Interpretação selvagem
- Juliano CorrĆŖa
- 21 de jun. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de jul. de 2024

Freud escreveu, em 1910, um pequeno texto muito importante intitulado āPsicanĆ”lise selvagemā. NĆ£o Ć© dos escritos mais famosos e citados do pai da psicanĆ”lise, mas eu sempre o considerei muito significativo: trata de tĆ©cnica, Ć©tica e polĆtica. E mais ainda nos dias de hoje, onde basicamente qualquer um se denomina āpsicanalistaā e oferece āpsicanĆ”liseā (as aspas sĆ£o muito propositais).
Pois Freud fala, justamente, dos charlatƵes (ou seja, desde sempre eles jĆ” existiam!), pessoas que nĆ£o estavam no movimento psicanalĆtico recĆ©m iniciado, que nĆ£o tinham, por consequĆŖncia, treinamento e conhecimento suficientes, mas que ofereciam o tal ātratamento psicanalĆticoā e faziam um estrago nos seus pobres pacientes (pois Ć© isso mesmo que essa gente faz!) por procedimentos que nĆ£o tinham a ver com a psicanĆ”lise. Ele conta o caso do mĆ©dico que atendeu uma mulher que apresentava sintomas após a separação do marido. O mĆ©dico, entĆ£o, diz que seus sintomas sĆ£o por, falando direta e grosseiramente, falta de foda! Sugere para sua desafortunada paciente trĆŖs soluƧƵes possĆveis: voltar para o marido, arranjar um amante, ou se masturbar. Desde jĆ”, nós podemos concordar que isso nĆ£o Ć© āpsicanĆ”lise selvagemā (eu uso o termo, que nem Ć© tĆ£o bom, na esteira de Freud), nĆ£o Ć© questĆ£o de ser boa ou ruim, certa ou errada, simplesmente nĆ£o Ć© psicanĆ”lise. Freud tambĆ©m vai usar isso como uma das justificativas para a criação da IPA, a Associação Internacional de PsicanĆ”lise, na tentativa de proteger a psicanĆ”lise e controlar quem poderia a praticar, em quem se poderia confiar. Ele estava querendo separar o joio do trigo. Nós sabemos, hoje, que a tentativa nĆ£o deu muito certo nĆ©... mas a intenção era louvĆ”vel.
Dentro de toda a psicanÔlise selvagem hÔ, obviamente, a interpretação selvagem; inclusive, penso ser a mais comum.
Quando eu estava no primeiro semestre da faculdade de psicologia, uma professora, muito carismĆ”tica, engraƧada, e cantora (!), deu uma recomendação; ela disse assim: āagora que vocĆŖs estĆ£o na faculdade, vĆ£o comprar a pastinha com o sĆmbolo da psicologia, aĆ vocĆŖs vĆ£o estar em uma sala de espera de um mĆ©dico, e a pessoa ao lado vai ver a pasta, perguntar se Ć© psicóloga, e jĆ” vai comeƧar a contar da sua vida ou de algum parente, perguntando o que vocĆŖs acham, e vocĆŖs estarĆ£o loucos para falar nĆ©?ā. Sim! Ela estava certa! Nós estĆ”vamos loucos para demonstrar todo o conhecimento de psicologia que nĆ£o tĆnhamos! Ela completou: āgente, nĆ£o deem conselhos de graƧa, as pessoas pagam para receber conselho, e pagam muito bemā.
Ela usou a palavra āconselhoā (serĆ” que usou mesmo ou Ć© minha lembranƧa encobridora?), e nós sabemos que psicólogo nĆ£o aconselha ninguĆ©m nĆ©! Mas vamos entender, como eu entendi, conselho como interpretação, intervenção psicológica. Tirando isso, sua advertĆŖncia Ć© muito vĆ”lida por se tratar, no meu entendimento de hoje, de nĆ£o fazermos uma interpretação selvagem; esta, do exemplo, seria por vĆ”rios motivos: nĆ£o se sabe absolutamente nada no primeiro semestre (vamos combinar, nĆ©!), o que faz com que a intervenção do aluno sedento seja exatamente a mesma daquele tio chato que dĆ” as direƧƵes na vida de todos porque ele jĆ” viveu muita coisa, ainda que tenha a moral de cuecas; tio este que o aluno iniciante logo vai descobrir que Ć© clinicamente maluco! Agora, e isso Ć© mais importante, mesmo que jĆ” se tivesse a especialização em sei lĆ” o que, ainda seria uma interpretação selvagem! Pense num exemplo comigo: a pessoa estĆ” com uma tremenda dor de cabeƧa (literal) desde que seu casamento terminou. Pode ser reação Ć separação, pode ser que ela tenha um tumor do tamanho de uma bergamota no cĆ©rebro, pode ser que ela tinha sido abduzida por alienĆgenas que inseriram um chip em sua cabeƧa. Como eu posso ter a mĆnima ideia do que Ć© somente a partir desta informação? Nós, pessoas decentes, sabemos que a psicoterapia nĆ£o se dĆ” por manuais, nĆ£o hĆ” explicação prĆ©via, Ć© tudo āsob encomendaā e muito direcionado para cada caso.
HÔ alguns dias, eu, que me fiscalizo tanto nesse sentido, cometi esse erro grotesco com uma pessoa tão especial. Dei-me conta na hora até; ela não se sentiu agredida (que sorte!). O que eu quero dizer? Que tipo de interpretação selvagem é esta?
Eu tenho ódio (e hoje em dia, depois de muitos anos de anÔlise né, jÔ respondo da forma mais desaforada que conseguir) de pessoas que se metem a palpitar entendimentos sobre a minha vida sem terem sido convidadas; da mesma forma, abomino quando, por deslize, faço isso com alguém. Não se faz. De jeito nenhum. Eu acho isso uma falta de respeito, uma agressão, uma verdadeira canalhice. Mesmo assim, eu também dou minhas escorregadelas, como neste caso que estou evocando.
Agora, a minha pessoa especial com quem cometi grave erro nĆ£o achou nada demais, atĆ© gostou! Eu pensei: sim, jĆ” houve situaƧƵes em que fizeram isso comigo tambĆ©m, e eu nĆ£o me importei, pelo contrĆ”rio, atĆ© aproveitei as āinterpretaƧƵesā que me foram dadas. O que Ć© entĆ£o? Ora, acho que estĆ” claro: Ć© a intimidade. Quando a gente Ć© Ćntimo de alguĆ©m, gosta e se preocupa verdadeiramente, este escorregĆ£o selvagem pode nĆ£o soar intrusivo ou desrespeitoso. HĆ” a genuĆna vontade de ajudar, cuidar, vontade que aquele teu tio doido atĆ© pode ter tambĆ©m, mas a falta de confianƧa transforma em uma invasĆ£o imperdoĆ”vel.
Ć tambĆ©m por isso que interpretamos durante o tratamento psicanalĆtico: alĆ©m de ser nossa obrigação Ć©tica, e de a pessoa estar ali, de uma forma ou outra, disposta a isso, hĆ” uma imensa intimidade entre nós, que chamamos de transferĆŖncia, o que permite que a interpretação ocorra. Winnicott nos fala que, alĆ©m de devermos esperar para que o paciente chegue nas suas descobertas, ou seja, interpretar menos, vale mais a intenção do que o conteĆŗdo da interpretação em si. Quer dizer, Ć© uma concepção, da qual compartilho, mais preocupada com o processo do que com a conclusĆ£o. Usando uma linguagem winnicottiana, claro que pode acontecer em qualquer situação uma interpretação que poderĆamos chamar de intrusiva, quando nĆ£o conseguimos conectar temporalmente com a pessoa que atendemos. Eu mesmo demorei tempo para aprender a ficar em silĆŖncio, ou ao menos nĆ£o interpretar quando nĆ£o sabia o que dizer, meus primeiros pacientes sofreram com isso... a interpretação intrusiva pode ser sim desastrosa, mas eu arriscaria dizer que geralmente nĆ£o Ć©: hĆ” uma conexĆ£o emocional, a tal da transferĆŖncia, que segura as pontas, afinal, a intenção foi a melhor de todas. NĆ£o Ć© interpretação selvagem. NĆ£o Ć© como a fala atabalhoada daquele tio ou como o aluno de psicologia do primeiro semestre numa sala de espera: nessas situaƧƵes, nĆ£o hĆ” envolvimento afetivo algum, nĆ£o hĆ” nada, logo, a intenção Ć© vazia. Inclusive, serĆ” que poderĆamos, entĆ£o, chamar a interpretação selvagem de interpretação vazia? Parece melhor...
Mesmo no melhor dos cenĆ”rios, quando a outra pessoa recebe bem (talvez atĆ© se aproveite), ou seja, quando hĆ” intimidade entre as partes, eu prefiro me abster. Interpretação Ć© um dos meus instrumentos de trabalho, trabalho que eu sou pago para fazer; eu me desagrado profundamente quando percebo que estou fazendo isso fora do setting psicanalĆtico, por mais próxima que a pessoa possa ser. Pode atĆ© ser um tipo de āmania interpretativaā que se adquire com o tempo. Ainda assim, mantenho minha posição: na dĆŗvida, nĆ£o interprete!
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Fevereiro, 2024.