Here comes Johnny Yen again
With the liquor and drugs
And the flesh machine
He's gonna do another strip tease
“Lust For Life” – Iggy Pop
Freud colocou a psicanálise no século XX (o contrário também seria verdade). Todo o entendimento dos impulsos, desejos, sonhos, angústias dos seres humanos como pensamos a partir do século XX seria drasticamente diferente se Freud não tivesse existido; ou, ao menos, se tivesse seguido sua ordinária carreira médica. A considerada, pelo próprio, sua “obra inaugural”, “A interpretação de sonhos”, publicada em 4 de novembro de 1899, trazia em sua capa a data de 1900.
"Ainda que, à primeira vista, essa informação bibliográfica contraditória reflita apenas uma convenção editorial, retrospectivamente é um bom símbolo da herança intelectual e influência definitiva de Freud. Seu 'livro do sonho', como ele gostava de chamá-lo, era produto de uma mente moldada no século XIX, mas tornou-se propriedade – amada, tripudiada, inescapável – do século XX" (GAY, 2012, p. 21).
Na noite de 24 de julho de 1895, Freud teve o famoso sonho da “injeção de Irma”, o sonho paradigmático de “A interpretação de sonhos”, que está descrito e interpretado no segundo capítulo do livro (FREUD, 1900a/1996). Mais tarde, já após o lançamento do livro, questionou, numa carta de 12 de junho de 1900, ao seu amigo Fliess: “você acha que, algum dia, será possível ler numa placa de mármore nesta casa [no Schloss Bellevue, onde o sonho ocorreu], ‘aqui, no dia 24 de julho de 1895, o segredo do sonho se revelou ao Dr. Sigm. Freud’? Até o momento, as perspectivas são pequenas” (FREUD, 1986, p. 418). Ainda que houvesse uma declarada, modéstia nunca foi o forte de Freud: veja que não é uma plaquinha qualquer, é de mármore! Mas isso atesta a certeza absoluta que ele tinha na grandiosidade do que estava fazendo (e a placa foi sim colocada em 6 de maio – dia do seu nascimento – de 1977!).
Freud nunca escondeu a importância do livro, que vai além da psicanálise até um nível pessoal de sua autoanálise, marcadamente da relação com seu pai (ele mesmo escreve que o livro foi uma resposta à morte deste), como atestaria 31 anos depois, no prefácio à terceira edição inglesa: “contém, mesmo de acordo com meu julgamento atual, a mais valiosa de todas as descobertas que tive a felicidade de fazer. Um discernimento claro como esse só acontece uma vez na vida” (FREUD, 1900a/1996, p. 38). O cuidado posterior também comprova a afeição para com a obra: Freud foi acrescentando conteúdo, em maior ou menor grau, na medida em que sua teoria evoluía, até a última edição enquanto ele estava vivo, em 1930. Podemos dizer que foi um trabalho que prosseguiu sendo escrito por mais de 30 anos!
A afirmação do biógrafo de Freud acima é significativa: uma mente propriedade do século XX, mas moldada no século XIX. O que isso quer dizer? Que Freud tinha, como gosto de chamar, “contradições”. De todos os tipos. Tanto em nível pessoal, quanto intelectual, do desenvolvimento da psicanálise. Freud era como um homem dividido entre dois mundos (ou dois séculos, se quisermos), no sentido de ele estar criando algo novo (e gostar disso, via-se como um “conquistador”), ao mesmo tempo em que tinha muito desejo por reconhecimento do establishment, da elite tradicional científica/acadêmica de sua época. Ambos esses anseios, certamente, eram extremamente complexos de serem agregados, mas Freud tentava (menos a partir de 1920, mas nunca desistiu totalmente). Tomemos como exemplo seu próprio “livro dos sonhos”: Freud tinha um impulso de “impactar”, que começa já pelo título: Die traumdeutung. “Interpretação de sonho”: lacônico e genérico, dava a ideia universal do entendimento do sonho que remetia aos místicos, supersticiosos, uma quebra no vocabulário e interesses científicos da época (GAY, 2012; ROUDINESCO, 2016). Que cientista sério, ou que quisesse ser visto assim, teria como ponto de partida principal o tema dos sonhos? É que o sonho trazia grande vantagem sobre a histeria, seu outro grande campo de pesquisa inicial: é comum a todos e serve como base tanto para o funcionamento “neurótico” como para o “normal” (MEZAN, 2006). E, claro, através do seu entendimento, culminou na primeira apresentação plena do conceito de inconsciente, com a exposição da primeira teoria do aparelho psíquico no famoso capítulo VII, assim como do método investigativo que criara, e das bases da sexualidade, o complexo de Édipo, mesmo que tudo isso ainda fosse ser construído pelos anos seguintes. Freud sabia o valor de sua obra: tanto que promoveu todo esse investimento nela, mesmo o livro sendo um estrondoso fracasso editorial inicial, vendendo parcos 361 exemplares nos seis primeiros anos (GAY, 2012; ROUDINESCO, 2016); porém, tornou-se, posteriormente, um dos livros mais importantes do século passado, como seu autor pareceu “previr”.
Assim, o pai da psicanálise andou, com nuanças diferentes, por um lado mais arrojado, e outro, mais conservador, ambos sendo inteiramente verdadeiros (e, talvez necessários). Freud não era completamente um homem de seu tempo; é uma questão complexa, daria uma tese inteira, mas nós vamos abordar apenas um naco dela (aqui, e em mais alguns artigos) e, ainda, superficialmente, só para pegar base necessária para o desenvolvimento do estudo sobre o acaso na psicanálise. Nesse movimento pendular, Freud faz afirmações e usa termos que merecem uma atenção maior. Um caso desses é a sua noção de determinismo psíquico. Ora, dependendo do entendimento que tivermos desse tópico, as possibilidades para o acaso na psicanálise podem ser abertas (mesmo que seja só uma fresta) ou completamente fechadas. O determinismo era algo muito em voga no ambiente científico de Freud, quase uma lei, uma obrigação para qualquer um ou qualquer campo de estudo que se quisesse como ciência. “Freud encontra uma dada situação, nasce num momento em que a pesquisa do determinismo psicoquímico natural em psicologia estava na ordem do dia. Freud inscreve-se nessa categoria que tenta negar os efeitos do acaso para compreender a vida psíquica” (LEBOVICI, 1993, p. 46-47) [Grifo meu]. Porém, como já afirmei, Freud era um homem dividido. Este é é o escopo geral de uma das três "pernas" que propus anteriormente (CORRÊA, 2023a) para nosso estudo sobre o acaso na psicanálise: o Espaço. Este é é o primeiro texto deste campo, já está publicado o primeiro do capítulo que chamei de Tempo (CORRÊA, 2023b). Assim, nesta esfera é importante analisarmos onde a psicanálise se localizava nos seus primeiros anos, e que "diálogos" mantinha com seu entorno. O primeiro passo, que levará para a noção de sobredeterminação e além, é questionar: qual era a posição de Freud quanto ao determinismo?
“Sobre a psicopatologia da vida cotidiana” talvez seja o mais exemplar discurso de Freud (1901/1996) sobre o determinismo psíquico. Inclusive, o editor e tradutor das obras completas de Freud em inglês, James Strachey, aponta, na introdução do livro, que um dos tópicos de maior interesse de Freud pelos atos falhos em geral era justamente a comprovação da crença no determinismo universal dos processos psíquicos. Já na primeira página, antes do famoso exemplo do esquecimento do nome Signorelli,[1] ele expõe: “minha hipótese é que esse deslocamento [do nome esquecido para um substituto incorreto] não está entregue a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveisque obedecem a leis” (FREUD, 1901/1996, p. 19) [Grifo meu]. São dois pontos já muito importantes aqui: previsibilidadee leis. Freud está fundando suas premissas: seja a ocorrência de um nome ou de um número, este “[...] é estritamente determinado [...]” (FREUD, 1901/1996, p. 238). Depois da exposição metapsicológica do capítulo VII de “A interpretação de sonhos” (FREUD, 1900b/1996), ele mesmo deixa claro que este livro preza pela abundância de exemplos, sem se preocupar muito com as explicações teóricas: é como se, nesse sentido, um livro complementasse o outro, e há este aspecto significativo: a não arbitrariedade, o determinismo dos processos psíquicos, que ele tenta provar a partir dos exemplos dos vários tipos de lapsos. Não por acaso, o termo “sobredeterminação” não aparece nenhuma vez na obra, a não ser por uma nota de rodapé de Strachey. Freud, discutindo os lapsos da fala, está mostrando as ideias de Wundt e cita o fundador da psicologia moderna em um trecho que questiona “[...] se não seria mais justificável, de acordo com o princípio da complicação das causas, atribuí-la a uma conjugação de vários motivos” (WUNDT apud FREUD, 1901/1996, p. 74) [Grifo do autor]. Strachey aponta que Freud certamente estava vendo sua própria noção de sobredeterminação nesse fragmento.
O clássico “Vocabulário de psicanálise”, de Laplanche e Pontalis (1997), traz uma informação interessante, mesmo sem a dizer objetivamente. Na sua lista de principais verbetes, não consta o vocábulo “determinismo” ou “determinismo psíquico”. Eu considero isso bastante sintomático: como que uma premissa tão importante, uma lei psíquica universal para Freud, não está presente em uma listagem de sua terminologia fundamental? De qualquer forma, ao invés da expressão “determinismo”, ou algo similar, está presente a entrada “sobredeterminação”: “o fato de uma formação inconsciente – sintoma, sonho, etc. – remeter para uma pluralidade de fatores determinantes” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1997, p. 487-488). Os autores apontam duas acepções diferentes para essa definição: uma, em que há várias causas participando para a formação, já que uma só não é suficiente; e outra, mais aceita, segundo eles, na qual elementos inconscientes se organizam em sequências diferentes, cada uma com sua própria coerência quanto às interpretações possíveis. Garcia-Roza (2000a, p. 112) define a sobredeterminação de maneira muito semelhante, como “[...] o fato de uma formação do inconsciente, seja ela um sonho, um sintoma ou um ato falho, ter uma multiplicidade de fatores determinantes”. De qualquer forma, Gay (2012) nos informa que o livro da psicopatologia da vida cotidiana foi o mais lido, o que mais teve traduções para diferentes países enquanto Freud estava vivo, com onze edições e sendo traduzido para doze idiomas, o que nos dá a ideia do alcance que a concepção freudiana de determinismo psíquico teve.
Então, em todos os exemplos do livro Freud irá mostrar, através de uma intrincada cadeia de associações e análises, que os esquecimentos e lapsos de todos os tipos não acontecem ao acaso, mas possuem uma causa mascarada pela repressão,[2] portanto, determinada pelo inconsciente. Em algumas vezes, sua explicação parece até forçada. Um desses casos, é especialmente interessante para nós por tocar diretamente no tema principal deste nosso estudo maior: os encontros ao acaso. Freud (1901/1996, p. 258-259) relata uma ocorrência dele próprio, de cruzar com um casal de conhecidos na rua no exato momento em que estava pensando neles. Ele justifica o evento “milagroso” pela análise posterior de, supostamente, ter visto antes o casal que encontraria dali alguns metros, mas ter afastado essa percepção por implicações emocionais. Bom, certamente isso está em total acordo com a sua teoria e também com o que ele está tentando estabelecer; porém, é claro que o meu entendimento é outro: estamos aqui diante de um encontro ao acaso, algo que foge da “amarração” que Freud está fazendo. Até porque a explicação que ele fornece parece nos deixar perigosamente naquele lugar em que absolutamente qualquer evento é explicado pela psicanálise devido às “curvas” do inconsciente, como as famosas críticas de Popper (1987), tão atacadas, mas tão justas, alertam. Nesse sentido, o inconsciente seria um “cala a boca”, como muitos aspectos da fé são. Não acho que era o caso dele, mas esta é uma artimanha quase perversa (e burra) que alguns psicanalistas usam para não desagarrarem de suas convicções mais profundas, muitas vezes cegas, junto das quais eles morreriam afogados. Eu concordo (bastante!) com a presença e a ação das implicações emocionais, só que de um modo bem diferente. E o que seria, então? Como? Chegaremos lá (espero), mas por enquanto é importante notar que Freud reforça sua explicação do determinismo psíquico através de uma oposição ao acaso. Isso aparece com mais força justamente no capítulo XII, o último da obra, de onde o exemplo do encontro foi retirado. Vejamos outros como este, aparentemente inocentes, que Freud (1901/1996) utiliza, e que nos serão úteis num (ainda bem distante) futuro.
Primeiramente, os sonhos proféticos ou premonitórios, que ele já havia abordado também em “A interpretação de sonhos” (FREUD, 1900/1996). Nesse ponto, Freud é bem claro: não existem sonhos desse tipo. No presente texto, ele conta de uma paciente que sonhou que encontrava um homem seu conhecido em determinado local, e tal fato acabou, com efeito, acontecendo na manhã seguinte. Freud (1901/1996) explica que o caso não oferecia nenhuma prova de que a mulher em questão havia se lembrado do sonho antes de tal encontro, o que o levou a interpretar uma realização de desejo sexual referente a outro relacionamento dela com quem o amigo do encontro tinha certa proximidade (e aqui é curioso que procedimento que ele usou para si mesmo não vale neste caso: afinal, não provas também que ele “supostamente” havia visto o casal conhecido antes do encontro). Eu também não creio que existam sonhos premonitórios dessa maneira que ele expõe; só fica aqui um questionamento sobre sonhos voltados para o futuro (sem previsões), talvez descolados de desejos reprimidos. Enfim, que papel teria o futuro no sonho? Melhor: tem algum papel no nosso entendimento corrente? Ou somente procuramos o passado impulsionador do sonho?
Freud (1901/1996) também aborda os fenômenos de fausse reconnaissance (falso reconhecimento): o déjà vu (já visto), a forte sensação, no presente, de já se ter vivenciado uma situação no passado, ou estar em algum lugar e ter a certeza que já se esteve ali; porém, por mais força que se faça, não se consegue lembrar exatamente o que ou onde. O responsável pelo déjà vu, diz ele, são as fantasias inconscientes.[3] Isso não significa dizer que estamos diante de uma ilusão: “é que nesses momentos realmente se toca em algo que já se vivenciou antes, só que isso não pode ser lembrado conscientemente porque nunca foi consciente” (FREUD, 1901/1996, p. 261) [Grifo meu]. Ou seja, uma fantasia anterior, não aceita pelo sujeito, é barrada em seu acesso à consciência, ficando, assim, inconsciente. É importante para nós, quando estivermos nos artigos diretamente voltados para a construção do acaso, o meu grifo: Freud diz de algo que já se vivenciou antes; eu deixo aqui a hipótese de já ter sido/estar sendo vivenciado em outro lugar. Igualmente, ele fala de algo que nunca foi consciente, não foi reprimido e está tentando, por vias associativas, ascender à consciência, mas sempre esteve no inconsciente e, mesmo assim, parece encontrar, pelo que ele nos diz, vias de conexão para chegar ao consciente. A situação/lugar atual, por algum traço de associação, remete a esta fantasia antiga, surgindo a sensação do déjà vu, que, dessa forma, funciona como uma defesa contra a aparição da fantasia inconsciente. Logo na sequência, também aborda outro fenômeno análogo, o déjà racontè (já contado). O exemplo que fornece é clínico, ainda que aconteça fora da análise também: quando o paciente tem absoluta certeza de ter contado algo para o seu analista, mas isso não ocorreu (e aí, quase sempre, confia-se mais na memória do analista). A explicação é basicamente a mesma, aqui tirada de outro texto, bem pequeno, que ele dedica exclusivamente ao fenômeno: “[...] o paciente realmente teve a intenção de dar essa informação, que por uma ou diversas vezes, na realidade, alguma observação que conduzia a ela, mas foi então impedido, pela resistência, de realizar seu propósito e, mais tarde, confundiu a lembrança de sua intenção coma lembrança de sua atuação” (FREUD, 1914/1996, p. 207) [Grifo do autor]. Nessa breve publicação, ele coloca o nome déjà vu como representante de todo um tipo de ocorrência parecida, como o déjà entendu (já ouvido), déjà éprouvé (já experimentado), déjà senti (já sentido), e poderíamos incluir o déjà fait (já feito), o déjà voulu (já desejado), o déjà vécu (já vivido), enfim, todos os “déjàs” que quisermos imaginar. A explicação de Freud para os casos de falso reconhecimento tem um propósito semelhante ao esclarecimento dos sonhos proféticos: as pessoas com a emoção do “já alguma coisa” geralmente expressavam uma certeza de que isso estava em nome de algum sinal (obscuro, que seja) importante, de alguma circunstância que apontava para sua vida futura, como modo de agir, ou em quem deveriam confiar, ou de quem se aproximar. Freud realmente era um destruidor de ilusões! A questão que coloco é, em suma, a mesma que a anterior: eu também não acho que esses eventos sejam algum tipo de “sinal” a partir do qual a pessoa possa se guiar para o futuro de sua vida; porém, será que essa é a única explicação que podemos ter? É uma interpretação que pressupõe uma causa (é o grande objetivo de Freud), um desejo, e, novamente, remete para o passado. Poderia haver alguma alternativa sem causa e com futuro (e que não fossem esses sinais mágicos, óbvio)? E sem desejo também, que parece que se for tirado todo o edifício da psicanálise desaba? Mantemos essas perguntas em mente. Além disso, como fica claro, nada de acaso aqui.
Há uma pequena exceção, dá a impressão de ser quase um deslize, que novamente virá em nosso auxílio (e novamente no futuro do nosso trabalho, mas é essencial que as notas, acordes e melodias já estejam sendo experimentadas aqui). O título deste capítulo de “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana” que estou me detendo é: “determinismo, crença no acaso e superstição – alguns pontos de vista”. Então, Freud (1901/1996) está justamente “comprovando” sua tese do determinismo psíquico a partir de uma série de fenômenos, digamos, mais populares, crenças que ele vai nos mostrando não terem exatamente o sentido que uma parcela das pessoas acha que tem, e o faz através da explicação (“determinista”) psicanalítica. A exceção, neste caso, é em relação à telepatia. Seguindo seu “combate” a todos os tipos de superstições, ele confidencia (em uma frase acrescentada ao texto em 1924): “contudo, devo confessar que nos últimos anos tive algumas experiências notáveis que poderiam ter sido facilmente explicadas mediante a hipótese da transferência telepática de pensamentos” (FREUD, 1901/1996, p.257) [Grifo meu]. Nós voltaremos aos fenômenos telepáticos em outros artigos no futuro. Por ora, estou destacando este quase exercício que Freud está fazendo de descartar as explanações “populares” em nome de suas concepções que ele estava elaborando; mas tenho de ser correto com Freud. Ele deixa bem claro, sempre o fez, que tira muitas conclusões de suas próprias experiências (no que eu me pareço, mas só nisso). Só que ele também coloca, mais de uma vez nesse livro, que não está afirmando a universalidade de suas hipóteses, no sentido de dizer que ele talvez possa estar errado, muito devido ao seu material de apoio (que são também seus pacientes), que não teria problemas em mudar, em parte, suas concepções, como ele fez durante toda a sua vida. De qualquer forma, na sua exposição das significações determinadas por causas inconscientes, o contraponto é feito a partir de crenças, inclusive as mais populares, no contingente, na casualidade dos acontecimentos. O que é aparentemente arbitrário, na verdade não é, têm causas em motivações/determinações inconscientes.
Ao tratar sobre as casualidades da superstição, Freud faz uma valorosa distinção: enquanto o supersticioso projeta no mundo externo uma motivação (por ignorância da sua significação em seu mundo interno), ele (a psicanálise) busca essas motivações internamente (no inconsciente). Sustenta que “[...] é comum a nós dois a compulsão a não encarar o acaso como acaso, mas a interpretá-lo” (FREUD, 1901/1996, p. 253), visto que o supersticioso também vai atribuir um significado ao acontecimento, só que ilusório e externo a si. Um ponto crucial aqui, que será levado até às hipóteses essenciais deste projeto, é que o acaso deve sim ser encarado como acaso! E isso não é o que Freud diz! O que ele fala de “encarar o acaso como o acaso” é somente outro tipo de interpretação (mística) diferente da que ele oferece (inconsciente). Acaso, por definição, não tem causa, disso eu não vou abrir mão durante este percurso. Então, mesmo com um posicionamento tão forte em relação ao imperativo determinista na psicanálise que Freud faz, uma leitura atenta permite outra abordagem.
Costa e Gomes (2017, p. 2) assinalam que “[...] se Freud não fosse um adepto do determinismo psíquico, ele jamais poderia ter feito o que fez”. Ou seja, se ele concebesse que algo na vida psíquica poderia ser fruto do acaso, como ele transformaria fatos banais como o ato falho, ou fenômenos desinteressados como o sonho e o sintoma histérico, em categorias fundamentais de sua teoria, os paladinos do inconsciente? Desta forma, o determinismo de Freud está circunscrito ao psiquismo. Quando analisa um número que ele mesmo tentou dizer ao acaso (o “tentar” já não em nada a ver com acaso, elimina completamente sua possibilidade), faz a ressalva: “mas não há no psíquico nada que seja arbitrário ou indeterminado” (FREUD, 1901/1996, p. 240) [Grifo meu]. Adiante, afirma: “creio no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em casualidades (psíquicas) internas” (FREUD, 1901/1996, p. 253). Essa última frase é escrita ao discutir a questão do supersticioso: Freud não está negando o acaso de seu cocheiro ter errado o endereço de sua paciente a qual ele tinha de visitar, mas como o fato não pertence à sua vida anímica, “evidentemente explico essa ocorrência como uma casualidade sem nenhum outro sentido” (FREUD, 1901/1996, p. 253). Novamente, isso é significativo: Freud não vê nada de interessante de ele estar envolvido, de ele estar nesse encontro do “acaso”, como ele mesmo denominou. Esta casualidade não ter “nenhum outro sentido” é perfeito, pois o acaso é isso mesmo; mas ela não tem nenhuma importância nos eventos da vida? Teve no encontro de Freud com seu cocheiro. Então, o acaso está “banido” do psiquismo, mas existe fora dele. Sigamos, por enquanto, este caminho de investigação, não nos apressemos demais: o tal acaso no psiquismoserá discutido em textos vindouros. Freud simplesmente não vê nenhum sentido nesse acaso da “vida real”, externo. Ora, a opinião de Freud não é nada nova (e é compartilhada até hoje pela maior parte dos psicanalistas), é até esperada, mas ela nos traz algo importante, pois mesmo que ele seja frontalmente contra o acaso, há uma possibilidade: não levar em conta é bastante diferente do que não existir. Ele próprio afirma a eventualidade de mudanças nos pontos de vista frente a novas descobertas: “se ficasse provada ainda a existência de outros fenômenos – por exemplo, os afirmados pelos espíritas – trataríamos apenas de modificar nossas ‘leis’ da maneira exigida pelo novo saber, sem abalarmos nossa crença na coerência das coisas no mundo” (FREUD, 1901/1996, p. 256). Esse trecho é muito relevante porque Freud está assegurando ser plausível a coexistência desses campos supostamente tão apartados (às vezes, por ele mesmo). Além de deixar claro as possibilidades de mudanças na teoria, o que ele sempre fez durante a sua vida.
“Se assim for o caso” de a existência de outros fenômenos ser provada (e vejam, é Freud quem está falando de “comprovação”), é porque essa “lei determinista” que Freud postula é altamente questionável. Costa e Gomes (2017) lembram que Freud não dedicou exclusividade ao determinismo em nenhum de seus textos, mas essa foi uma noção que, mesmo com diferenças, manteve-se ao longo de sua obra. Eu concordo com isso, ainda que veja duas questões a serem abordadas. A primeira, é mais uma curiosidade, mas que aponta para algo talvez significativo: a última vez que o termo “determinismo” é citado, no sentido que estou abordando, em algum escrito é em 1923, no texto “Dois verbetes de enciclopédia” (FREUD, 1923/1996). E ainda, esse escrito elenca as principais premissas da sua teoria, então, ele é usado de forma retrospectiva, para contar a história de como a psicanálise forneceu um significado aos atos fortuitos e parapraxias, ou seja, que eles têm um sentido, e como isso ampliou o âmbito do determinismo mental, estreitando os laços entre o normal e o patológico onde se via um abismo. Antes disso, o termo aparece na conferência II (sobre as “parapraxias”) (FREUD, 1916a/1996), e na VI (“premissas e técnicas de interpretação”) (FREUD, 1916b/1996) das “Conferências introdutórias sobre a psicanálise”. Na conferência VI, que data de 1916, Freud (1916b/1996) faz uma grande defesa do determinismo, afirmando que as pessoas tendem a terem uma fé em eventos psíquicos não-determinados, mas que isso é uma posição anticientífica. Mesmo levando em conta a citação retrospectiva do termo em 1923, é interessante como a palavra “determinismo” some dos textos de Freud a partir da sua segunda grande teoria do aparelho psíquico. Isso avalizaria a ideia de um Freud mais “indeterminista” a partir de 1920, ano da “grande virada” para a assim chamada “segunda tópica”. Podemos pensar que isso não é um acaso, tendo em vista as profundas modificações que acontecem após 1920. Eu sempre havia aceitado a premissa de Lacan (1985, p. 169) que “Freud não é Jung. Ele não se diverte procurando as ressonâncias todas. Quando Freud põe alguma coisa no texto dele isso tem sempre uma extrema importância”. Além da chinelada normal (e injustificada) em Jung, isso é (ao menos, foi para mim) o que nos é passado em nossas formações, mas só hoje (apesar de anos lendo Freud e vendo que coisas não se encaixavam nesse discurso) posso dizer que não concordo plenamente com isso, e essa afirmativa vai de encontro com muito do que a tradição francesa fez na sua tentativa de canonizar certas expressões, pois parece só valer em determinadas circunstâncias que, coincidentemente, estão de acordo com a visão antinaturalista que se visava implementar. É como se fosse o chiste que Freud (1937/1996) usa em “Análise terminável e interminável”: cara eu ganho, coroa você perde! Contrariamente ao que o gênio francês prega, Souza (2010, p. 6) comenta, destacando a verve literária na escrita de Freud, que “com uma ou outra exceção, Freud não se preocupa em definir ostensivamente seus termos, como fazem alguns teóricos e autores de vocabulários psicanalíticos. Lendo sua prosa, vê-se que os sentidos emergem naturalmente dos contextos”. Ou seja, os conceitos não estão dispostos de forma tão categórica no decorrer da obra de Freud como Lacan, e, depois, o consagrado “Vocabulário” de Laplanche e Pontalis (1997) quiseram (e foram bem-sucedidos!) fazer acreditar (e seria bom se fosse assim!) de modo que se tornou dogmático. Os entendimentos do texto freudiano, invariavelmente vão ao encontro de ideologias psicanalíticas, para justificar (por precisarem de permissão?) certos posicionamentos, como é o caso aqui, e completamente justificáveis pelo contexto dessas produções, mas não são, absolutamente, a “verdade” da letra freudiana. Não fosse assim, não haveria desconsideração das claras referências à biologia, por exemplo, do que essa tradição queria descolar. Freud era cuidadoso sim (e muito!) com seus textos, mas certamente não era, conceitualmente, como um cientista de sua época, ainda que tivesse fortemente essa formação, ou, muito menos, como um filósofo. Então, é muito interessante que a afirmação de Lacan citada acima é levada ao pé da letra em algumas situações, mas simplesmente desconsiderada em outras, as quais contrariam a visão que está se querendo estabelecer, como a relação com a biologia que já destaquei. As palavras de Freud, como Lacan acabou de ressaltar, são sempre importantes, mas quando ele diz, clara e objetivamente, que falo é igual a pênis, aí não é isso, é “simbólico” (quase qualquer psicanalista pularia de sua confortável poltrona para responder prontamente assim). Mas aqui já estamos perigosamente nos alongando para outro tema, ainda que importante (e mereça uma consideração mais de perto), que desviaria nossa busca primordial... Então, em que pese o vocabulário freudiano ser mais fluído e literário do que científico/filosófico, o desaparecimento, principalmente quando este acontece, de um termo que era usado para uma noção tão fundamental de sua construção, pode dizer alguma coisa. Mas isso ainda é menor do que a segunda questão que nos ocupa agora: Freud destaca o sentido que os processos psíquicos possuem quando aborda o seu determinismo. O que não necessariamente tem de ser determinista propriamente dito.
A série de cinco palestras que Freud proferiu em 1909, na Clark University, em Worcester, Massachusetts, foi um marco para ele: considerou o primeiro reconhecimento oficial de sua nova ciência, orgulho que levou pela vida, apesar de seu complexo antiamericanismo (GAY, 2012). Posteriormente publicadas sob o título de “Cinco lições de psicanálise” (FREUD, 1910/1996), essas aulas contêm, de forma muito clara e completa, todos os principais desenvolvimentos da psicanálise até então. Na terceira lição, ao expor o método de acesso aos conteúdos inconscientes através do chiste, do ato falho e, sobretudo, do sonho, Freud admite que nunca pôde acreditar que uma ideia do paciente fosse concebida de forma completamente espontânea, que não tivesse nenhuma relação com o material procurado (reprimido) e, assim, achava útil a utilização de um pressuposto. Tal pressuposto é o alto rigor do determinismo nos processos mentais, concepção a que ele se declara um admirador.
"Notarão desde logo que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda a parte onde habitualmente ninguém pensa nisso; está até disposto a aceitar causas múltiplas para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal, que supomos inata, se satisfaz plenamente com uma única causa psíquica" (FREUD, 1910/1996, p. 50) [Grifo do autor].
Essa passagem é especialmente interessante. Primeiro, porque reafirma seu compromisso, sua fé no determinismo. Mas também está dizendo que o psicanalista está disposto a aceitar causas múltiplas para o mesmo efeito. Ainda que não a nomeie, parece que ele está se referindo à sua noção de sobredeterminação. Vamos a mais curiosidades: o uso do termo“sobredeterminação” teve vida muitíssimo curta na produção de Freud. Aparece em uma obra publicada, pela primeira vez, nos “Estudos sobre a histeria” (FREUD e BREUER, 1895/1996), curiosamente num texto de Breuer: “[...] é preciso haver uma convergência de vários fatores para que um sintoma histérico possa ser gerado em qualquer um que até então tenha sido normal. Tais sintomas são invariavelmente ‘sobredeterminados’, para usar a expressão de Freud” (FREUD e BREUER, 1895/1996, p. 232) [Grifo meu]. Antes disso, no caso da Srta. Elizabeth von R., Freud já expõe a ideia, ainda que sem a citar: “quase invariavelmente, ao investigar os determinantes desses estados [histéricos], o que tenho encontrado não é uma única causa traumática, mas um grupo de causas semelhantes” (FREUD e BREUER, 1895/1996, p. 195) [Grifo dos autores]. Porém, a palavra “sobredeterminação” tem sua última aparição no “caso Dora” (FREUD, 1905/1996), publicado em 1905, mas escrito em 1901, ou seja, morreu quase no nascimento! Claro que, como o determinismo, eu penso que podemos ver a noção de sobredeterminação sobreviver nos escritos de Freud, mesmo sem ser nomeada (na verdade, de maneira mais forte ainda!). Basta, por exemplo, olharmos para a noção de séries complementares.
Desde os primórdios, Freud perseguia a etiologia das neuroses. Certamente influenciado pelo mistério da histeria, que não apresenta dano orgânico, ele queria descobrir o que causa as neuroses e cada uma delas. Em duas de suas “Conferências introdutórias sobre a psicanálise”, as conferências XXII e XXIII, Freud (1917a/1996; 1917b/1996) se interroga se as causas das neuroses são de ordem exógena ou endógena. Freud estava, desde o início, às voltas com o estabelecimento de uma equação etiológica, que com o passar dos anos foi se desenvolvendo e se modificando.[4] Neste instante, dessas conferências, há mais um passo importante nesse processo, e que é o que nos interessa: é quando Freud insere a concepção de séries complementares, que justamente têm esse nome porque não “funcionam” sozinhas. É a resposta de Freud para a sua própria pergunta: não há necessidade de se decidir por fatores endógenos ou exógenos, pois ambos concorrem para o surgimento da neurose. Mas, como nada é tão simples assim, não são apenas dois fatores!
As causas endógenas e exógenas se multiplicam. Na conferência XXIII, “Os caminhos das formações dos sintomas”, Freud (1917b/1996) estabelece sua nova equação etiológica. A neurose será causada por: disposição devido à fixação da libido + experiência casual (traumática) no adulto. Claro que não é simples assim (nada parece ser na psicanálise), então, temos de destrinchar essa equação. A primeira parte talvez seja mais complexa.
Durante o desenvolvimento sexual que acontece através das conhecidas fases sexuais (oral, anal, fálica), vão ocorrendo fixações da libido nestas: “isto é, em vista da tendência geral dos processos biológicos à variação, não há como fugir ao fato de que nem todas as fases preparatórias são ultrapassadas com igual êxito e superadas completamente” (FREUD, 1917a/1996, p. 343) [Grifo meu]. Por que há a fixação? Por um excesso, por algo muito mais forte, mais intenso, por um prazer (no sentido psicanalítico) mais abundante que se teve em determinado ponto da evolução, evolução esta que é marcada por um aspecto biológico, como o próprio aponta.[5] Isso ocorre por duas razões: primeiramente, a experiência infantil, ou seja, as variedades da constituição familiar, os traumas; a segunda razão é a constituição sexual, que vai da força do instinto até uma herança filogenética. (Só para constar nesta discussão paralela, até o fim da vida Freud não vai abrir mão da importância desta transmissão filogenética). Esta fixação abre caminho para a regressão, e aí temos a segunda parte da equação: a experiência casual no adulto, tempos depois, a posteriori, provoca um retorno aos momentos/lugares nos quais há uma fixação maior, os quais, por sua vez, também exercem uma atração (FREUD, 1917a/1996; 1917b/1996; 1918). É toda uma construção baseada no conflito da expressão do desejo e nos caminhos que fazemos frente às frustrações da vida. Mas o esquema é ainda mais intrincado, e aí que entra a série complementar.
Freud (1917a/1996) questiona sobre as duas “pontas” da equação. A pergunta se a causa da neurose é endógena ou exógena se traduz pelo questionamento se a causa é pela determinação constitucional inevitável, a fixação da libido, ou produtos de situações da vida (traumáticas), a frustração. Ele afirma que esse dilema não é lícito, pois ambos são determinantes, dependendo de sua força: quando um é mais forte, consequentemente o outro é mais fraco. Assim, se a predisposição não fosse tão forte, a experiência posterior não teria levado ao adoecimento; da mesma forma, se a experiência traumática no adulto é muito potente, a constituição sexual não levaria à neurose (FREUD, 1917a/1996). É como uma gangorra (e como que a biologia não tem força aqui?). E essa mesma gangorra funciona também para os elementos da fixação do instinto, a primeira parte da equação: os fatores pré-históricos, e os infantis. A ideia é exatamente a mesma entre a disposição e a vivência casual do adulto. “A constituição sexual hereditária apresenta-nos uma grande variedade de disposições, conforme seja herdado, com particular intensidade, um ou outro dos instintos parciais, sozinho ou em combinação com os outros” (FREUD, 1917b/1996, p. 365) [Grifo meu]. Da mesma forma, as condições infantis estão abertas a toda uma variedade de possibilidades.
Então, não há menção direta ao conceito de sobredeterminação aqui, mas ele parece claro. São várias causas concorrentes. Nós ainda iremos discutir isso mais propriamente em futuros textos, mas por enquanto eu gostaria de chamar atenção para outro aspecto, primordial para a nossa pesquisa. Winograd (2007, p. 309-310) escreve que nas séries complementares “[...] os fatores em questão se conjugam, cada equação etiológica produzindo um efeito diverso de acordo com a intensidade da frustração e com a rigidez das fixações libidinais”, para logo depois completar: “mas, assim como ocorre com a frustração, nem todo conflito produz neurose: nossa vida anímica é agitada o tempo todo por conflitos com os quais temos de lidar” (WINOGRAD, 2007, p. 310). A autora, então, aponta para a necessidade de que “certas condições” se cumpram para que uma psicopatologia surja, condições estas que penso estarem bem colocadas pelo pai da psicanálise. A “amarração” etiológica da patologia que Freud faz é sublime, sensacional; quase comovente: a luta para entender o motivo do sofrimento. Digo isso porque segui a minha vida inteira esses parâmetros, então os acho corretos e fazendo total sentido: entender e lutar para reduzir os impactos do sofrimento nunca podem ser esquecidos como a alma da psicanálise. Só que eu não consigo (nunca consegui) olhar para isso e não pensar: mas tem alguma coisa faltando, tem algo que escapa, que não se consegue ser apreendido pelas equações. É um questionamento bem “infantil”, no sentido do que estamos discutindo aqui, mas talvez esta tese inteira seja infantil.
Uma vez, num dos grupos de estudos que eu oferecia, uma participante perguntou: “como fazemos para prevenir uma esquizofrenia?”. Eu acho que nunca tinha pensado nisso antes, então, após refletir um pouco, respondi com outra pergunta: “como sabemos quem vai ter esquizofrenia?”, completei brincando que a única solução seria colocarmos todasas pessoas em tratamento psicanalítico intenso desde uma muito tenra idade. Claro que nós sabemos muitas das características prévias que levam uma pessoa a desenvolver uma afecção psíquica, e isso é um fato comprovado pela experiência clínica de cada um. Talvez pudesse existir um tipo de campanha educacional para isso, como se faz em relação ao câncer, HIV, ou doenças do coração. Entretanto, mesmo nas doenças mais “palpáveis”, não se consegue uma prevenção completa, pois existem fatores aleatórios, inexplicáveis, inesperados, incapturáveis, que levam as pessoas a moléstia: eu já vi sujeitos, sem nenhuma condição prévia, com seus corações (literalmente) definhando; e contrário também. Sejam até questões genéticas incontroláveis, há um imponderável. E algo essencial para nós: estou falando de casos particulares, únicos (não são esses que atendemos em nossos consultórios?), não de uma média ou maioria. Se incluíssemos o acaso, por exemplo, nessas produções psicopatológicas (que, como o próprio Freud insistia, trazem também aspectos genéticos), seria mais compreensível como os elementos da equação etiológica com as séries complementares atuam, os “motivos” pelos quais um deles “explode”, e o outro, não; para uma pessoa, e não para a outra. Parece que o acaso já está ali, mas não é dito, no sentido de ser algo considerável (talvez por uma ideia de que não se tenha o que fazer com ele). O acaso só é “ferrenhamente” defendido nesses casos quando alguém, como eu, “acusa” a psicanálise de negar o acaso; aí parece que todos se alvoroçam garantindo que ele está lá sim! Mas nós sabemos que não é assim. Se há uma determinação, de que tipo seja, deveria haver a possibilidade de previsão confiável. Esse não é o mundo em que nós vivemos, nem são as pessoas que atendemos desse mundo. Afinal, não temos uma previsão exata do futuro na psicanálise, como teríamos algo determinado? Então, como poderíamos ter uma determinação do passado também? A inspiração para o título do belo livro de Hawking (2016) vem do heroico e sofrido edipiano Hamlet: “Ó, Deus, eu poderia estar cerceado em uma casca de noz e me considerar um rei do espaço infinito”, e o príncipe completa: “se não fosse eu ter sonhos ruins”[6] (SHAKESPEARE, 1999, p. 684). Bom seria, talvez, se vivêssemos em uma casca de noz onde poderíamos controlar absolutamente tudo (em termos mais brasileiros, “tatu na toca é rei”!); o problema é que temos sonhos ruins, e isso muda tudo, até pelo fato de não podermos controlar os nossos sonhos.
Sei que estou me adiantando, e perguntas podem estar se avolumando na mente do meu leitor. Tipo: “mas, então, como é esse acaso? Explique!”. Claro que não tenho essas respostas agora (e nem sei se as terei depois!), mas foi proposital: talvez seja importante já colocar, desde o início, o caminho pelo qual vamos seguir, o campo no qual estamos, não para chegar em respostas conclusivas, mas certamente para propor hipóteses. Afinal, é disso que se trata, não? Você também pode ter respondido algo que escrevi no parágrafo acima, de que o acaso está sim presente nas equações freudianas. Imagino a resposta: “mas é claro que está! Nunca sabemos quem terá uma neurose ou não, etc.”. Isso parece ser um consenso: nunca li, nem encontrei ninguém que dissesse o contrário. Mas essa “aceitação” do acaso, como também destaquei acima, é ilusória, pois, se é assim, por que não há referência, reconhecimento e produção sobre o mesmo? É porque o acaso está de fora, exatamente da mesma maneira que Freud (1901/1996) postulou, para além, não nos interessa. Pois eu quero ver se é assim mesmo, que lugar o acaso poderia ter na psicanálise, não com este “reconhecimento” que é um menosprezo, é fingido, mas como um elemento participante de valor em todo o processo, ainda que altamente selvagem. Qual é o valor de se “aceitar” o acaso, como nesse tema que estamos debatendo, se ele não serve para nada? Isso é o que ninguém responde, e ficam “aceitando” o acaso, mas negando veementemente sua presença de qualquer maneira que se faça. E a psicanálise, incrivelmente, apesar de toda a indocilidade de Freud, que tantas vezes é celebrada (e até forçada), parece muitas vezes ser extremamente conservadora diante de certas selvagerias.
Nós ainda aprofundaremos mais e analisaremos a sobredeterminação para o fim deste “braço” do Espaço, na divisão que propus do nosso estudo sobre o acaso. Antes disso, contudo, há questões que se impõem. Costa e Gomes (2017) já nos mostraram porque a noção de determinismo psíquico era necessária para Freud. Mesmo assim, se a sobredeterminação se impõe como um conceito importante, como o “Vocabulário” de Laplanche e Pontalis (1997) atesta, por que ele parece não ter um lugar mais “oficial” nos escritos de Freud? Que determinismo era esse? A que Freud está se referindo ao fazer uso dessa expressão? Temos uma adesão real de Freud ao seu contexto científico, ou algum tipo de adequação terminológica? Enfim, uma análise dessas indagações é essencial para pensarmos na possibilidade do acaso na psicanálise.
Freud, um homem do seu tempo? Esta, certamente, é uma tricky question, uma questão capciosa. Há muitospormenores na tentativa de resposta, mas é preciso uma investigação dessas perguntas para podermos ir encontrando as “brechas” que podem nos permitir levantar as hipóteses sobre o acaso na psicanálise.
Outubro, 2023.
REFERÊNCIAS
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[1] Luca Signorelli, pintor renascentista. Freud se esqueceu do nome, e sua memória tentava insistentemente se lembrar com as alternativas Botticelli e Boltraffio. São nomes que vêm à nossa consciência, mas que sabemos que não são os corretos, mesmo que não nos recordemos do nome que buscamos. Ou seja, é diferente da ignorância, quando não se sabe o nome de fato. É “a presença de uma ausência”, para utilizar a bela expressão cunhada por Garcia-Roza (1998, p. 172), quando nos ensina sobre o tema. [2] Verdrängung, termo alemão que Freud usa, majoritariamente, para o seu conceito, um dos que trazem grande confusão em relação às traduções brasileiras. A edição standard que me utilizo aqui traduz como “repressão”, que eu continuarei usando, ao invés do mais “aclamado” “recalque”, vindo, obviamente, da tradução francesa, que parece termos adotado sem levar em conta a diferença de idiomas, uma importação de problemática, como muito bem colocou Souza (2010), ainda que nenhum desses termos seja, de fato, uma boa tradução para a ideia do conceito que visa repelire manter algo afastado da consciência por uma força (FREUD, 1915a/1996), como da água pelo movimento do navio, sem indício de para onde seria este deslocamento (SOUZA, 2010). Concordo com o que Mezan (2006, p. XVII) escreve: “em português, ‘recalque’ significa simplesmente o ato de calcar de novo, de pisar aos pés, enquanto ‘repressão’, segundo a lição de Aurélio Buarque de Hollanda, tem uma gama de significações muito mais afim do conteúdo de violência que, em nosso entender, é uma conotação essencial do conceito freudiano”. Além disso, a tradução de Paulo César de Souza também opta por “repressão”, que faz parte da visão que o germanista tem sobre o texto de Freud que eu acho essencial, pois é livre de ideologias, visto que o autor não é um psicanalista e aborda o texto de Freud sob sua “letra alemã” realmente, como pode ser visto em seu livro sobre as traduções de Freud (SOUZA, 2010). Aliás, o mesmo autor lembra que o próprio Freud sugeriu o termo repression (repressão) como alternativa para traduzir o seu Verdrängung para o inglês. Para os textos pesquisados e citados literalmente que usam o termo “recalque”, manterei a escolha dos autores; porém, o esclarecimento já está feito. Como o conceito não faz parte dos principais debates aqui, não irei alongar essa questão (mais ainda). Meu leitor pode encontrar bastante literatura sobre, além da já citada: Hanns (1996, p. 355-367), Laplance e Pontalis (1997, p. 430-435), Garcia-Roza (2000b, p. 164-206), todas essas “contra” a minha posição adotada aqui. Além, é claro, do texto do próprio inventor (FREUD, 1915b/1996). [3] Em “A interpretação de sonhos”, Freud (1900b/1996, p. 432) fornece uma explicação bem diferente para o fenômeno que se segue aqui. Ele diz que a convicção, em um sonho, de que já se esteve anteriormente em um lugar, significa que “esses lugares são, invariavelmente, os órgãos genitais da mãe de quem sonha; não existem de fato, nenhum outro lugar sobre o qual se possa asseverar com tal convicção que já se esteve lá antes”! [4] Não vou explicitar todo o desenvolvimento da noção de equação etiológica, pois o objetivo, ao abordar este tema, é fazer uso de como Freud lida as causas das neuroses, não quais causas são (isso, inclusive, está bem longe dos objetivos aqui). Para uma visão panorâmica e muito rica desse processo, eu acho o artigo de Winograd (2007) ótimo. [5] Não é o caminho que seguirei aqui, mas é importante destacar estas filiações de Freud, que, inclusive, neste campo do Espaço serão importantes para nós. Laplanche e Pontalis (1997) apontam esta concepção genética presente em vários momentos, mas, como toda a escola francesa, destacam que o fundamento da fixação consiste de momentos originários de inscrição de representações no inconsciente, o que leva a constituição da própria pulsão (instinto, como prefiro utilizar), ou seja, longe da biologia. É um assunto polêmico, muito interessante e também importante. Como não importa para mim, em relação aos objetivos aqui, é claro que não vou me envolver nessa contenda, ainda que eu reitere a pequena discussão sobre a afirmação de Lacan (1985) destacada acima: Freud não usava as palavras por acaso. Por exemplo, o amplo debate biológico em “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920/1996) não tem, então, nenhuma relação com o tema? Assim, é absurda a negação do apoio que Freud teve na biologia que vemos massivamente, curiosamente, por influência da escola francesa, como se ela ditasse a “verdade” da psicanálise, como abordarei ainda em outros textos. [6] “O God, I could be bounded in a nut-shell, and count myself a king of infinite space, were it not that I have bad dreams”. “Hamlet, prince of Denmark”, Ato II, Cena II. Tradução minha. O meu uso deste trecho da mais longa peça de Shakespeare, é diferente do que Hawking (2016, p. 75) faz.