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O desastre de não ser encontrado

Foto do escritor: Juliano CorrêaJuliano Corrêa

Winnicott é realmente espetacular. Há um artigo maravilhoso e muito importante de sua obra, de 1963, “Comunicando e não comunicando levando ao estudo de certos opostos” (fiz uma tradução própria – e tosca, mas com sentido – por não achar a “oficial” boa – note a petulância...), está no livro “O ambiente (facilitador) e os processos de maturação. Existem belas e profundas análises sobre este texto, como a do professor Fábio Belo e, principalmente, a de Thomas Ogden em seu mais recente livro.[1]

Eu vou me ocupar de uma única e magnífica frase do escrito: “é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado”.[2] É uma daquelas que pode aparecer em sites de frases famosas/bonitas (e creditadas a Arnaldo Jabor ou Luís Fernando Veríssimo!), daquele tipo que se colocaria em agendas adolescentes antigamente. Mas há camadas muito profundas de significados nesse lindo dizer.

Das primeiras coisas que me vêm ao pensamento, é a brincadeira de “polícia e ladrão” (não posso levar crédito por isso: Winnicott mesmo faz esta associação). É um esconde-esconde. Eu tenho muitas lembranças de brincar disso na minha infância, basicamente em Tramandaí, praia do Rio Grande do Sul onde a gente veraneava (“veraneio” é uma instituição porto-alegrense, vai-se uma temporada inteira morar na praia, com todos os perrengues possíveis). Tramandaí, como todas as outras do Rio Grande do Sul (com exceção de Torres, que é um acidente geográfico), não preza exatamente por belezas naturais, o mar é o famoso “chocolatão”, porque é preto e com borbulhas estranhas muitas vezes. Enfim, apesar da minha relação pelos meus anos de infância, a praia em si é uma bosta mesmo. Aliás, há não muito tempo ouvi que o Rio Grande do Sul não tem praia, tem mar. Faz muito sentido, afinal, é só uma reta com areia de um lado e mar do outro; nada de enseadas, morros, baías, nada.

Mas enfim, minhas memórias de Tramandaí não têm a ver com a praia ser boa ou não, são afetivas (como toda a memória é). E a brincadeira de “polícia e ladrão” não era na praia, era no edifício onde tínhamos apartamento: havia um gigantesco pátio, um espaço muito grande que fazia com que este tipo de brincadeira ficasse muito apetitosa. Era bem simples: um grupo de meninos e meninas (a gente devia ter algo em torno de 10 anos de idade) era dividido. Metade era “polícia”, outra metade era “ladrão”. Ladrão corria e se escondia; polícia, depois de um tempo para os ladrões se esconderem, saia para procurar (só não tinha, obviamente, “tiro na cabecinha”, e ninguém achava – ao menos naquela época – que bandido bom era bandido morto: o bom era o que conseguia se esconder). Acho que todos conhecem essa brincadeira independentemente de como se chame.

Realmente era um prazer (se não fosse, não brincaríamos), uma alegria estar escondido; quanto melhor escondido, maior a alegria. O desafio era conseguir encontrar o lugar mais difícil de ser encontrado. Na verdade, o sentimento era de excitação. Mas a excitação era somente pela possibilidade de ser encontrado, por melhor que se estivesse escondido. Quando acontecia, por ventura, de a brincadeira terminar sem que se tivesse sido encontrado, o sentimento não era exatamente de vitória, ainda que esta tivesse sido conquistada, mas de frustração. Estranho né? Por que ficar frustrado com um resultado de triunfo, em que se conseguiu o objetivo que era não ser encontrado? É um paradoxo, não? Pois Winnicott, se não nos ajuda a resolver, ajuda-nos a entender.

Bem antes dessa frase na qual me debruço, Winnicott escreve que, na saúde, o objeto deve ser encontrado pelo bebê para só então ser criado por ele. Ele nos diz que isso deve ser aceito como um paradoxo, não ser corrigido por uma “esperteza” que o elimine; ou seja: o paradoxo é intrínseco. Pois logo após a frase que nos guia aqui, parece haver outra contradição, ainda que ele não a nomeie desse jeito (é o par de opostos). É que ele diz assim: “ainda que pessoas saudáveis se comuniquem e desfrutem de se comunicarem, o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é um isolado, permanentemente não-comunicativo, permanentemente desconhecido, na verdade, não encontrado”.[3] Percebe? Ele diz que é um desastre não ser encontrado, mas, poucos parágrafos depois, afirma de uma parte desconhecida e que é para ficar assim mesmo, é o núcleo não-comunicável. Como assim?

Ele ainda vai mais longe: assevera que a experiência traumática da violação desse âmago leva a defesas primitivas pela ameaça de ser encontrado, de se comunicar. Ainda mais: ele diz que “estupro” e “ser comido por canibais”, são meras bagatelas se comparadas com a profanação do cerne do self. Então, ele mesmo se questiona: como ser isolado sem ser apartado (no sentido de não ter relação alguma)? Como anunciei no início, não vou mais seguir o texto; ainda há muitos desenvolvimentos antes e depois desta frase. Vou me utilizar de entendimentos de Ogden para seguir a direção que mais me interessa no momento.

A saída encontrada para esse impasse (teórico) vem da fina percepção da mãe na relação com seu bebê, comunicação que pode ocorrer sem necessidade de entendimento, dada a conexão tão próxima e especial que foi criada. Ou seja, estamos falando de um empenho de forma diferente, mais completa (e já colocando que estou me referindo à relação da dupla analítica também), que seria essa comunicação subjetiva (termo que Winnicott reinventa, segundo Ogden). É que Winnicott postula a possibilidade de três de tipos de comunicação: esta que acabei de falar, com o objeto subjetivo, que é sempre silenciosa; a comunicação explícita, indireta e agradável, que é via linguagem; e uma terceira que é intermediária, que é a dos fenômenos transicionais. Eu acho esta terceira a mais interessante, pois seria a do lugar do acaso. Além de fugir da linguagem, a própria tradução de “transitional”, temporário, provisório, encaixa-se na noção do instante passageiro da experiência do acaso tal como ele é.

É o próprio Winnicott que articula o não estar comunicando desta maneira que estamos vendo, diferente da falta de comunicação por uma falência da mesma, com o estar sozinho tranquilamente na presença de alguém, como tratei na minha última crônica com a qual esta se conecta (é a continuação que ficou necessária).[4] Portanto, por essa via podemos ter um entendimento disso e (no meu caso) ir além.

Ogden nos diz que o “desastre de não ser encontrado” da frase mote desta crônica diz sobre a necessidade de ser reconhecido, mas não exposto. É uma grande diferença. Winnicott oferece uma breve vinheta clínica exemplificando, onde a mãe lê o diário da filha de 9 anos sem permissão e a questiona sobre o escrito. Segundo ele, não teria problema a mãe ter lido o diário, mas não ter dito nada para a filha. Assim, ela é encontrada, mas mantém, ao mesmo tempo, sua parte incomunicável. Da mesma forma como o artista tem a necessidade de comunicar, mas uma necessidade ainda mais urgente de não ser encontrado, Ogden destaca este aspecto bem claro na adolescência: demanda pela independência, mas, conjuntamente, de ser cuidado de todos os riscos que se corre.

Há mais. Ogden coloca que o “não encontrado” (necessário) da segunda frase que parece contradizer a primeira pode ser entendido como a camada mais profunda da personalidade, o que Winnicott chama de core: o núcleo, o âmago, o cerne. É ser encontrado neste ponto que é violência muito maior do que ser devorado por canibais como o autor compara. Assim, a aparente contradição consiste em duas forças poderosas em nós: a necessidade de estar isolado e a necessidade de ser reconhecido, mas não exposto. A teoria de Winnicott caminha toda nesta direção. No seu artigo “Psicose e cuidados maternos” ele explica essa verdade humana: na saúde, a mãe fornece um ambiente que habilita a criança a ficar totalmente isolada; porém, quando o bebê está pronto, ele faz um gesto espontâneo, e a mãe reconhece e responde sem a perda da sensação do self da criança.

Essa necessidade de estar isolado e ser reconhecido permanece pela vida toda de forma fundamental: sem o reconhecimento de outra pessoa, estamos completamente à deriva; não podemos saber quem somos se estamos em um estado de completo isolamento, ainda que tenhamos de proteger nossa parte incomunicável. (Uma pequena nota: o reconhecimento do qual estamos tratando não é exatamente um elogio que recebemos por algo nosso – até porque na metade das vezes isso é meio falso né! – é muito mais um ser reconhecido como ser). E clínica psicanalítica em tudo isso, como fica? Eu já disse que estava pensando nisso quando escrevi do empenho de forma mais completa na comunicação (do incomunicável).

A terapia, então, é como a brincadeira de polícia e ladrão, mas com base no que vimos até aqui. Quer dizer, não é (cavoucar até) encontrar algo escondido. Por duas razões: a primeira, é que eu não acredito na premissa clássica de que tudo gira em torno destes conteúdos escondidos (reprimidos), mas isso é para outra conversa. A segunda razão é o já exposto, o núcleo deve permanecer intocado, ainda que deva haver a comunicação de outra maneira.

Novamente (se você lê meus textos), evoco o “Pequeno Príncipe”. Quando, após várias tentativas de desenhar o carneiro que principezinho exigiu, o piloto, já aborrecido, simplesmente desenha uma caixa e diz: “tá aí, o carneiro está dentro da caixa”. O principezinho responde: “era exatamente assim que eu queria”. Vejo muita correspondência com a análise. Não há interesse algum em encontrar (muito menos “analisar”) o tal do carneiro: está lá, isso basta. É (como se fosse) uma criação interna (infantil) e a partir dela, desenvolvem-se infinitos mundos de infinitas possibilidades, mesmo não visíveis. Isso deixa claro que estou me referindo ao futuro, ou ao futuro do pretérito, seja como for, criação de algo, não desenterrar, elaborar, ressignificar, o que seja, o passado.

Para tal, só a interpretação que nem a concebemos é insuficiente. Há de se ter essa comunicação diferente, principalmente a intermediária postulada por Winnicott, da área da ilusão, do “entre”, daquilo que eu chamo de twilight. Nesses universos, para podermos ter esse tipo de comunicação, que necessita de um tipo de relação, a espera, como falei há pouco em outra crônica,[5] é fundamental. A espera para que algo aconteça pela primeira vez, ao acaso (que tem papel central), e que possa ser usado para se criar, assim como a mãe (suficientemente boa) faz com o seu bebê. Não estamos ali para entender, mas sim para vivenciar algo junto da pessoa que nos paga. Como disse Clarice: “não se preocupe me entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.

Em outra bela análise de outro artigo explosivo de Winnicott, “Medo do colapso”, Ogden expõe com muita clareza nossas partes não vividas que buscam por vida na análise: “Eu vejo isso como uma necessidade universal – a necessidade por parte de cada pessoa de recuperar, ou reivindicar pela primeira vez o que ela perdeu de si mesma e, ao fazer, aproveitar a oportunidade de se tornar a pessoa que ela ainda tem o potencial de ser”.[6] Ele estabelece duas diferenças importantes dos eventos (não) vividos na infância para os que trabalhamos para dar luz no tratamento: primeiro, que a pessoa agora é um adulto; e segundo, o que se conecta com a minha crônica anterior que faz par com esta, que a pessoa não está sozinha (pois “sozinho... é sozinho... não é vivo”), estando com um analista capaz de suportar as experiências de agonias primitivas do paciente (e as suas próprias também!). É neste ponto que há o complemento destas minhas duas crônicas.

No seu livro “Como curar um fanático”, que é mais atual que nunca, pois, além do fanático, aborda a conturbada relação entre judeus e palestinos, o israelense Amós Oz completa a famosa frase “nenhum homem é uma ilha”, escrevendo que cada um de nós é uma península. Quer dizer, temos uma parte conectada com o continente, englobando todas as nossas necessárias relações pessoais e culturais, e outra metade voltada para o mar, metade esta que quer ser deixada só e continuar virada para o oceano. Ele diz que a condição de península é a própria condição humana. Não é uma alegoria perfeita para o que vimos nestas duas crônicas?

Desta forma, temos de manter contato, sermos reconhecidos, ao mesmo tempo em que precisamos estar sozinhos, seja a solidão essencial ou a capacidade para estar só, pois vejo comunicação entre as duas tal qual falei na crônica anterior. Repetindo, podemos ver isso como uma condição humana (será que é de liberdade que estamos falando?). Do mesmo jeito, ter seu núcleo deflorado e estar sozinho (no “mau” sentido, de acordo com o que vimos até aqui, não vivo) são facetas correspondentes da maneira que eu vejo: há uma perda da individualidade, do controle da própria vida (imaginário que seja), quer dizer, de ser realmente quem (ou o que) se é e ou se pode ser, no fim das contas, sentir-se vivo verdadeiramente, ser livre. Como falamos de algo inédito, não estamos lidando com “saudade” exatamente, não é em relação ao que foi, mas ao que poderia ter sido. É um dos principais pontos nodais da terapia psicanalítica, mas pede desenvolvimentos específicos.

Então, há de se respeitar ao máximo o tal prazer de estar escondido, é algo muito sério. O desastre de não se encontrado é não ser reconhecido, mas mais: é o desastre de estar sozinho nessa concepção que abordei nestas duas crônicas, apartado, quer dizer, não vivo. Temos de ser encontrados.


Janeiro – Setembro, 2023.

[1] OGDEN, Thomas H. The feeling of real: on Winnicott’s “Communicating and not communicating leading to a study of certain opposites”, p. 33-56. In: ______. Coming to life in the consulting room: toward a new analytic sensibility. London/New York: Routledge, 2022. [2]it is a joy to be hidden but disaster not to be found” (p. 380). WINNICOTT, Donald W. Communicating and not communicating leading to a study of certain opposites. In: ______. The maturational processes and the facilitating environment: studies in the theory of emotional development. Abingdon/New York: Routledge, 2018. [Livro digital]. [3] “Although healthy persons communicate and enjoy communicating, the other fact is equally true, that each individual is an isolate, permanently non-communicating, permanently unknown, in fact unfound” (p. 381). WINNICOTT, Donald W. Communicating and not communicating leading to a study of certain opposites. In: ______. The maturational processes and the facilitating environment: studies in the theory of emotional development. Abingdon/New York: Routledge, 2018. [Livro digital]. [4] https://www.julianocorrea.com/post/mas-sozinho-é-sozinho [5] https://www.julianocorrea.com/post/a-espera [6] “I view this as a universal need – the need on the part or every person to reclaim, or claim for the first time, what he has lost of himself and, in so doing, take the opportunity to become the person he still holds the potential to be” (p. 58-59). OGDEN, Thomas. Fear of breakdown and unlived life (p. 47-70). In: ______. Reclaiming unlived life: experiences in psychoanalysis. London/New York: Routledge, 2016.



Esta música do Metallica, “The Unforgiven”, do famoso “Black Album”, acabou se juntando com esta crônica, pela letra (o vídeo está com legendas), pela canção que é linda. Talvez mais ainda pela minha relação transferencial com a música: é este ponto insondável que talvez a tenha conectado com o que escrevi.






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