Invisíveis
- Juliano Corrêa

- há 11 minutos
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Eu estava na metade do curso de psicologia quando iniciei meu primeiro tratamento psicológico. Digo “o primeiro” porque outros vieram depois: Freud mesmo dizia que todo o psicanalista deveria, de tempos em tempos, retornar ao tratamento para uma “reciclagem”. Mas este que estou me referindo foi com uma psicóloga que não era psicanalista. Até hoje não sei o que ela era (se “era” alguma coisa nesse sentido de linha teórica). Engraçado que, mesmo na época (estudantes de psicologia são enlouquecidos para saber a “linha teórica” de seus psicólogos, não?), eu não tinha muito interesse nisso. Nem depois, aí já com analistas e no meu processo de vir a ser psicanalista, não tinha interesse em muitas coisas que a maioria das pessoas parece ter de descobrir sobre o seu terapeuta. Ela foi exatamente a que eu precisava,[1] sou até hoje muito grato. Só que o que eu quero falar nesta crônica não aconteceu no consultório desta minha primeira psicóloga; aconteceu na rua.
Especificamente na Rua da Praia, talvez o logradouro mais icônico de Porto Alegre, é a rua mais antiga da cidade. O nome oficial, pelo qual também a chamamos, é Rua dos Andradas. É, obviamente, no centro de Porto Alegre, e tinha o “praia” no nome porque fazia margem com rio Guaíba. Com os sucessivos aterramentos, afastou-se da “praia”, mas o nome continuou até hoje, mesmo que não mais oficial. Por uma dessas ironias do destino, voltou a ser “praia”, no pior dos sentidos, na enchente do ano passado...[2]. A Praça da Alfândega, onde acontece todos os anos a gostosíssima Feira do Livro,[3] também se situa ali. É o coração de Porto Alegre, já foi o centro social e comercial da cidade, hoje está mal cuidado e deixado de lado, o que é muito triste para quem é daqui. Pois o consultório dessa minha primeira psicóloga ficava ali, na Rua da Praia, em um daqueles prédios grandes que têm a entrada aberta, com colunas também majestosas que quase se misturam com a rua.
Eu costumava chegar um pouco mais cedo do meu horário e, calmamente, fumar um cigarro olhando o movimento da Rua da Praia antes de subir para o consultório (hábito que se manteve em toda a minha vida de análise, mudando as ruas e salvo os contratempos e atos falhos que me fizeram chegar atrasado). Em um desses tantos dias, estava eu ali, fumando, quando um homem maltrapilho e mau cheiroso se aproximava pedindo dinheiro para as pessoas. Todas se esquivavam dele dizendo que não tinham nada ou, o que é mais comum, fingindo que ele não existia, pois assim é mais fácil, né.
Eu não me sentia ameaçado por aquele provável morador de rua, tinha até certa tranquilidade e familiaridade com ele. O motivo disso é porque eu estava fazendo estágio no Hospital Psiquiátrico São Pedro naquela época, a primeira instituição psiquiátrica de Porto Alegre, com mais 140 anos de história.
Eu amava trabalhar no São Pedro, com todas as minhas forças. E não foi só pelo encantamento do primeiro estágio (até porque não era um lugar exatamente encantador). Eu trabalhava na Oficina de Criatividade. Era um local, no último andar do prédio antigo (depois mudou, pelo que eu soube, para o térreo, o que eu achei uma atitude muito adequada), onde os pacientes iam para... criar! Desenhar, pintar, colar, bordar, qualquer atividade criativa/artística. Muitos iam só para circular por lá: era um lugar bom de se estar. Tinha liberdade e, mais que tudo, espaço para a criatividade. Era bacana demais. Não eram pacientes agudos (em surto) que frequentavam, eram os crônicos, que estavam internados, na sua maioria, há muitos anos (e muitos deles com um diagnóstico muito duvidoso para tal internação...). Eu sempre achava, até pelas experiências que tive e prontuários que eu li, que boa parte das pessoas internadas lá eram como muitos moradores de rua hoje, só tiveram uma sorte (no sentido de acaso) diferente.
O homem “assustador” da Rua da Praia finalmente se aproximou de mim, o que não correu dele. Pediu dinheiro; disse que não tinha (daquela vez, não era desculpa, era verdade!). Pediu um cigarro (eu estava fumando). Eu nunca neguei cigarro para ninguém, pra mim é como negar um copo de água (ainda que tenham os folgados...). [4] Tirei minha carteira de cigarro do bolso e havia três ou quatro cigarros, então disse para ele que podia ficar com tudo. Ele me olhou muito desconfiado; disse: “mas aí tu vai ficar sem”. Eu reafirmei que estava tudo bem, que eu tinha mais em casa; ele ainda ficou constrangido e disse mexendo nos seus bolsos: “eu tenho uns dois reais aqui pra te dar...”. Eu pedi para ele parar com isso e aceitar que estava tudo bem. Ele se tranquilizou e me pediu fogo. Acendi o seu cigarro, ele agradeceu, e ficou algum tempo fumando comigo ao meu lado. De repente, ele se vira furtivamente para mim, abre o seu casacão mostrando uma garrafa sem rótulo que sabe lá deus o que deveria ter dentro, e me pergunta: “tá a fim?”. Não era só porque eram dez da manhã; eu acho que morreria em qualquer horário que eu bebesse aquilo. Frente a minha educada e agradecida, ainda que surpresa, recusa, ele tomou o seu rumo, se é que tinha um. Conheci uma pessoa legal e ética naquele dia. Sinceramente, ele quis dividir alguma coisa (importante) comigo. Hoje, eu penso que com isso ele teria reconhecimento, seria visto enquanto todas as pessoas passavam por ele sem o ver, quando não o odiando.
Essas pessoas não são invisíveis em si, nós que as transformamos em invisíveis. Porque é melhor para a vista, para fugir de qualquer responsabilidade, para justificar pela infundada “meritocracia”: “é vagabundo, se quisesse podia arrumar um trabalho”. Esse pensamento é um absurdo tão gigantesco, tão incrustado em uma estrutura que vem lá desde sempre, e que essas pessoas simplesmente não têm noção e nem querem ter noção mesmo tendo todas as condições para conhecer a realidade. Por isso que eu sempre digo que esse tipo de gente (que eu chamo de pobre) só tem duas opções: é burro ou mau-caráter. Não tem outra possibilidade.
Esses dias, li uma reportagem muito bonita sobre o último paciente morador do São Pedro. Agora, o Hospital só aceita internações para os que chamei de “agudos”, internação máxima de 21 dias, se não me engano. Os já antigos moradores do São Pedro, os “crônicos”, foram realocados em moradias nas quais eles continuam sob supervisão, mas têm muito mais autonomia, o que significa uma vida própria, coisa que estavam longe de ter no São Pedro. A parte que mais gostei da reportagem foi a que dizia que eles geralmente gastavam o dinheiro que recebem do governo com guloseimas. Ganhei o dia com isso! Pensei tanto nas pessoas que conheci no meu estágio... Não são as que estão tendo suas casas agora, mas são exatamente como elas. Aí, eu fiquei muito feliz. Ver que a reforma psiquiátrica, mesmo a passos curtos e tropicados, em algum momento dá resultados. E que resultados!
É triste como tantos de nós achem que as pessoas não merecem, no mínimo, dignidade. De maneiras indiretas, que são ainda mais cruéis, pois carregam justificativas sociais “lógicas”, querem apagar essas pessoas, querem as colocar à parte, bem longe da vista. Isso ocorre com as acomodações imobiliárias das nossas cidades, com os moradores do São Pedro, que tais pessoas preferem que continuassem morando lá, e também com aquele homem gentil que, sem ter quase nada, ainda assim me ofereceu um trago da sua bebida.
Quem estuda psicanálise sabe que o invisível não desaparece, ao contrário: volta com mais força do que nunca. Só que há diferenças em como lidar com esse invisível. Eu acho que talvez possamos pensar assim: o invisível não se mostra ao ser incitado, atacado (no caso, as resistências), isso faz com que ele se retraia. É o que se pode depreender de Winnicott quando ele fala do gesto espontâneo que deve ser acolhido pelo ambiente, ou sobre o core, o âmago do ser que deve permanecer inviolável.[5] Ele pode vir a se mostrar com aceitação, com o reconhecimento de quem aquela pessoa é – no caso de uma psicanálise, o esforço para que a pessoa possa ser quem ela é (e que, muitas vezes, ainda não sabe).
Em “O lugar onde vivemos”, de 1971, Winnicott, mais uma vez reforçando a similaridade entre do desenvolvimento emocional do bebê com o tratamento psicanalítico, diz que o grau de confiança na constância (da mãe/terapeuta) ocorre pelo “paciente começar a sentir que a preocupação do terapeuta se origina não na necessidade de um dependente, mas na capacidade do terapeuta de se identificar com o paciente a partir do sentimento de ‘se eu estivesse no seu lugar...’”. É uma identificação, é um ato de empatia. “Se eu estivesse no seu lugar...” é bem diferente do que “o que eu faria...”. Estamos falando de algo muito mais no nível do “tato”, descrito por Ferenczi, ou da intuição da mãe sobre o que o bebê precisa, tão destacada pelo próprio Winnicott.
O psicanalista italiano Franco Borgogno diz que Ferenczi, no seu Diário Clínico, aponta para a necessidade de o paciente não ser uma interpretação no sentido clássico, da “descoberta” de conteúdos (ou desejos, como é o necessário para muitos) inconscientes, mas um reconhecimento da existência do analisando, que acontece pela inevitabilidade do encontro dessa dupla.[6] Ao acontecer esse encontro de verdade, chamado de empatia, ao se estar genuinamente no lugar do outro, abre-se a possibilidade de aceitação. Aí, não se é mais invisível, se é alguém. Único. Com vida própria e, consequentemente, com um lugar no mundo. Não é esse o objetivo maior de toda a psicanálise?
Eu acho que existem várias tragédias na vida, não ter futuro é das maiores. Não se tem futuro quando não se sabe quem se é; não se sabe quem se é quando não se é reconhecido, quando não se é visto pelo outro. É triste não ser reconhecido no seu esforço, nas suas fragilidades, no seu ser mais íntimo. Desaparecer em julgamento.
Isso vale muito para as pessoas que vão aos consultórios psicanalíticos. Daquela minha primeira psicóloga, eu pude tirar muito mais de quem eu era e de quem eu estava (querendo) me tornar do que “grandes descobertas” sobre os meus motivos. Ela era muito mais acolhedora do que interpretativa (será que, sem ser psicanalista, ela era uma "psicanalista mais ontológica"?).[7]
Também vale para as pessoas que encontramos por aí, que não sabemos de onde vêm nem para onde vão, mas que carregam consigo toda uma história de medos, perdas e também conquistas que talvez possam ter se perdido nesse labirinto da vida. E merecem ser tratadas com cuidado, pois não devem ser simplesmente apagadas e jogadas em uma lata comum do esquecimento.
Como um andarilho que pede um cigarro e oferece um trago da sua bebida.
Maio – Novembro, 2025.



