Paris... mas no Texas
- Juliano Corrêa

- 31 de out.
- 9 min de leitura

Eu sou faísca atrasada para muitas coisas; para quase tudo, na verdade. Se eu estiver tendo um debate com você, pode ter certeza que daqui a três dias (para ser muito generoso comigo mesmo) eu terei um ótimo argumento! É um inferno não ter a presença de espírito para reagir no instante exato. Então, se você já teve alguma discussão comigo, não retome o tema anos depois, pois aí se prepare, você vai ver só!
Consequentemente, há muitas obras clássicas que eu não vi, não li, não escutei. Não vou nomear todas aqui, quero manter um pouco de dignidade. Uma delas, entretanto, é o filme de 1984 “Paris, Texas”, obra-prima do diretor alemão Wim Wenders, estrelado por Harry Dean Stanton, interpretando Travis, e por uma estonteantemente bela Nastassja Kinski, como Jane. Bom, “Paris, Texas” era uma das grandes obras que me faltavam; não é mais.
Recentemente, eu assisti novamente à “Asas do desejo” depois de muito tempo. Eu fiquei espantado. Puta que pariu, que filme lindo! Eu não lembrava mais. Por fruto do acaso, na mesma época minha pessoa especial de longa data me perguntou se eu já havia visto “Paris, Texas”. Disse que não, justifiquei, etc. Contudo, comentei sobre “Asas do desejo”, que é de Wim Wenders também. Em troca (pois é assim que acontece, né?), ela me falou de “Dias perfeitos”, que também não tinha visto e ficou na minha lista (e já foi riscado e também escreverei sobre ele daqui a pouco!). Praticamente, fizemos um minifestival oral de Wim Wenders!
Eu escrevi uma crônica, a partir de uma reportagem que me emocionou muito, sobre a importância vital de se ter um amigo/relacionamento verdadeiro.[1] Nesse sentido, eu tive sorte. Uma consequência de se ter uma pessoa assim na vida, é que a palavra dela tem uma força exorbitante. Ao menos, para mim é assim. Dessa forma, o interesse dela por “Paris, Texas” se tornou o meu também, não saiu da minha mente! Como disse Alain Badiou sobre o encontro amoroso, aquilo que era um acaso sem necessidade de ser se transformou em uma necessidade. Li sobre o filme. Tem uma crítica de Angelo Cordeiro, da Rolling Stone, que me matou já no título: “’Paris, Texas’ é poesia da solidão melancólica e um dos mais belos filmes já feitos” (a resenha toda é ótima também). Eu pensei: porra, esse filme deve ser bom pra caralho.
Tudo o que eu li coincidiu com o que se vê no início do filme: um homem com a sua vida destruída (podemos supor isso facilmente) vagando pelo deserto americano. Sem destino. Ele não está indo a algum lugar, não está com um objetivo aparente, está apenas indo. É a metáfora perfeita de estar perdido de si mesmo. O filme não te deixacompletamente no escuro: há explicações, mais sobre o porquê do que sobre o como da situação de Travis, mas elas são bem sutis, ou seja, não há um tutorial explicativo, o que se informa é pelos eventos do desenrolar da história, o resto é conosco. Eu não sou aquele tipo de pessoa (as quais geralmente eu acho chatas) que insistentemente precisa ter as respostas dos motivos, ter a história toda mastigada nos mínimos detalhes. Haja saco!
Os próprios personagens agem com aceitação da incompletude dos porquês. Travis só vai dizer sua primeira palavra depois de meia hora de filme. Nesse período todo, seu irmão está com ele e aceita o seu silêncio. Mesmo quando volta a falar, a situação não se modifica quanto ao entendimento dos motivos que o levaram até ali: quando perguntado o que aconteceu (no seu casamento), Travis diz não saber, não se lembrar. Ele mesmo não está preocupado com isso. Seu irmão, sua cunhada e até seu filho, também não. É como se ele tivesse o acolhimento e o respeito de agir conforme o seu tempo.
Tempo, aliás, do qual ele nos oferece uma valiosa lição. Quando seu irmão diz que o filho pode não lhe reconhecer, visto ele ter estado fora por muito tempo, ele questiona se foi muito tempo. O irmão diz: “foram quatro anos”; ao que ele responde com a pergunta: “quatro anos é muito tempo?”. Seu irmão responde que é metade do tempo de vida do seu filho. Interessante isso, né? A relatividade do tempo. Podemos pensar pela importância da experiência de cada um. É subjetivo: o irmão responde, sobre quatro anos ser muito tempo, que isso é metade da vida do seu filho. Ou seja, depende do contexto. Por isso que eu sempre achei uma grande e renomada besteira essas datas colocadas para, digamos, um luto: seis meses, dois anos, o caralho que o parta de tempo! Como se mede o tempo? Esqueça o calendário, as horas: isso é inventado. O tempo real não funciona assim. É insano e burro dizer para alguém que deve superar tal coisa porque “já passou muito tempo”. Para quem? Como? O tempo não é linear. Ele é labiríntico (mas isso eu vou falar outra hora).
Nessa aceitação da situação e do tempo algo pode ser criado. A diferenciação entre uma abordagem epistemológica e ontológica da psicanálise que Thomas Ogden faz oferece elementos para considerarmos isso. Tomemos o sonho como exemplo: em uma abordagem epistemológica, que é mais clássica da psicanálise, o interesse reside nos significados ocultos do sonho, no conteúdo reprimido ao qual se chega via interpretação; já na abordagem ontológica, o foco maior é na experiência do sonhar, ao invés do que nele pode ter de desejos escondidos. As pessoas em volta de Travis tinham essa posição ontológica: elas aceitaram e valorizaram a experiência que ele estava vivenciando. Dessa maneira, e só assim, abre-se o caminho para a possibilidade de uma criação, de algo novo, de uma invenção da própria história. É o que deve acontecer em uma análise; é o que acontece no filme.
Eu descobri que fui, por 40 anos, vítima da piada que o pai de Travis contava sobre sua esposa. Eu sempre pensei, por causa do título, que o filme seria sobre um tipo de “conexão” Paris-Texas: ele vagando no deserto (no Texas), talvez sua amada estivesse em Paris, teriam tido sua história lá, sei lá, algo assim. O fato de a cunhada de Travis ser francesa parecia dar base para a minha imaginação. Claro, eu (faísca atrasada!) não percebi que o nome do filme não é “Paris-Texas”, mas “Paris, Texas”; é uma vírgula, não um traço. Ele conta a piada do seu pai: dizia para as pessoas que havia conhecido a sua mulher em Paris e parava; todos se impressionavam por acharem a coisa mais linda do mundo uma história de amor que se inicia em Paris, até ele completar dizendo que era no Texas. Existe uma cidade chamada Paris no Condado de Lamar, no nordeste do estado do Texas. Você sabia disso? Eu, certamente, não sabia...
Foi nessa cidade que Travis comprou um terreno para construir uma casa com Jane, serem felizes com seu filho Hunter (que é um gurizinho lindo!). Carregava a foto do lugar no bolso quando foi resgatado pelo seu irmão. O terreno permaneceu vazio para sempre... vazio que Travis carregou consigo. O vazio, a dor, e a tentativa do encontro (talvez mais ainda consigo mesmo) que são vistos nos detalhes, nos olhares, naquilo que não é dito, mas está gritando. Com um ambiente (que se compõe das pessoas) adequado, decerto possa ser ouvido.
Wim Wenders disse que a película foi filmada em ordem cronológica, para os atores se envolverem com a história (eu adoro esse método), o que parece ter dado um resultado muito bom! Só que ele também confidenciou que não tinha um final escrito, e ficou quebrando a cabeça para elaborar um. Aí veio a ideia da cena que eu acho a mais bela do filme: o peepshow. Peepshow é aquele esquema de voyeur, de olhar sem ser visto, e sem conexão física entre os participantes. É o local onde Jane trabalha. Não é só de conteúdo sexual (mas no filme, é). É comum nos serviços de atendimento psicológico das universidades: a sala de espelho onde se pode ver anonimamente o desenvolvimento de um atendimento (ou nas salas de interrogatório que vemos em filmes policiais – qualquer semelhança é mera coincidência).
E a cena final é encantadora: Travis conta a história dos dois para Jane (e, assim, revelando a sua identidade) primeiramente com ela não o vendo, enxergado somente a sua imagem refletida no espelho, e ele falando ao telefone (que era a conexão entre as duas cabines) virado de costas. Em um segundo momento, ele sugere que ela apague as luzes da sua cabine, de modo que ela pode o ver, mas ele não consegue mais a enxergar. Mas mesmo assim, nesse segundo instante, ela senta no chão de costas para o vidro que a permitira ver, para assim contar o seu lado da história. A fotografia (não só dessa cena, mas do filme inteiro) é deslumbrante: há um momento, nesse jogo de ver-não ver/ser visto, em que os rostos de ambos ficam sobrepostos, transmitindo a ideia de que os dois lados da história contado por cada um se misturam na história única do casal, assim como abre a possibilidade para infinitas histórias dentro da mesma narrativa. Soma-se uma revelação muito rica: ele diz que, durante muito tempo depois de ela ter ido embora, conversava com ela; quando ela dá a sua versão, conta que também conversava com ele após o ter abandonado. Separados pela vida, pela distância, agora pelo espelho. Entretanto, de alguma forma continuavam próximos, quem sabe mais próximos do que quando estiveram juntos fisicamente. A fala sempre é endereçada a alguém, mesmo que esse alguém não esteja mais por perto. Mesmo que tenha desaparecido. Mesmo que, talvez, nunca tenha existido.
Outro ponto interessante que o diretor revelou foi que o estúdio o chamou para modificar o fim do filme depois de ele já estar concluído. Frente ao posicionamento de Wim Wenders de que não chamaria o elenco novamente para refilmagens, o estúdio o “tranquilizou” dizendo que a mudança era “pequena”, nem precisaria chamar ator algum, talvez nem precisasse filmar nada de novo, poderia se usar imagens até de outros filmes. Tratava-se “apenas” de mudar a direção do carro que Travis dirige na última cena: ao invés de seguir em linha reta (sabe-se lá para onde, não há nenhuma indicação), o estúdio queria mostrar o carro fazendo um retorno, um U turn, ou seja, dando a volta. É uma troca aparentemente inocente, mas que mudaria a alma do filme. “Travis tinha de ir embora, sabia que sua mulher e seu filho só poderiam ter uma vida boa sem ele, pois ele tinha a consciência de que iria foder tudo de novo. A grande questão do filme é que ele fez uma decisão boa, altruísta; se depois dessa decisão ele fizesse um retorno, isso seria covardia”. Esses foram os argumentos de Wim Wenders para negar o pedido do estúdio, afirmando que essa troca aconteceria somente “sobre o meu cadáver”.
Ainda que tenha o emocionante reencontro de Jane com o seu filho, “Paris, Texas” não é sobre final feliz, como já ressaltei, é sobre a realidade. A ideia do retorno transmitiria a mensagem de que Travis voltou para ficar com Jane e o filho e os três foram felizes para sempre. Típico final feliz que serviria para amaciar o desfecho da história. Estou falando da felicidade plena dos contos de fada, que já vimos que não existe;[2] pode haver, claro, resolução, redenção, mas se paga um preço. Por isso Wim Wenders foi irredutível ao pedido. Uma consequência disso foi que a distribuição do filme nos Estados Unidos foi prejudicada, o que minou as fortes possibilidades que Harry Dean Stanton teria de concorrer ao Oscar.
Fazer Travis voltar da sua decisão “altruísta”, seria minar o que eu vejo como o seu gesto espontâneo. É profundamente genuína toda a sua ação de buscar por Jane, assim como a aceitação de que seu filho o acompanhe na jornada, pois ele sentia falta da mãe. Mais: ele tinha planejado unir mãe e filho para ir embora depois, ele somente foi, algo bem instintivo. O encontro com a sua amada desencadeou o resultado. Isso parece se mostrar antes do último contato com Jane (o que cada um conta a sua parte da mesma história) quando ele grava um belíssimo e sincero áudio de despedida para Hunter: “jamais poderei curar o que aconteceu, nem consigo me lembrar do que aconteceu, é como um vazio. Isso me deixou sozinho de uma maneira que eu não consegui me refazer. E agora, eu tenho medo. Medo de ir embora outra vez. Medo do que eu possa descobrir. Mas eu tenho mais medo ainda de não encarar esse medo”. O único jeito de encarar esse medo seria, ao contrário de fazer o retorno e voltar para uma situação já conhecida (e que, por consequência, já se sabe como termina), seguir sozinho para o aberto das infinitas possibilidades do futuro desconhecido.
“Paris, Texas”, é um filme forte, comovente, sensível, perfeitamente embalado pela memorável trilha sonora de Ry Cooder (que foi uma das inspirações do U2 para compor o clássico álbum The Joshua Tree!). É bonito, plenamente humano, imensamente profundo. Daqueles filmes que a gente lembra exatamente quando, onde e em que circunstâncias o assistimos. Que te deixa durante muito tempo, mais provavelmente para sempre, refletindo sobre. Talvez porque fale de nós. Esqueça de tentar interpretar os seus “significados” (e aproveite, e deixe de ser chata!): o impacto afetivo é completamente subjetivo e fugitivo, qualquer interpretação só vai estragar. Que sorte a minha ter visto esse filme (e ter tido alguém que me levou a ele). Para mim, foi automático escrever sobre “Paris, Texas”. Foi praticamente uma necessidade, em parte para dar um pouco de vazão para essa experiência emocional que vai me acompanhar por toda a vida. Tanto que a minha sensação é que após tudo o que acabei de escrever, eu não disse nada. Talvez porque o principal não tenha como ser dito. Só se sente. E se admira.
No fim do filme, Travis estava asseado, dirigia um carro pela cidade ao invés de andar a pé pelo deserto maltrapilho e morrendo de sede. Mas acho que ainda não sabia para onde ir.
Outubro, 2025.


