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O monumento musical

  • Foto do escritor: Juliano Corrêa
    Juliano Corrêa
  • há 20 minutos
  • 6 min de leitura
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Crianças, pequena lição de história. Antes, pequeno parêntesis: você sabe né que quando alguém chama pessoas adultas de “crianças”, é porque é velho e quer inverter o jogo! Eu sou velho, e não estou querendo ignorar isso, é só brincadeira. Mas a lição é verdadeira e válida!

É a seguinte: quando gente da minha geração tinha seus vintes anos, pesquisávamos, obviamente, para fazer os trabalhos acadêmicos (e gente mais velha ainda fazia essas pesquisas para teses de doutorado! Sempre penso nisso....). Aí, não tinha Google (muito menos IA!), não havia nem internet popularizada: só o que existia eram as enciclopédias. A “Barsa” era a mais famosa, mas, na minha mente/lembrança pelo menos, eram só famílias ricas que a tinham, pois era muito cara (pensando hoje, acho que até não era bem assim: famílias não muito ricas tinham a Barsa também). De qualquer forma, lá em casa tinha uma outra enciclopédia, que eu usava muito, mas infelizmente não lembro o nome. Foi nela que eu li, certamente pela primeira vez, sobre Beethoven, pois eu já me encantava por ele desde cedo. Especificamente, o encantamento era pela sua última sinfonia: a Sinfonia número 9 em ré Maior, opus 125, a sinfonia “Coral”, completada em 1824 (ele começou a compor em 1818).[1]

Pois na tal enciclopédia, a Nona Sinfonia era definida assim (eu tenho quase certeza que lembro as palavras exatas): “é o mais grandioso monumento musical que o mundo tem conhecimento”. Ela é musicalmente revolucionária e complexa em vários quesitos, mas não irei me ater a isso: há pessoas qualificadas para essa função que têm ótimas análises por aí para qualquer um que queira ler ou ver (e é muito bom!). A gente não precisa (se tem, é mais legal) de conhecimento musical para sentir e ser arrebatado pela música; não é necessário entender de forma ou teoria musical para concordar com a definição da enciclopédia: isso está dito via afeto.

Sempre me fascinou o contexto no qual a obra foi composta. Beethoven era, dizem, uma pessoa difícil: amargurado, mergulhado na solidão, descrente no mundo em que vivia. Ao invés de compor uma música que refletia esses sentimentos, ele fez o contrário: escolheu, para a primeira vez que a voz, num coral, fosse usada em uma sinfonia com o mesmo destaque dos instrumentos, o poema de Friedrich Schiller, “An Die Freude”, conhecido como “Ode à Alegria” (que virou “hino” da União Europeia), que é uma grande celebração de irmandade da humanidade, de esperança.

Só que, além disso, o que até hoje eu realmente não consigo conceber é que Beethoven compôs a Nona completamente surdo! Ele já não escutava absolutamente nada! (Sua surdez foi progressiva). Não me adiantam as explicações de que um músico tem um ouvido diferente, etc. Como alguém pode criar uma maravilha dessas sem escutar??? Daí se entende seu estado de misantropia que lhe era atribuído na época: imagine como deve ser para um músico, para um músico famoso e reconhecido (que ele era), não possuir o sentido que justamente nele deveria ser o mais importante. Há a história, essa parece verídica, de que Beethoven não regia mais a orquestra (por motivos óbvios), mas estava presente no palco e gesticulando quando da estreia da Nona Sinfonia. Quando a peça terminou, ele estava voltado de costas para o público, absorto nas partituras; não ouviu que a Sinfonia tinha terminado. A contralto teria corajosamente se dirigido a ele para que ele se virasse e pudesse ver a ovação em pé da plateia. Sobre esse momento, eu li, em uma biografia, que ele viu, mas não podia mais ouvir todos os corações que ele havia libertado naquela noite. Lindo, né? Beethoven morreu três anos depois. Ele nunca escutou sua Nona Sinfonia. Ao menos, não com os ouvidos.

Eu vi um crítico musical (não lembro o nome) falar uma coisa que eu nunca havia pensando, e que é bastante interessante. Se o Museu do Louvre explodisse, a Monalisa estaria perdida para sempre. Poderiam haver cópias, retratos, mas a obra original teria sido destruída. Com a música é diferente. Claro que há o alto valor de originais: um dos manuscritos da Nona foi vendido por 3,3 milhões de dólares! Contudo, a música em si sobrevive para sempre enquanto houver humanos por aí. Eu lembro da teoria estética de Hegel: a música, diferentemente dos outros tipos de arte, sai do interior para o interior. É uma expressão interna que nega totalmente a espacialidade, que na sua objetividade permanece subjetiva, pois desaparece imediatamente no ato do seu nascimento: para si mesmo, ela é retraída na sua subjetividade; para o outro, ela não possui consistência. Por sua materialidade se apresentar como som, a música reduz a sua relação com a exterioridade até uma supressão. Isso faz da música a manifestação privilegiada do interior, visto que mantém consigo o grau máximo de abstração. A música é um puro sentir.

Eu já escrevi sobre esse poder da música que sempre me encantou, do que ela é capaz de provocar, inclusive “literais” viagens no tempo.[2] É curioso: a Nona Sinfonia é uma das poucas obras musicais que eu nunca cansei de ouvir. Certamente porque é sempre algo novo, algo emocionalmente novo. Ela tem, e eu acho isso relativamente raro, aquele algo a mais que a gente não consegue explicar. Ou melhor, há sim várias explicações: estudiosos de músicas fornecem várias (todas muito interessantes); porém, nada serve para o motivo real dessa fascinação. A gente “só” sente. E o que a gente sente de verdade é bastante difícil de explicar intelectualmente (e, muitas vezes, até desinteressante e desnecessário).

Há uma frase atribuída a Beethoven que circula pela internet: “tocar uma nota errada é insignificante; tocar sem paixão é imperdoável”. Como é comum de acontecer, não há nenhum registro de que esse dito seja dele. Contudo, a ideia sim: pode ser depreendida do livro de Ferdinand Ries e Franz Wegeler, “Beethoven Remembered”, ambos amigos íntimos de Beethoven, o que torna as informações ali contidas bastante confiáveis, de acordo com os historiadores. Ries, que foi também aluno do gênio, escreveu que quando ele errava tecnicamente em uma execução musical, Beethoven raramente dizia alguma coisa: considerava resultante do acaso. Agora, quando cometia erros de expressão ou no caráter da música, Beethoven ficava enfurecido: isso demonstrava falta de sentimento.

Eu vejo isso diretamente relacionado ao que Winnicott falou sobre o viver criativo. O talento ou a técnica para grandes produções artísticas é o de menos: ele se refere ao que fazemos cotidianamente, coisas simples que dão prazer, que pintam um colorido na vida. Pode ser se arrumar para sair à noite, tomar um café tranquilamente, escutar uma música que se ama. Isso faz se sentir real, que viver pode valer a pena. A experiência cultural é o desenvolvimento direto do brincar, e ocorre na zona intermediária entre a realidade interna e a realidade externa, o espaço potencial, lugar da espontaneidade. Ele mesmo dá o exemplo que é nesse lugar que estamos quando ouvimos uma sinfonia de Beethoven. A Nona é uma grande brincadeira colorida, um intenso sopro de vida.

Talvez a grandiosidade da Nona Sinfonia vá por esse caminho. Eu já falei em outra crônica que considero esse impulso afetivo, se podemos chamar assim, mais importante do que a qualificação técnica.[3] Talvez também isso “explique” o que possibilitou Beethoven, mais do que o conhecimento musical, a compor uma maravilha sem poder escutar: ele conseguia sentir a música que escrevia. Assim também nós a sentimos, mesmo que não entendamos nada de música.

 

 

Junho, 2024... – Setembro, 2025.

 

 [1] Uma curiosidade que eu aprendi e talvez você não saiba (como eu também não sabia): o “opus” que vemos agregado ao nome das peças musicais vem do latim, significa “obra”. Geralmente, é o próprio autor que que define esse número. Quer dizer que o próprio Beethoven considerava a Nona Sinfonia a sua 125ª obra.

 


Eu estou deixando aqui a Nona Sinfonia inteira. Escute, você não irá se arrepender. O 4º movimento é o coral, o que todos nós conhecemos (ainda que ele seja longo, talvez tenham partes que você não conheça, e, confie em mim, são absolutamente lindas). A abertura imponente, o 2º movimento trepidante, e o adagio no 3º movimento de uma delicadeza e beleza que quase faz chorar. É tudo sublime!

Eu escolhi este vídeo porque é a minha versão preferida da Nona. Foi um concerto na noite do dia de Natal em Berlim, em 1989, logo após a queda do muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria, da divisão do mundo. O objetivo era celebrar a união das pessoas, o vislumbre de dias com menos barreiras entre os povos. Leonard Bernstein, famoso maestro, conduziu (veja a emoção dele!) uma orquestra formada por músicos de orquestras de todos os países envolvidos na Segunda Guerra e nos tratados de divisão posteriores: Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, União Soviética, França. Além disso, há um coro adicional de crianças que se unem aos cantores no 4º movimento. A palavra Freude (que significa “alegria” – e é realmente disso que o coração se enche quando ouvimos! É arrepiante) na parte cantada do poema de Schiller é substituída por Freihet, “liberdade”. Bernstein disse que Beethoven teria dado sua benção para a mudança, que tornava sua música em um hino de união e convívio entre a humanidade. São dez minutos de aplausos após o término, eu nunca tinha visto algo assim.

Talvez o que eu tenha tentado dizer nesta crônica é que não existem palavras para descrever o que se sente com a Nona Sinfonia. Você pode (e deve!) ter a sua própria experiência. O monumento musical.





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