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Verdade sem amor

Foto do escritor: Juliano CorrêaJuliano Corrêa

Cazuza cantava: “mentiras sinceras me interessam”. Também interessavam “raspas e restos”, “migalhas dormidas (do teu pão)”, “pequenas porções de ilusão”. Claro, fazia parte do contexto da clássica canção (e eu diria também da época) do Barão Vermelho “Maior Abandonado”. Mas eu não estou nem um pouco interessado em mentiras (mesmo as sinceras) agora. Por mais que as mentiras, ainda mais as sinceras, tenham uma vantagem paradoxal: elas não enganam. Como assim? Não são para enganar? Óbvio que sim, mas o objetivo é esse mesmo! Então, não há engano quanto a isso. Nos casos em que se mente sem saber que mente (como o clássico “mentir para si mesmo”), bom, aí há uns tratamentos para se fazer né, psicanálise é um deles. Eu quero falar de algo pior: a verdade. Mas como a verdade pode ser pior que a mentira? Vou explicar.

É um tipo de verdade. Melhor: é um tipo de como dizer a verdade.

Há uma frase famosa daquelas que, pelo jeito, ninguém sabe de quem é, eu passei a vida inteira dizendo (inclusive em sala de aula) que era de Winnicott! Engraçado: eu nunca tinha lido isso na sua obra, mas fazia tanto sentido! Ainda faz. Diz assim: “verdade sem amor é crueldade” (há um complemento de que “amor sem verdade é hipocrisia”, ou “é paixão”, ou ainda outras coisas, parece ter muita variação, mas é a primeira parte que interessa agora). Eu fiz uma pequena pesquisa. A frase é atribuída a Bion quase sempre. Em um artigo científico, li que Bion a repercutiu, mas que ela parece ser de Kant ou Bacon. Enfim, se você souber de quem é (mas souber mesmo!), por favor, me avise. Por pior que seja não dar o crédito merecido, vale mais aqui o significado que essa frase pode ter do que o autor real.

(IMPORTANTE: não coloquei isso como PS porque é melhor que esteja no corpo do texto. Eu já havia terminado de escrever esta crônica quando uma pessoa especial, quer dizer uma pessoa na qual eu confio, veio em meu socorro com uma pesquisa a mais. Ela me disse que realmente não há confirmação de quem é a frase; porém, trouxe uma informação nova que eu não tinha visto: de que a frase seria de Santo Agostinho e sua filosofia que unia a caridade como elemento importante. Eu acho essa origem muito mais adequada do que as que eu relatei acima. Dito isso, sigamos).

É que a tal da verdade “nua e crua” não é uma coisa boa, não se diferencia da mentira no quesito de danos (aí, talvez a “mentira sincera” seja muito melhor sim!). Agride tanto quanto. Eu acho que fica um tipo de verdade vazia, no sentido de praticamente perder sua função primordial que seria, penso eu, informar. Ela mais ataca do que informa. A ideia aqui é de que o conhecimento, ao nos tirar da névoa da dúvida, pode ter o poder de permitir nos movimentarmos com mais clareza, menos atrapalhados com todo o tipo de fantasia que, muitas vezes, vem junto com o não-saber. Ou seja, trata-se de ter uma vivência mais conectada com a realidade, o que pode trazer uma série de vantagens e evitar um engarrafamento de atrasos na vida da pessoa. Porém, se na verdade está excluído o cuidado, o carinho, enfim, o amor, ela perde muito, talvez totalmente, a sua utilidade. Aí que ela fica oca, serve muito mais para agressão, não se diferenciando, nesse sentido, da mentira (e sendo ainda pior do que uma mentira sincera, pensando que esta vem com mais simpatia).

Eu estou sim questionando frontalmente a ideia da “verdade a qualquer custo”, de que a verdade é sempre a melhor opção, “só a verdade liberta”, esse tipo de coisa que eu acho uma besteira muitas vezes. Porque a verdade só tem seu valor real quando acompanhada pelo amor; sem isso, ela é fútil, e nós sabemos que uma vida de futilidades não é um bom caminho geralmente.

É um debate complicado (e não só por a verdade ser um conceito tão escorregadio): nós temos um apreço pela verdade.[1] (Nos dias de hoje, de mentiras tomadas como “liberdade de expressão” e com objetivos nefastos, pergunto-me quem seria esse “nós”. Os psicanalistas? Deveriam, mas são todos?... Mesmo assim, mantenho minha posição). É que eu aprendi, durante minha formação toda, que a verdade é imperativa. Clinicamente, temos um compromisso com a verdade. Basta lembrarmos de Freud, no importantíssimo texto “Análise terminável e interminável”, de 1937: “não devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”, e ele ainda completa: “isto é, no reconhecimentoda realidade”. Grifei “reconhecimento” porque o próprio Sigmund não está falando sobre dizer a verdade desnorteadamente; não, ele está refletindo sobre as condições internas necessárias para um analista que, com todos os problemas, físicos e psíquicos, que possa ter (e sempre tem! Ele mesmo coloca isso), deve possuir “um grau considerável de normalidade e correção mental”. Que rico e importante isso!

Só que é ainda mais complexo: é uma verdade (nesse caso da análise, diferentemente de todo o resto que estou falando) que não é nossa, logo, não nos cabe “anunciar” nada sobre ela: o objetivo é que possa aparecer a verdade da pessoa que nos procura para tratamento; é dela, não nossa. Tudo no tratamento psicanalítico é uma construção conjunta: temos nossa participação decisiva, é claro, com nosso conhecimento da técnica e também do funcionamento da pessoa que atendemos; no entanto, a verdade “final” (entre aspas, pois essa verdade própria, para complicar mais ainda, não é definitiva muitas vezes, é bem mais plástica) pode ser chancelada apenas pelo analisando, pois é sobre ele que se trata (é por isso que não somos “neutros” de forma alguma, mas obrigatoriamente temos de ser abstinentes). E mesmo assim, mesmo tendo uma participação (importante), não sendo o portador da verdade, o amor (que poderíamos chamar de transferência?) é essencial para o que dizemos para os analisandos, para as criações que ocorrem no setting psicanalítico. Como, por exemplo, delineamos um diagnóstico (mais no sentido de como a pessoa funciona, menos na atribuição do nome), quando questionamos um pensamento ou comportamento, quando damos uma interpretação: se essa busca de verdade não é feita com cuidado (amor), ela é mais sentida como invasão, como agressão. Mais atrapalha do que ajuda a criar ou “libertar” qualquer coisa. De que vale a verdade dessa maneira?

Mas então, por que verdade sem amor é crueldade? Eu acho que, apesar de batido, ninguém explicou isso melhor do que a Raposa para o Principezinho: “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Isso é de uma profundidade gigantesca! Quer dizer que se, por exemplo, eu consegui a proeza de te cativar, eu sou responsável por ti. “Ah, mas então terei de ficar a vida inteira devota para essa pessoa sem mais a amar?”. É claro que não! Não tem a ver com isso. Tem a ver com a responsabilidade (que é uma coisa muito adulta – ou talvez seja preciso a genuinidade infantil para isso), tem a ver com cuidado, carinho por quem se amou um dia, mesmo que não se ame mais. Eu penso que estamos falando de um tipo de amor que, sendo verdadeiro, mantém-se com seus níveis e jeitos diferentes. É uma questão ética. É disso que a Raposa fala com o Principezinho: não é que ele devesse ficar dedicado a Rosa para sempre, mas a Rosa, como ele mesmo descobriu, não era mais (e nunca voltaria a ser) uma rosa comum. Ela tinha sido cativada. Era a Rosa dele.

Para dar um exemplo (e usar a relação analítica), uma coisa que ouvi algumas vezes há muito tempo: “não existe ex-analista”. Você pode responder: existe sim, eu mesma já me tratei e a análise terminou, não consulto mais com o analista, é “ex”! Sim, eu te entendo, eu também tenho “exes” (ex não tem plural, mas fica tão estranho né). Não acho que essa frase tenha um significado original e correto, então, vou colocar o que eu entendo (e o que me faz concordar com ela).

A não existência de algo como “ex-analista” não se refere ao tratamento não ter acabado, ao relacionamento continuar, nada disso. Eu compreendo essa ideia significando que o ex-analista nunca assume um lugar de indiferença completa, entende? Nunca será uma pessoa/rosa “comum”, sempre haverá algo de diferente nessa relação. Você talvez já tenha ouvido aquela ideia clássica de que uma análise termina quando a transferência é resolvida. Ok, mas uma transferência deslindada não significa supressão, desaparecimento da transferência; é muito mais algum tipo de transformação. Ou seja, ela não desaparece, modifica-se por certo, mas há uma marca singular nessa relação que permanece, mesmo mudando. Assim, essas duas pessoas estão conectadas: são responsáveis (uma pela outra!). Outro exemplo rápido: você pode nunca mais ver seus pais na vida, mas, independentemente do que tenha acontecido, eles não ficarão indiferentes para você.

Eu vou ainda um pouco mais longe. De acordo com o que estou colocando, o saber (da verdade) pode não ser imperativo, pode não ser tão bom, pode até vir a ser desastroso! “Mas então é bom estar na dúvida, viver com base maior na fantasia?”. Não, não é! Nem um pouco. Mas eu estou falando, vamos usar outra palavra, de respeito. Respeito no sentido desse tipo de verdade, porque se gosta mesmo que não se queira mais (vale para analistas e para amores!). Sem isso, não vale a pena contar ou saber da verdade, pois há indiferença, zero cuidado. Eu sinto como algo próximo da invasão ambiental que o bebê pode sofrer, tal como Winnicott descreveu: nesse caso, há um tipo de vínculo defeituoso que faz com que aquilo que poderia/deveria ser bom e natural, torne-se um insulto. Você consegue perceber a diferença? Por essa razão que há crueldade: a verdade sem amor é uma verdade sem sentimentos, por isso indiferente, afinal, ódio não é o contrário de amor, não é? Freud nos ensinou isso. Daí ela servir muito mais como hostilidade do que qualquer outra coisa.

Cuidado, carinho e amor. Se a pessoa não tem isso naturalmente, a tal da “empatia”, não serve para ser psicoterapeuta; na verdade, ela está bem mais perto de ser uma psicopata.

Então, próxima vez que você for dizer “a verdade”, a sua verdade (ou mesmo procurar por uma!), considere isso. Há respeito, cuidado, carinho? Há amor? Se sim, sem sombra de dúvida é o melhor caminho. Se não, faça o esforço para pensar um pouquinho (mais ou de novo): com grande probabilidade pode ser uma invasão, uma agressão. Uma verdade sem amor. Isso só se faz com quem não se cativou, com quem não tem a mínima importância.

 

 

Janeiro, 2025.


[1]muitas vertentes para se analisar a questão da verdade na psicanálise, como, por exemplo, a interessante diferença que Freud postula entre verdade histórica e verdade material em “Moisés e o monoteísmo”, de 1939.





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