Eternamente responsável
- Juliano Corrêa
- 12 de jul.
- 7 min de leitura

Há tempos eu penso em escrever uma crônica sobre O Pequeno Príncipe; esta provavelmente não será a única. Em várias outras, como em uma recente,[1] eu acabo escorregando, às vezes sem querer mesmo, em outras, propositalmente, para alguma metáfora que me leva ao livro. Ele é de uma riqueza extraordinária, sem fim.
Eu já falei que costumava fazer as alunas lerem livros para fazerem trabalho nas aulas de psicanálise (e de ética também!). Era assim: ler o livro (obviamente) e escrever um trabalho o associando com algum conteúdo visto em aula. Era a avaliação que eu mais gostava (as alunas... nem tanto – ao menos uma parte delas!). Não era sempre o mesmo livro, eu mudava de semestre para semestre; porém, eu acho que indiquei umas duas vezes O Pequeno Príncipe. Porque, além da vastidão de significados que podem ser encontrados e criados, é uma leitura fácil (bem diferente de alguns outros que eu passava...). Eu recebi diversos trabalhos muito bons sobre o livro; um, em especial, eu lembro até hoje: era brilhante, de uma imaginação e construção de cenas da teoria psicanalítica com temas do livro fora do comum. Até incentivei para uma publicação, mas não foi adiante. Geralmente, parece que se tem a tendência de pensar que trabalhos da graduação não têm estofo suficiente, quando muitas vezes são bem melhores do que muitas dissertações de mestrado e boa parte dos artigos em revistas científicas que lemos por aí (e até do que algumas teses de doutorado...).
Eu lembro direitinho da primeira vez que li o livro. Eu devia estar para o fim da adolescência, e estava completamente entediado num churrasco de família em um domingo qualquer. Sem ter o que fazer, fui ao escritório do meu querido tio olhar a sua biblioteca – aquilo que eu disse sobre meu encanto por bibliotecas é verdade desde sempre![2] Então, ali estava aquele livrinho. Pensei sobre nunca o ter lido, havia um tanto de preconceito: O Pequeno Príncipe era conhecido, na minha época ao menos, como o “livro de miss”. Era um período em que os concursos de miss eram um grande evento, passavam na televisão, todo mundo via e sabia. E naquela parte que entrevistavam as concorrentes, quando perguntavam sobre seu livro preferido, era a coisa mais comum elas recorrem ao Principezinho. E as postulantes, no nosso imaginário, eram todas burras, pois eram todas tão belas, e mulher linda não combina com ser inteligente, mulher inteligente deve ser feia. Enfim, é uma série de preconceitos nojentos e sem sentido (como todos os preconceitos são) que ainda hoje existem, mas há quase 30 anos era ainda mais forte. Sei que, atacado pelo tédio e falta de vontade de estar lá, e como o livro era tão curtinho, abri e comecei a ler. E não pude parar.
Eu li de uma tacada só, devo ter levado algo em torno de uma hora. A partir do encontro com a Raposa, eu fui terminar de ler no banheiro. Estranho? É que eu não estava conseguindo segurar o choro! Estava emocionado de verdade. Pensei: que explicação eu vou dar se alguém entrar aqui e me encontrar no escritório do meu tio, chorando e lendo O Pequeno Príncipe? É melhor, se for o caso, que pensem que eu tive algum desarranjo intestinal: pelo menos eu posso chorar em paz!
Depois disso, eu o reli diversas vezes, tanto que sei muitas passagens de cor. Também me ajudou a estudar francês, idioma original que foi escrito, para minha proficiência do doutorado (francês era a língua obrigatória...). Enfim, quasevirou meu livro de cabeceira – esse lugar, eu sempre tendo a dizer que pertence a Walt Whitman.
Como eu já disse, são inúmeras as riquezas desse livro, coisas que podemos usar para pensar na psicanálise e também na vida em geral. Eu sinto que as pessoas mais usam é aquela que a Raposa diz: “só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos”. E há todos os outros simbolismos no livro de várias partes, detalhes, pensamentos e relacionamentos. Mas, como esta é a primeira vez que eu me foco diretamente nesse livro, sem “escorregão”, vou escolher a frase clássica e consagrada das mesmas lições da Raposa que citei agora: tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.
A responsabilidade que está em jogo não é, de forma alguma, um castigo ou uma obrigação. Por causa de um envolvimento de verdade, se for de verdade, é uma responsabilidade afetiva.
É um tipo de responsabilidade que se tem, mesmo à distância, ou em momentos dos mais difíceis, que tem a ver com cuidado. É um carinho genuíno por algo/alguém que se cativou verdadeiramente, independentemente dos rumos que essa relação possa ter tomado. Não se trata, evidentemente, de um “ficar junto para sempre”, não é prisão afetiva. Na realidade, tem muito mais a ver com liberdade. Liberdade não é fazer o que se quer, isso é perversão. Liberdade só é liberdade quando leva em conta o outro também, ainda mais nesse sentido que estamos falando: o outro cativado.
Eu sempre pensei isso como uma questão profundamente ética: não é um dever, é algo que se faz (ou se deveria) naturalmente, pois pertence a um escopo moral que é (ou deveria ser) intrínseco de ser humano na acepção mais geral da palavra. Consequentemente, podemos pensar também na ética na psicanálise, pois não há um cativar mútuo entre analista e analisando? Não é disso que se trata a relação terapêutica?
A responsabilidade pelas pessoas que atendemos não é só durante o tratamento – porra, isso é óbvio, né! É depoistambém. “Ah, mas então eu vou ter de ficar ligando para o meu ex-paciente para saber como ele está?”. Claro que não, né. Eu acho que isso toca muito em uma coisa que Ferenczi falou lá em 1929 (eu sempre fico impressionado com essa data!), de que os psicanalistas não têm muito interesse nos desfechos de seus tratamentos, estão mais preocupados com a “arte” da psicanálise. Não! A psicanálise não é sobre grandiosas construções metapsicológicas e filosóficas para masturbações teóricas que não dão em porra nenhuma. É sobre o cuidado e a melhora das pessoas que atendemos. Dessa forma, é urgente que tenhamos mais interesse e mais pesquisas efetivas sobre os destinos das nossas análises. Não estou falando, questão muito presente, sobre responder pela cientificidade da psicanálise, “comprovar” resultados (que geralmente vai para eliminação de sintomas, o que não tem nada a ver[3]), ou aquele papo de “a psicanálise é ciência ou não é” (que, dependendo da abordagem, vira uma discussãozinha esquizofrênica). Estou falando para além de nossas questões narcisistas e/ou políticas: se o objetivo da psicanálise é, como acredito ser, a melhora de quem confia em um psicanalista para se tratar, tem de ser a preocupação primeira. Qualquer outra ênfase que não tenha no seu horizonte a melhora da vida do analisando é secundária; para não dizer completamente dispensável.
O ponto é que cativar alguém é muito difícil, tanto quanto ser cativado (veja a tremenda força que o Principezinho fez com a sua flor); responsabilizar-se por isso é mais difícil ainda, e tão importante quanto. É por aí, e somente por aí, que podemos começar a ter uma relação verdadeira. E verdadeira aqui significa emocional, atenciosa, apaixonada, íntima.
Quando o Principezinho entendeu, com o auxílio da Raposa, que ele era responsável pela sua Rosa, tudo mudou. “Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo”. O que ele compreendeu foi o que a Raposa lhe explicou sobre o que quer dizer “cativar”: significa criar laços. “Se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”. Esta unicidade do relacionamento, que se repete na relação analítica e em outras, que são verdadeiras, pela vida, é o que faz a diferença, o que impele nossa eterna responsabilidade. Sem isso, o que resta?
Não se deixa ou se se dá alguma coisa para outro sem consequência. Não se pode cativar “impunimente”, ou seja, sem assumir comprometimento. Não se pode agir como “isso não tem nada a ver comigo”. Esta é a ética. Para além do desejo, a ética é da responsabilidade: não é uma coisa evidente com analisandos ou com as pessoas em geral? Não se pode ser contraditório, o paradoxo não é bem-vindo aqui. A esperança é uma coisa grave: se não for ser responsável, não pode ser alimentada para depois morrer de fome. Essa responsabilidade, como já disse, é (ou deveria ser) natural, de se ter consciência, o famoso ter noção! Isso não significa, de forma alguma, que venha sem esforço: é preciso muito empenho para genuinamente cativar, e, uma vez estabelecida essa relação verdadeira, está-se eternamente responsável.
Estamos falando de uma matéria infantil, no sentido de que só as perguntas infantis são as válidas: não existiria ciência se não fosse pelas curiosidades simples e espontâneas (estou pensando no gesto espontâneo, de Winnicott). Como a Raposa disse, “a gente só conhece bem as coisas que cativou”, e tal conhecimento se dá pelos aspectos essenciais. Estes, não são o que os adultos acham: qual sua idade, quanto pesa, quanto dinheiro tem. “Não perguntam nunca: ‘qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que coleciona borboletas?’”.
É algo bem mais “profundo”; o cativar não é seduzir ou impressionar por qualidades quaisquer: é um adentrar a essência, e aí tem de ser muito mais cuidadoso pois é bem mais sério. Eu penso naquilo que Winnicott diz sobre o core, o nosso núcleo escondido e que assim deve permanecer.[4] A violação deste âmago do self, diz ele, é muito pior do que ser “comido por canibais”. Algo tão delicado assim, tem de receber o tratamento devido. Não é dívida, é comprometimento humano. Simplesmente porque se foi cativado.
O piloto narrador do livro, ao demonstrar seu desprezo pelos números e fachadas do mundo adulto, diz como gostaria de ter começado a história: “Era uma vez um principezinho que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo... Para aqueles que compreendem a vida, isso pareceria, sem dúvida, muito mais verdadeiro”. “Amigo”, aqui, é usado no sentido mais significativo que esta palavra pode ter. É a necessidade de ser reconhecido, de ser cativado e se deixar cativar. Qualquer pessoa que encontrou algo próximo disso tem muita sorte. Pode ser um amor, um analista... e até um amigo.
“Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante”, ensina a Raposa ao Principezinho. Sempre me perguntei: será que é o tempo? E, muito mais ainda: será que é perdido mesmo? Porque eu penso que se trata de investimento. Não apenas só conhecemos bem o que foi cativado, mas pessoas ou coisas se tornam importantes porque foram cativadas. E porque, de alguma maneira, fomos cativados também. Não se pode ser desleixado neste instante. “E nenhuma pessoa grande jamais compreenderá que isso tenha tanta importância”
Junho/Julho, 2025.