Os limites do corpo
- Juliano Corrêa
- 26 de set.
- 5 min de leitura

“Amadeus”, do genial cineasta Milos Forman, é um dos melhores filmes que eu vi na vida. Conta a história de Mozart e a relação/rivalidade que Antonio Salieri tinha com ele. Salieri era o compositor da corte de José II, arquiduque da Áustria, foi bem famoso em sua época. Parecia satisfeito com a sua vida até o aparecimento de Mozart gerar uma inveja doentia que conduz os acontecimentos do filme. Essa história é fictícia: deriva das peças de teatro de Alexander Pushkin e de Peter Shaffer, não há dados que confirmem sua realidade. Mas isso não importa: a história é ótima, o filme é maravilhoso, e é nele em que eu me baseio agora para dizer o que eu quero.
Para Salieri, Mozart, era um instrumento de Deus, tal sublime era a sua música. Com isso, ele rompe a relação com Deus, decidindo exterminar a sua “criatura predileta”. Seus planos não saem perfeitamente como planejados, mas suas maquinações levam Mozart à morte. O que é mais interessante é que Salieri não culpa Deus por ter dado o talento inimaginável a outro, e não a ele: a mágoa com Deus é por ele ter instalado o desejo. Salieri diz: “se Deus não queria que eu fosse o seu instrumento, ok, mas então por que colocar em mim o desejo?”. Essa é uma interrogação bastante profunda.
Juan-David Nasio escreveu uma frase bem bonita e significativa: “os limites do corpo são mais estreitos que os limites do desejo”. Estava falando daquele momento do fim do complexo de Édipo, quando o superego se estrutura e no qual, de certa forma, a criança se torna apta para a “vida em sociedade”. Ocorre o segundo momento da repressão, a amnesia infantil, a vergonha e o asco por atividades antes prazerosas e, mais importante, a internalização da lei. Isso significa o aprendizado interno de que não dá para ter tudo o que se quer, ou seja, há um limite. Esse limite é do corpo, da ação, pois o desejo em si desconhece os limites. É como se houvesse um descompasso natural entre o que se quer e o que se pode. Para a maioria, pelo menos.
Eu sou muito identificado, e tenho falado disso bastante ultimamente,[1] com o que Thomas Ogden denomina de “psicanálise ontológica”, que tem um de seus maiores representantes em Winnicott. Nessa abordagem, é central a ideia do vir a ser, do continuar sendo. Isso pode transmitir um entendimento muito errado, tipo de uma pegada “coach”: você pode mais, você pode (conquistar) tudo o que quiser; se não está conseguindo, é porque você está com alguma barreira imaginária que impe um voo mais alto (desejado). Daí vai para meritocracia e essa merda toda.
Claro que eu entendo, concordo e aplico na minha prática que muitas pessoas acabam, por suas inibições e neuroses, ficando bem abaixo de suas possibilidades, poderiam fazer muito mais, irem muito além. O trabalho psicanalítico vai nessa direção: liberar o indivíduo de suas amarras para que ele possa consolidar tudo o que pode ser. Só que, da mesma forma, existem as situações em que não se vai além não por inibições ou coisas do tipo, mas porque se tem um limite das capacidades mesmo. Aí pode haver uma complicação.
O “vir a ser”, o “ser o que se é/pode ser” da teoria winnicottiana, aponta para o gesto espontâneo. Refere-se a um ser verdadeiro, uma vida que é sentida como viva, e um ser que se sente como real, presente e útil ao mundo que o rodeia, mundo este que acolhe o seu gesto, gerando uma implicação de pertencimento. Não tem a ver com “ultrapassar limites”. Há sim limitações. Existem coisas que podemos ter o maior desejo, as mais “brilhantes” ideias, mas que simplesmente não somos capazes de realizar. Mozart escreveu sua maravilhosa sinfonia 25 (uma das duas únicas sinfonias dele que são em tom menor, ambas em sol), que abre o filme de Milos Forman, absolutamente magistral, com 17 anos. Uma vez eu li um analista musical dando ênfase a isso, escrevendo em caixa alta, DESESSETE ANOS, e perguntando: “você, leitor, o que você estava fazendo quando tinha 17 anos?”. Eu mesmo nem vou dizer o que eu estava fazendo... até porque é normal passar vergonha frente a Mozart.
O “ser verdadeiro” é atingir o máximo que se pode da sua vida real, daquilo que se pode ser em determinado momento, pois tudo vai sempre mudando. E não há dúvidas de que muitas pessoas ficam aquém do que podem ser, justamente aí que entra a análise; contudo, há um limite. O limite é infinitamente variável de pessoa para pessoa, mas ele existe.
Essa conversa de a pessoa ter condições “ilimitadas”, que eu chamei propositalmente de coisa de “coach”, é jogar para a torcida. É passar aquela imagem, absolutamente falsa, de que se acredita no potencial humano e tal. Isso conquista, de fato, muita gente, pois elas se sentem especiais, “invencíveis”, e, por consequência, passam a idolatrar quem acredita nos seus potenciais e as fez acreditar que elas possuem o que nem sonhavam. Até a hora que quebram a cara. E quebram pra valer. Mas os gurus de araque contemporâneos não estão nem um pouco preocupados com isso. E, vamos combinar, isso é extremamente perigoso.
Talvez você possa estar desiludida agora, pensando que então a vida é isso aí, essa mediocridade (no sentido de mediano), que não vá conquistar a felicidade. Eu entendo, mas você estaria errada de pensar assim! Saber/reconhecer os limites não é a derrota em direção à uma vida sem graça; bem pelo contrário! É a chance de uma vida verdadeira e própria, o que pode, talvez, abrir caminho para a prosperidade real. A felicidade é um tema muito complexo (e pessoal), falei sobre isso,[2] mas podemos concordar que não é, salvo raríssimas exceções, como nos contos de fadas, uma plenitude. Dessa forma, que foi como Nasio colocou, os limites teriam seu valor de levar para, feliz ou não, a realidade. Eu acho extremamente difícil (e doloroso geralmente), mas é preferível viver sempre em uma fantasia? A felicidade verdadeira parece ser encontrada nas coisas simples: são as que podemos fazer (e podem dar muito prazer!). Ainda mais importante que tudo, são as de verdade.
Eu já citei em outra crônica um disco muito especial do necessário Lou Reed, “Magic and Loss”.[3] Na música que dá título ao álbum, ele faz uma metáfora da vida com o passar pelo fogo para chegar na luz (não é nada “alegre” ou espiritual como pode parecer, é bem “terreno”): “quando o passado faz você rir e você consegue saborear a mágica que permite você a sobreviver à sua própria guerra, você descobre que aquele fogo é paixão, e há uma porta ali na frente e não um muro”. A ideia é de que a vida é difícil, mas pode valer a pena (sem nada de contos de fadas). Só que ele também aborda o nosso tema de agora: “dizem que nenhuma pessoa pode fazer tudo, mas você quer na sua cabeça, mas você não pode ser Shakespeare e não pode ser Joyce, então o que resta?”. Desejos grandiosos... Não é para ser desespero, nem o fim de tudo, essa é a lição. E ele coloca isso de uma forma muito bonita: “há um pouco de mágica em tudo, e então alguma perda para manter o equilíbrio das coisas”. Não parece ser assim mesmo que acontece?
Dostoiévski, no fim de “Noites Brancas”, escreve: “Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?”. É, aí temos de falar mais sobre isso...
Setembro, 2025.
