapé inicial para a solução de um enigma. Que não venha a ser algo monumental como o Pink Floyd fez a partir da sequência de 4 notas que saltaram da guitarra de David Gilmour, mas que seja o suficiente para sairmos das armadilhas que muitas vezes colocamos a nós mesmos.

 

 

Setembro, 2024.





Este vídeo é muito bom: fornece a descrição e o entendimento técnico das 4 notas de Gilmour de uma maneira bem agradável e simples. Além disso, mostra o próprio (aos 11:11 do vídeo) contando o acaso do surgimento das 4 notas.


Aqui, o disco inteiro para você poder desfrutar desta obra-prima.





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