
Freud escreveu, em 1910, um pequeno texto muito importante intitulado “Psicanálise selvagem”. Não é dos escritos mais famosos e citados do pai da psicanálise, mas eu sempre o considerei muito significativo: trata de técnica, ética e política. E mais ainda nos dias de hoje, onde basicamente qualquer um se denomina “psicanalista” e oferece “psicanálise” (as aspas são muito propositais).
Pois Freud fala, justamente, dos charlatões (ou seja, desde sempre eles já existiam!), pessoas que não estavam no movimento psicanalítico recém iniciado, que não tinham, por consequência, treinamento e conhecimento suficientes, mas que ofereciam o tal “tratamento psicanalítico” e faziam um estrago nos seus pobres pacientes (pois é isso mesmo que essa gente faz!) por procedimentos que não tinham a ver com a psicanálise. Ele conta o caso do médico que atendeu uma mulher que apresentava sintomas após a separação do marido. O médico, então, diz que seus sintomas são por, falando direta e grosseiramente, falta de foda! Sugere para sua desafortunada paciente três soluções possíveis: voltar para o marido, arranjar um amante, ou se masturbar. Desde já, nós podemos concordar que isso não é “psicanálise selvagem” (eu uso o termo, que nem é tão bom, na esteira de Freud), não é questão de ser boa ou ruim, certa ou errada, simplesmente não é psicanálise. Freud também vai usar isso como uma das justificativas para a criação da IPA, a Associação Internacional de Psicanálise, na tentativa de proteger a psicanálise e controlar quem poderia a praticar, em quem se poderia confiar. Ele estava querendo separar o joio do trigo. Nós sabemos, hoje, que a tentativa não deu muito certo né... mas a intenção era louvável.
Dentro de toda a psicanálise selvagem há, obviamente, a interpretação selvagem; inclusive, penso ser a mais comum.
Quando eu estava no primeiro semestre da faculdade de psicologia, uma professora, muito carismática, engraçada, e cantora (!), deu uma recomendação; ela disse assim: “agora que vocês estão na faculdade, vão comprar a pastinha com o símbolo da psicologia, aí vocês vão estar em uma sala de espera de um médico, e a pessoa ao lado vai ver a pasta, perguntar se é psicóloga, e já vai começar a contar da sua vida ou de algum parente, perguntando o que vocês acham, e vocês estarão loucos para falar né?”. Sim! Ela estava certa! Nós estávamos loucos para demonstrar todo o conhecimento de psicologia que não tínhamos! Ela completou: “gente, não deem conselhos de graça, as pessoas pagam para receber conselho, e pagam muito bem”.
Ela usou a palavra “conselho” (será que usou mesmo ou é minha lembrança encobridora?), e nós sabemos que psicólogo não aconselha ninguém né! Mas vamos entender, como eu entendi, conselho como interpretação, intervenção psicológica. Tirando isso, sua advertência é muito válida por se tratar, no meu entendimento de hoje, de não fazermos uma interpretação selvagem; esta, do exemplo, seria por vários motivos: não se sabe absolutamente nada no primeiro semestre (vamos combinar, né!), o que faz com que a intervenção do aluno sedento seja exatamente a mesma daquele tio chato que dá as direções na vida de todos porque ele já viveu muita coisa, ainda que tenha a moral de cuecas; tio este que o aluno iniciante logo vai descobrir que é clinicamente maluco! Agora, e isso é mais importante, mesmo que já se tivesse a especialização em sei lá o que, ainda seria uma interpretação selvagem! Pense num exemplo comigo: a pessoa está com uma tremenda dor de cabeça (literal) desde que seu casamento terminou. Pode ser reação à separação, pode ser que ela tenha um tumor do tamanho de uma bergamota no cérebro, pode ser que ela tinha sido abduzida por alienígenas que inseriram um chip em sua cabeça. Como eu posso ter a mínima ideia do que é somente a partir desta informação? Nós, pessoas decentes, sabemos que a psicoterapia não se dá por manuais, não há explicação prévia, é tudo “sob encomenda” e muito direcionado para cada caso.
Há alguns dias, eu, que me fiscalizo tanto nesse sentido, cometi esse erro grotesco com uma pessoa tão especial. Dei-me conta na hora até; ela não se sentiu agredida (que sorte!). O que eu quero dizer? Que tipo de interpretação selvagem é esta?
Eu tenho ódio (e hoje em dia, depois de muitos anos de análise né, já respondo da forma mais desaforada que conseguir) de pessoas que se metem a palpitar entendimentos sobre a minha vida sem terem sido convidadas; da mesma forma, abomino quando, por deslize, faço isso com alguém. Não se faz. De jeito nenhum. Eu acho isso uma falta de respeito, uma agressão, uma verdadeira canalhice. Mesmo assim, eu também dou minhas escorregadelas, como neste caso que estou evocando.
Agora, a minha pessoa especial com quem cometi grave erro não achou nada demais, até gostou! Eu pensei: sim, já houve situações em que fizeram isso comigo também, e eu não me importei, pelo contrário, até aproveitei as “interpretações” que me foram dadas. O que é então? Ora, acho que está claro: é a intimidade. Quando a gente é íntimo de alguém, gosta e se preocupa verdadeiramente, este escorregão selvagem pode não soar intrusivo ou desrespeitoso. Há a genuína vontade de ajudar, cuidar, vontade que aquele teu tio doido até pode ter também, mas a falta de confiança transforma em uma invasão imperdoável.
É também por isso que interpretamos durante o tratamento psicanalítico: além de ser nossa obrigação ética, e de a pessoa estar ali, de uma forma ou outra, disposta a isso, há uma imensa intimidade entre nós, que chamamos de transferência, o que permite que a interpretação ocorra. Winnicott nos fala que, além de devermos esperar para que o paciente chegue nas suas descobertas, ou seja, interpretar menos, vale mais a intenção do que o conteúdo da interpretação em si. Quer dizer, é uma concepção, da qual compartilho, mais preocupada com o processo do que com a conclusão. Usando uma linguagem winnicottiana, claro que pode acontecer em qualquer situação uma interpretação que poderíamos chamar de intrusiva, quando não conseguimos conectar temporalmente com a pessoa que atendemos. Eu mesmo demorei tempo para aprender a ficar em silêncio, ou ao menos não interpretar quando não sabia o que dizer, meus primeiros pacientes sofreram com isso... a interpretação intrusiva pode ser sim desastrosa, mas eu arriscaria dizer que geralmente não é: há uma conexão emocional, a tal da transferência, que segura as pontas, afinal, a intenção foi a melhor de todas. Não é interpretação selvagem. Não é como a fala atabalhoada daquele tio ou como o aluno de psicologia do primeiro semestre numa sala de espera: nessas situações, não há envolvimento afetivo algum, não há nada, logo, a intenção é vazia. Inclusive, será que poderíamos, então, chamar a interpretação selvagem de interpretação vazia? Parece melhor...
Mesmo no melhor dos cenários, quando a outra pessoa recebe bem (talvez até se aproveite), ou seja, quando há intimidade entre as partes, eu prefiro me abster. Interpretação é um dos meus instrumentos de trabalho, trabalho que eu sou pago para fazer; eu me desagrado profundamente quando percebo que estou fazendo isso fora do setting psicanalítico, por mais próxima que a pessoa possa ser. Pode até ser um tipo de “mania interpretativa” que se adquire com o tempo. Ainda assim, mantenho minha posição: na dúvida, não interprete!
Fevereiro, 2024.