Saudade do futuro
- Juliano Corrêa
- 2 de mai.
- 6 min de leitura

Eu juro que meu primeiro impulso foi colocar o título desta crônica de “Saudade do que não foi”. Mas aí... foi inevitável eu lembrar do Neymar e daquela mensagem dele que virou meme, “saudades do que a gente não viveu”, algo assim. Ficou impossível pra mim. Ainda que o “menino Ney” tenha razão (em alguma coisa ele tinha de ter, né!). A ideia é bem essa. O título que ficou não é exatamente do que se trata, porque não é bem de uma saudade do futuro, é outra saudade, mais complexa (ainda, pois sentir saudade do futuro já é bastante complexo né!).
É que, recentemente, a partir de uma conversa com uma amiga, refleti sobre sentir saudade: no caso, era sobre sentir saudade de determinada época da vida (que, aparentemente, para ela, havia sido boa – engraçado como não há saudade do período ruim né! Ou será que há?). Como o tema é muito caro para mim, pois envolve a temporalidade, fui um pouquinho além: o que é ter saudade?
Com toda a certeza, você também já ouviu que saudade é uma palavra única da língua portuguesa, aí ficamos todos felizes e fazemos postagem emocionantes sobre sermos donos de termo tão singular. Só que eu também já li de “especialistas” (as aspas são porque eu tenho dúvidas, em alguns casos, se realmente eram), que a história não é bem assim, que há a palavra em outros idiomas; porém, alguns confirmam nossa crença nacional: é só aqui (ou onde se fala português) que o vocábulo saudade existe.
Mas veja bem: estamos falando da palavra. O sentimento não é exclusivo nosso! Que seja necessária uma frase inteira para o exprimir, não faz diferença: o sentimento existe em qualquer lugar. E, neste instante específico, eu estou pouco me lixando para a palavra (muito menos se ela é especial ou não!); o que me interessa é o afeto: o que é saudade?
Contrariamente do que coloquei no título, a mim parece incontestável que saudade sempre mira para o passado, é sobre algo (bom) que já foi, e, evidentemente, não é mais (se ainda fosse, não teria motivo para saudade, correto?). Então, esta saudade do passado, por mais redundante que possa ser essa expressão, aponta para o que? É querer reviver o que já foi? A nostalgia, como tantas vezes já falei aqui,[1] é danosa para a psiquismo e também muito perigosa socialmente, como temos visto (novamente!). Ela afronta a passagem do tempo de forma muito negativa (sim, tem como afrontar de forma positiva), pois deseja permanecer lá, ou trazer o passado para o presente. Qualquer uma dessas ideias é tão absurda que eu nem sei por onde começar a refutar. Eu escrevi uma crônica sobre este disparate.[2]
No entanto, há outra maneira de se ter saudade do passado: a simples lembrança. Recordar com prazer (ou desprazer, vou insistir nisso) determinado momento da vida. Sem querer voltar: é só um regozijo que é bom de ter vez que outra. Geralmente (para mim), é acompanhado por amigos que compartilham a recordação (e também é regado por um trago ou outro...) e, fatalmente, fazem a memória ganhar atos a mais do que tinha originalmente. Freud já nos ensinou, há tempos, das lembranças encobridoras né...
Um pequeno exemplo: a faculdade foi a melhor época da minha vida. Quero voltar a viver aquilo tudo? Ah, com certeza que não. Por que não? Em primeiro lugar, pelo óbvio: eu já vivi! Por que desejaria viver novamente do mesmo jeito? Não haveria como duplicar uma felicidade no mesmo lugar. Depois, não era tudo uma maravilha, havia muitas dificuldades e crises existenciais (aluno de psicologia né...). Iria voltar para mudar, “consertar” algumas coisas? Ora, isso faz menos sentido ainda! Era mais provável eu fazer mais merda e piorar os eventos. Temos filmes que nos mostram isso né... Já foi, simples assim. É fim.
Só que a saudade pode ser algo muito mais interessante. Por contraditório que possa parecer, é sentir saudade (e deve haver uma boa dose de inconsciente aí – ou de um tipo de inconsciente) do que não foi, do que não se viveu. É uma saudade daquilo que poderia ter sido. Não do que deveria ter sido; há grande diferença aí. O que deveria ter sido é da consciência, coisas que nós achamos que, ou que deveriam mesmo ter sido. São falhas reais, ambientais, provocam ou podem provocar todo o tipo de consequência, mas não é disso que se trata aqui. O que poderia ter sido é completamente aleatório, não há consciente aí – há só, talvez, um tipo de inconsciente. Por exemplo, ao invés de ter te escrito “obrigado” para uma mensagem qualquer, não respondi nada (ou ainda, escrevi, mas outra coisa): o que teria sido disso? O que poderia ter acontecido? É ingenuidade pensar que seria tudo igual! Seria tudo muito diferente. E o que seria? Aí que está: não temos a mínima ideia. Mas se pode ter saudade disso sim: daquilo que poderia ter sido, e que deixa traços, mas apenas vestígios misteriosos... É o acaso.
Freud disse, em um pequeno texto, obscuro para alguns, que o fenômeno do déjà-vu (a sensação do “já visto” quando se está na presença de algo pela primeira vez) seria explicado pela repressão: algo que se vê/vivencia aproximaria perigosamente, de alguma forma, a um conteúdo reprimido. Logo, seria criada essa falsa sensação que nos deixa ocupados por um bom tempo (e deixa mesmo!) tentando recordar onde já vimos/vivemos tal situação, com o intuito de não permitir que o conteúdo recalcado viesse à tona. Obviamente, não é a única explicação que existe.
A teoria dos muitos mundos, uma das interpretações da mecânica quântica, diz sobre a existência de universos paralelos. Funciona mais ou menos assim: para cada ação que você efetua, outro universo (paralelo) se abre com a (ou as) escolha que você não tomou. Isso faz com que existam infinitos universos diferentes, todos acontecendo ao mesmo tempocom desdobramentos dos caminhos que não tomamos. O físico Michio Kaku sugere que o déjà-vu poderia ser um instante no qual outro desses universos se toca com o nosso. Algo do tipo, imagino eu, como aquele quase toque de dedos da Criação de Adão, de Michelangelo: um glimpse, uma visão muito rápida na qual se vê/lembra do que está acontecendo em outro universo, do que poderia ter sido (aqui).
Um mínimo movimento qualquer direciona nossa vida totalmente para determinado lado. Poderia ter sido para outro, por qualquer detalhe;[3] pode estar sendo agora mesmo. Complicado né? Pode deixar sua mente explodir. Ou ainda não! Espere um pouquinho só, a melhor história vem agora.
Estamos falando de uma grande junção temporal, muito dinâmica. O melhor exemplo vem, não é de impressionar, de uma criança: uma menina linda, filha de uma amiga minha mais querida. Ela, com seus dois anos e tantos de idade, tinha a noção de tempo anterior, mas ainda não dominava a fala disso, ou seja, não conseguia dizer “ontem”, “semana passada”, etc. Então, sempre que se referia a algo do passado, usava a expressão mais maravilhosa que já ouvi: o outro amanhã. Olha que coisa: quando ela contava (e eu presenciei isso!) de um acontecimento de, digamos, três dias atrás, ela o localizava no “outro amanhã”. Ela explicava toda uma teoria em uma simples expressão! Meu encantamento com ela e com a sua capacidade criativa foi tanto, que coloquei a sua frase de título do Epílogo da minha tese de doutorado. Nada mais justo: ela resumiu de uma forma pura e espontânea uma das coisas que eu tentei em vão dizer por centenas de páginas “acadêmicas”.
Uma saudade do futuro seria, então, um correlato da saudade do que poderia ter sido. Sendo o futuro desconhecido (o passado, ao contrário da nossa intuição, também é!), essa saudade só pode ser do futuro que poderia ter acontecido, do que está sendo em outro lugar/universo, e que tem influência de causar sentimentos na nossa realidade. Se você prestar atenção, a saudade do que não se viveu, desse futuro do pretérito composto,[4] é muito mais pungente do que a saudade do passado, que achamos tão “dilaceradora”.
Pronto, tu já podes explodir a tua mente se quiseres agora. Eu te entendo perfeitamente.
Abril, 2025.
[1] Por exemplo: https://www.julianocorrea.com/post/a-vida-segue
[3] Se você está pensando no “efeito borboleta”, é isso mesmo. Essa noção é a teoria de caos que, ao contrário, não responde pelo acaso, mesmo que pareça responder.
PS: A música que eu realmente gostaria de ter colocado na minha publicação do Instagram é esta versão original de Syd Barret (a substituta foi respeitável, pois é David Gilmour). O gênio mais trágico do rock. O que teria sido, muitos se perguntam, de Syd Barret se ele não tivesse sucumbindo? O que será que esteve sendo dele...