Eu sou um fã declarado de notas de rodapé. Não é por uma questão estética, de achar bonito, nem tenho opinião formada sobre isso. É por uma razão que eu acho muito importante, e que leva para outros questionamentos que também julgo tão importantes quanto.
O meu “fascínio” pelas notas de rodapé começou há tempos, por causa do meu orientador de mestrado, Dr. Nedio Seminotti, uma pessoa admirável. E ele tinha argumentos para esta indicação que fazia. Aqui já fica situada uma diferença clara entre que tipo de texto se está escrevendo para o uso das notas: se é um escrito técnico, ou de literatura geral. No segundo caso, geralmente as notas são colocadas pelo editor ou tradutor, são explicativas por algum motivo. Às vezes, demais. Eu chegava a ficar até incomodado com as notas dos meus livros do Machado de Assis (são, quase todos, uma “versão escolar”, algo do tipo), que tinham notas como: “note aqui a ironia do autor...”. Ora! Deixa eu mesmo me aperceber (ou não) da ironia! Por outro lado, quando li, há muitos anos também, “A Montanha Mágica”, fenomenal livro de Thomas Mann, senti falta: há várias páginas com diálogos muito longos (e importantes e bonitos, alguns dizem que é o ponto alto do livro) entre o protagonista, Hans Castorp, e seu interesse amoroso, a russa Clawdia Chauchat, em francês! Nenhuma notinha! É assim no original, ficou assim em português (ao menos na edição que tenho). Hoje eu conseguiria ler; naquela época, fiquei só imaginando (e tentando deduzir pelo que tinha antes, entre, e depois). Nem internet tinha para me ajudar (entregando a idade...). Notas de rodapé teriam me ajudado muito a apreciar ainda mais este monumental livro na época... A questão é que quando falamos de um escrito literário, a nota de rodapé pode parecer até ofensiva se for exagerada: a ideia é mesmo deixar o leitor descobrir as coisas, seja por pesquisas, ou pela sua própria imaginação. Notas explicativas podem tirar esta essência que é a abertura para infinitas interpretações e sentimentos, ou seja, pode perder a graça. Já com um texto técnico, é diferente. Ao menos, eu acho que deve ser.
Quando o Nedio lia algo que eu escrevia (pois é óbvio que um orientador lê, de fato, o trabalho do seu orientando, não?) e, por exemplo, eu citava o complexo de Édipo, ele dizia para eu botar uma nota de rodapé com uma definição, sugestão de leitura. Eu citava determinado conceito só porque estava na linha de pensamento, não fazia parte da minha discussão (que, no caso da minha dissertação, era a contratransferência do coordenador de grupos), por isso eu não tinha a mínima preocupação em adentrar qualquer aspecto de tal constructo. Eu ficava furioso com ele (eu era muito novo e estúpido... pelo menos agora eu não sou mais novo); dizia: “mas todo mundo sabe o que é complexo de Édipo!”. Ele, delicada e calmamente (como sempre era), explicava-me que eu tinha de ver o meu trabalho como uma contribuição. Todos sabem (talvez) o que é no público para o qual o meu trabalho se dirigia; porém, ele lembrava: “teu trabalho estará na biblioteca da PUC, disponível para todos; e se alguém de outra área pegar o teu trabalho para ler? Essa pessoa não vai saber o que é, tu deves dar uma explicação para ela, uma indicação de leitura se ela se interessar pelo tema”. Da mesma forma, ele queria (isso eu não fiz) que eu colocasse indicação de página nas citações indiretas. Eu dizia que não precisava pelas regras da ABNT ou da APA (que foi a que usei naquele trabalho), e ele respondia: “eu sei que não precisa, mas se alguém se interessar, aí tu vais fazer a pessoa ler o livro inteiro para encontrar isso? Facilite a vida dela, não custa nada, tu sabes a página”. É por isso, e por várias outras razões, que ele é uma pessoa admirável.
O que eu absorvi (e fui sempre desenvolvendo) desse posicionamento é a ideia de que os trabalhos técnicos têm, necessariamente, um tipo de “função social”, de ampliação do conhecimento. Eu recebi bolsa para fazer meu mestrado (parte dele, e meia bolsa, que é não pagar, o que na PUC é uma enorme ajuda) e meu doutorado, ou seja, fui pago para isso (se o pagamento era justo é outro assunto). Pois bem, minha tese de psicanálise não vai trazer um benefício para a população, como uma pesquisa sobre uma vacina, por exemplo, traz. Eu estou falando de benefício prático mesmo. “Ah, mas eu melhorei, aumentei/modifiquei meu conhecimento e, com isso, sou um profissional melhor e posso oferecer um serviço melhor”. Ok, ainda que mestrado/doutorado, ao menos na minha área, não qualifique ninguém para atuação, é uma formação acadêmica, ou seja, para ser pesquisador e/ou professor (mesmo que alguns programas pouco se preocupem com isso). Se tu queres te qualificar para a prática, vá fazer outra coisa, não um mestrado/doutorado!
Nós, que podemos estudar e, mais ainda, fazer pós-graduação, temos o compromisso de dar um retorno, de dividir o nosso conhecimento, pois fazemos parte de uma parcela muitíssimo pequena da população que tem acesso a esse tipo de ensino no país de iletrados e ignorantes no qual vivemos, onde as pessoas simplesmente não têm acesso ao conhecimento (e, na verdade, historicamente há um projeto para que continue assim). Por mais panfletário que possa parecer, eu acredito nisso. Então, as tais notas de rodapé cumprem essa função (não que resolvam o problema, mas ajudam): de explicar e, talvez mais ainda, indicar e incentivar desenvolvimentos para determinado tema, influenciar alguém para o estudo. No entanto, claro, esse debate vai bem além disso.
Uma vez eu li (não lembro quem escreveu, mas era alguém “famoso”) que quando o leitor não entende o que foi escrito, o escritor fracassou. Faz sentido. Porém, é mais complexo: existem coisas que não entendemos (ou demoramos – muito – para) porque realmente são muito complexas (vide, por exemplo, a mecânica quântica!), ou porque somos burros para entender (é o meu caso, maioria das vezes), mas em nosso campo (e aí estou falando da psicanálise e, em parte, da academia também), parece-me que há algo a mais aí, e que eu sempre achei grave. Vejamos Freud, o exemplo fácil: sua teoria é muito complexa, contudo, seu texto não era. Freud usava palavras simples, de uso corrente, inclusive para nomear seus principais conceitos (há toda a questão da tradução, mas isso tem de ser tratado em outro momento), sua escrita era fácil de ler (isso em alemão; não leio em alemão, mas todos os germanistas e pesquisas confirmam isso), ainda que o conteúdo pudesse trazer dificuldades. Importante: escrever “fácil” não é, absolutamente, o oposto de escrever bem: Freud era um exímio escritor (talvez por ser simples?). Se formos falar de Winnicott então, ele vai bem além na simplicidade de sua escrita, e sendo muito intricado em sua teoria (publicarei uma crônica falando somente sobre ele). Pois eu vejo, desde sempre, várias pessoas (mais de um determinado grupo, mas também é de forma geral) intencionalmente escrevendo “difícil”, como que para se diferenciar. Tipo, querer ser importante, o que significa fazer parte de um grupo: é um círculo vicioso.
Então, escrevem-se artigos (ou dissertações, ou teses) com palavras em outros idiomas, com citações de eventos intelectuais, de conceitos exclusivos, todas as coisas desse tipo sem nenhuma explicação, nenhuma direção para a pessoa que lê possa ter melhor entendimento. Não é o leitor o objetivo? Deveria ser... Mas parece que, na maior parte do tempo, o objetivo é aparecer para os seus “iguais”. E só! Eu sei que o público de revistas especializadas é o público culto que entende (ou finge entender) aquela linguagem. Sei que são pequenas as chances de alguém “de fora” ter acesso (interesse) a esse tipo de escrito. Mas isso poderia ser mudado. Que interesse teria esta pessoa (de fora) em ler algo tão rebuscado que foi escrito (parece) deliberadamente para que ela não entendesse, ficasse à margem? Hoje em dia, todas essas publicações estão disponíveis on-line, bem mais acessíveis para um coletivo muito mais amplo: a nossa linguagem é a maior barreira.
Uma vez, uma pessoa (um idiota, mas não necessariamente pelo que disse, as coisas apenas coincidiram) me disse que isso é assim mesmo, que “nós” temos um conhecimento (e uma linguagem) diferente, adquirida pelas nossas elevadas formações, então, não temos, e nem deveríamos ter, uma comunicação “popular”, devemos mesmo falar de um jeito que só poucos entendem (as palavras não foram exatamente essas, estou traduzindo). Há algo aí muito “anal” (para usar um jargão!): necessidade de reter um conhecimento, na ideia de que isso lhe dá superioridade sobre os outros (será que é por isso que eu disse a vida inteira que idiotas comem merda?). Engraçado é que são estas mesmas pessoas, que promovem um monopólio do conhecimento (mesmo sem ser deliberadamente, por vezes, e sem nem possuir de fato o conhecimento, por outras), que enchem os pulmões para gritar contra a concentração de riqueza e poder, contra o capitalismo, etc. Enfim, a hipocrisia.
Uma coisa importante que quem, por ventura, acabou tendo aula comigo sabe: eu sou totalmente contra baratear o conhecimento (no meu caso, a psicanálise) no mau sentido, que é fazer uma simplificação grosseira de algo complexo que, no fim das contas, vai só prejudicar o aluno no futuro, pois ele descobrirá, geralmente da pior maneira, que seu aprendizado foi rasteiro. Mas isso não quer dizer que não se possa fazer o esforço para falar da forma mais inteligível e simples (no bom sentido) um conteúdo. Eu devo ter falhado, certamente, mas sempre foi o objetivo que persegui, é importante que tentemos ampliar, não fechar o conhecimento.
Acho que é por causa dessas coisas que profissionais “populares”, ou seja, os que escrevem (ou fazem vídeos, etc.) para público leigo, atingindo maior quantidade de pessoas, geralmente são desconsiderados pelos “especialistas”. Então, “pega mal” citar Stephen Hawking, Brian Green ou Carlo Rovelli (vou ficar em exemplos da física...) porque eles são populares, não são exclusivos de uns poucos abençoados (e, nesse sentido, pegaria mal citar Einstein também! Imagine se tivesse internet para ele naquela época!). Eu concordo que alguns desses “famosos” (não estou me referindo aos que citei) barateiam, no mau sentido, seus produtos; mas também acho que muitos “inacessíveis” barateiam da mesma forma: falam de um jeito que ninguém entende (muitas vezes, nem eles próprios) desenvolvendo coisas que não servem para absolutamente nada na prática, servem só para os masturbadores intelectuais. É uma conversa entre surdos: eu falo do que não sei, tu entendes o que não há para compreender; mas se está bonito e exclusivo, está ótimo e ficamos felizes! Ser acessível e baratear (no mau sentido): uma coisa não está ligada com a outra de forma alguma.
Com certeza, isso traz toda uma série de consideráveis questionamentos (para ficar só na nossa área da psicanálise): as instituições e a formação psicanalítica, o acesso ao tratamento psicanalítico, como fica tudo isso? Freud mesmo tinha o desejo (lá venho eu de novo em defesa dele... mas é só quando ele merece) de que o tratamento psicanalítico fosse algo popular, a que todos tivessem acesso, que o governo o ofereceria em prol da saúde da população; deu bem errada essa ideia né! Mas assim como a psicanálise, toda a saúde deveria ser um direito de todos, e não é assim. Teríamos, então, de discutir a mudança da sociedade inteira. Ou seja, o buraco é muito mais embaixo, por mais gritaria que a gente possa fazer. É um caminho longo e difícil e, sem querer ser pessimista, não tenho grandes esperanças nele.
Eu não me eximo, faço parte deste movimento, fui criado profissionalmente nele, mas é importante isso ser discutido e, mais ainda, por pessoas de dentro desse círculo (no caso, das instituições psicanalíticas, nas quais há esse debate, mas extremamente tímido), pois são as que poderiam fazer mudanças efetivas. Baratearmos (e agora, no melhor dos sentidos) o conhecimento que nós poucos privilegiados adquirimos, já pode ser um começo.