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Foto do escritorJuliano Corrêa

Voltar a viver


Há um filme bem antigo, de 1991 (é confuso para mim classificar como “bem antigo”...), “Voltar a Morrer” (“Dead Again”), dirigido por Kenneth Branagh, estrelado pelo próprio e por sua esposa na época, a maravilhosa Emma Thompson. Andy Garcia também tem um papel importante. O filme é muito bom, vale a pena! Eu gostei demais na época por tratar de questões que eu meio que acreditava (ou queria): destino romântico, espiritualidades, carmas, esse tipo de coisa. Como há tempos não creio em nada disso, minha apreciação pelo filme diminuiu um pouco, mas ainda o considero ótimo. O que talvez tenha se tornado ainda mais interessante para mim é outra coisa.

Robin Williams tem uma participação especial no filme, o seu personagem aparece em algumas poucas cenas, mas essenciais para a trama. Ele é um psicólogo que teve sua licença cassada por envolvimento sexual com pacientes. Trabalha em um frigorífico (ou algo do tipo). O personagem de Kenneth Branagh, Mike, que é um detetive, encontra-o primeiramente por causa de um ex-paciente que morreu e deixou seu dinheiro para o antigo terapeuta. A conversa entre os dois é bem interessante. Do nada, Cozy, personagem de Robin Williams, pergunta se Mike quer um cigarro, ao que ele responde negativamente, pois não fuma (ele estava tentando parar). Contudo, Cozy diz: “você olhou para minha carteira de cigarro três vezes no último minuto, e segura sua caneta como se fosse um cigarro”. Quando o detetive está indo embora, o (ex)terapeuta o chama e diz: “ou se é fumante, ou não se é fumante, não há meio termo; o truque é descobrir qual você é, e ser”.

Não estou me referindo exatamente ao cigarro neste texto, ainda que isso também seja interessante, afinal, eu mesmo fumo. Não é, por favor, uma defesa do cigarro, tanto quanto não condeno também. Só que têm coisas que eu acho curiosas. Há tempos foi iniciada uma “guerra” contra o cigarro. Claro que não tenho nada contra isso: eu sou de uma época na qual existiam propagandas de marcas de cigarro (todas elas há muito proibidas) que mostravam pessoas jovens, atléticas, saudáveis, fazendo exercícios, aventureiras, e com sorrisos branquíssimos, todas fumando! Louco né? Mas era assim (a bizarrice, em comercias ainda mais antigos, vai bem além disso, como mães fumando com os bebês no colo e noivas fazendo mala com pacotões de cigarro para a lua de mel!). Eu também sou altamente favorável que não se fume em lugares fechados (além do fumo passivo, apodrece roupas e cabelos, para quem os têm, de todos). Só que houve uma restrição extrema: nem os lugares para quem decidiu estragar seus próprios pulmões existem mais (com raras exceções). Somos obrigados a ir para a rua. Como medida educativa, não sei se funciona: não vou deixar de fumar por causa disso, talvez até me dê mais vontade! (Ainda que, pelo que eu veja, as novas gerações são menos fumantes, mas agora tem esse cigarro eletrônico que virou moda...). O que sempre achei interessante é que o cigarro é coisa mais terrível do mundo (não há objeção em se concordar com isso), mas o álcool não tem problema, é altamente divulgado e até “saudável” (tomar uma “cervejinha”), quando o alcoolismo traz malefícios ainda mais sérios: não só para saúde do bebum (que são muitas), mas também para os que o rodeiam, até para os que nem o conhecem. São vários danos sociais, violentos muitas vezes, que o cigarro não causa. Além disso: é muito desagradável alguém fumando ao seu lado, mas um bêbado, não é? E eu falo com muita experiência em ambos esses campos... Parece que o álcool é uma coisa bacana e aceita na nossa sociedade; cigarro não é (mais, porque também já foi! E de formas muito anormais...). Ainda há mais.

As pessoas que “bebem socialmente” geralmente são aquelas que bebem em algum evento, e pouco. Só que elas sempre pagam por suas bebidas, não é? Já os “fumantes socias” (sim, existem, são aqueles que “só fumam quando bebem”, esse tipo de coisa) são diferentes! Geralmente, eles não têm a dignidade de comprar uma carteira de cigarro (ou alguns avulsos, que seja) quando saem à noite, e ficam filando cigarro de gente como eu com a “justificativa”: só fumo quando bebo. O que eu tenho a ver com isso? Se só fuma quando bebe, e vai beber, compre cigarros! Eu não estou reclamando de uma questão financeira: para gente como eu, não faz diferença dar meia dúzia de cigarros para alguém; inclusive, eu nunca nego cigarro para ninguém (quem me conhece, sabe disso), não acho justo, sinto como se negasse um copo de água. Também não acho (espero que não! Por favor...) que essas pessoas deixem de comprar cigarro por causa do dinheiro, eu acho que diz respeito a um nível mais simbólico: é como se o não comprar o cigarro deixasse a pessoa livre de ser classificada como “fumante”. Tipo: eu estou fumando, mas não fumo! Isso é quase tão enlouquecedor como hoje são as antigas propagandas de cigarro. Querido(a), tu fumas sim! Podes não fumar como eu, mas fumas sim! É como quem bebe “socialmente” dizer que não bebe só porque parou de comprar sua bebida – e não estou estimulando isso!

Pode parecer estranho, mas toda essa discussão sobre cigarros e álcool tem muito a ver com o objetivo deste texto e com a cena do filme que descrevi no início. Algo da nossa vida mesmo, de “ser o que se é”. Nossa, isso soa tão filosofia barata horrível... Eu sei, vou tentar me explicar.

É inevitável eu lembrar do obscuro texto do Freud (obscuro para quem só lê os “famosos”) “Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo”, de 1925, um dos trabalhos derivados da obra inaugural, “A interpretação de sonhos”. São três breves ensaios (todos valem muito a pena serem lidos!), Lacan faz uma interessante análise, basicamente do 1º e 3º ensaio, na segunda lição do seu Seminário 21 (também vale a pena ler). No 2º ensaio, “Responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos”, Freud fala sobre sonhos que desafiam nossa ética, onde nos encontramos fazendo (ou desejando) algo que vai diretamente contra nossos princípios morais. Nossa reação mais normal, ao acordar, é dizer: “ufa, foi só um sonho”. Isso pode ser traduzido como: ufa, não tem nada a ver comigo, não sou eu, foi um sonho. O que ele diz, então, é que o sonho é do sonhador, ou seja, não é um sonho: mesmo que não queiramos (e nunca queremos), “aquilo” ali é nosso, pertence-nos de alguma forma (via os desejos expressos ou outra coisa qualquer dependendo de como se entenda os sonhos). Isso quer dizer, como o título do ensaio, assumir reponsabilidade (não culpabilidade, o que é bem diferente) pelos seus próprios sonhos, no caso, seu próprio inconsciente.

Na belíssima canção “Acrobat”, do U2 (do álbum Achtung Baby, do qual já falei bastante no primeiro texto publicado aqui), é dito: “in dreams begin responsabilities”. É bem isso. O “nos sonhos começam responsabilidades”, falando da música, pode (e deve!) ser alargado (até porque não acho que Bono estava pensando na teoria dos sonhos de Freud...) para a vida como um todo. Os sonhos, nesse caso, podem ser entendidos não como exclusivamente os oníricos, mas o daydream, o rêverie, o devaneio, ou, como eu prefiro, o twilight (que eu ainda irei explicar e diferenciar dos anteriores em outro texto). A responsabilidade sobre quem se é (ou se pode, ou se quer ser).

Certamente, o “ser quem se é” envolve questões muito complicadas nos dias de hoje que são externas, de não aceitação. Esses dias, acabei assistindo novamente ao belo filme “Juno” (também vale muito a pena). E logo no início pensei: que chato, estará para sempre nos créditos “Ellen Page”. Para minha surpresa, eles trocaram: está “Elliot Page”, ator principal do filme, o que achei a coisa mais legal (para quem não sabe, ele é transgênero e não se assumia assim na época). Mas eu não estou falando desse tipo de dificuldade de se assumir, estou em referindo aos casos que não sofrem preconceito, nos quais a questão é só interna mesmo. Também não é, como já disse, propagação de nenhuma filosofia barata do “ser quem se é”, a ideia de Freud que evoquei mostra isso; mas tampouco estou falando a favor de passividade, no sentido de “se é (só) isso que posso ser, ok, vou me sossegar”. O “assumir quem se é” não tem nada a ver com isso. Tem a ver com algo muito mais profundo (e interessante).

Eu estou me referindo ao que fazemos (tentamos), basicamente, em um tratamento psicanalítico. Isso, de acordo com as lições que Winnicott nos deixou. Não é algo simples como talvez possa parecer: ser quem se é demanda muito esforço, decerto uma vida inteira! Não é uma justificativa, há mais elementos para se discutir nisso, alguns nem tanto justificáveis, mas esta é uma circunstância que explica o motivo de uma análise ser tão longa: não é algo que se faça do dia para a noite, não há receita pronta, necessariamente tem de ser uma descoberta, e descobertas podem levar tempo, ainda mais as descobertas que tem de ser criadas.

Ser quem se é certamente se trata de aceitar limites e impossibilidades, mas também é o contrário! É se tornar o máximo que se pode ser, utilizar toda a potência de seu cerne. Ser quem se é não é quem se quer ser (desejos, fantasias, sonhos, etc.), mas é sobre acolhermos contextos de nossas vidas, seja no que podemos ou não mudarmos: quem se é (ou pode vir a se tornar) na sua essência. Eu acho que este é o principal trabalho em uma análise, trata-se disso.

O psicanalista norte-americano Thomas Ogden me influencia muito na leitura que faz desses pontos que destaco. Eu decidi (tive dificuldades nisso) classificar este texto como uma “crônica” (na minha arbitrariedade de classificação que falei na descrição do site): não tanto pelo tamanho, mas me pareceu que um escrito falando sobre cigarros, álcool e um filme não é a maneira que decidi o que seria o “texto psicanalítico” (provavelmente isso ainda seja resistências minhas, pois há preconceito e conservadorismo aí, quem sabe no futuro tudo se junte!). Então, não irei me adentrar em detalhes mais técnicos (até poque já estou terminando), é certo que farei isso em breve. Pois na bela análise que Ogden faz de um texto célebre de Winnicott (“O medo do colapso”), no seu livro “Reclaiming unlived live: experiences in psychoanalysis”, ele coloca, lindamente, a função da análise (uma “necessidade universal”) de cada pessoa reclamar, ou clamar, pela primeira vez o que ela perdeu de si mesma e, assim, ter a oportunidade de se tornar a pessoa que ela ainda tem o potencial de ser. Porções não vividas que ficam perdidas e prejudicam o desenvolvimento total do potencial. Uma coisa de máxima importância que ele destaca é que nesse processo, em uma análise, a pessoa não está sozinha. Isso será tema para outro texto também, já estou me estendendo demais!

Eu sempre fui, e continuo sendo, um crítico das traduções de títulos de filmes que temos aqui. Tá bem que algumas são difíceis, então tem de se fabular, mas um monte de outras são fáceis, para que inventar? Não entendo isso. Este filme que abordei (partezinha dele na verdade) é o caso de uma tradução boa, sou eu mesmo quem a está pervertendo. Voltar a viver. Poderia até ser até, mais adequado no meu caso, “Começar a viver” (seria péssimo para o filme!). Talvez para isso fosse necessário “morrer de novo” (ou só “morrer”, simbolicamente claro!)? Pode ser, mas aí a gente já entra em discussões filosóficas demais.

Enfim, ainda que o meu objetivo aqui não tenha sido exatamente discutir sobre “cigarros e álcool” (como na música o Oasis!), se o que escrevi fizer uma “pessoa que não fuma” comprar seu próprio cigarro, já terá valido à pena!



Música do primeiro disco do Oasis... época boa em vários sentidos... grande rock derivado do blues (coloquei uma versão ao vivo porque é mais visceral, talvez passe mais emoção... e também tem legenda!).






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