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Protocolo Jordan

  • Foto do escritor: Juliano Corrêa
    Juliano Corrêa
  • 6 de jun.
  • 7 min de leitura

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Você conhece (ou, ao menos, já ouviu falar de!), com certeza, Michael Jordan. Não precisa gostar de basquete. Assim como não precisa acompanhar futebol para saber quem foi Pelé, curtir boxe para saber de Muhammad Ali, entender de física para já ter ouvido falar de Albert Einstein. Jordan está nesse patamar: pessoas que, devido aos seus dons e feitos especiais, transcendem sua área de atuação.

Michael Jordan está na história como um dos maiores esportistas de todos os tempos, acumulou recordes e conquistas na NBA, a liga de basquete americana (seis títulos quase consecutivos, os únicos que a franquia pela qual jogou a maior parte da carreira, o Chicago Bulls, venceu), além das jogadas memoráveis que estão eternizadas (eu dou destaque para a cesta do último título da NBA: aquilo é uma verdadeira obra de arte... vou deixar um vídeo disso no fim). Há uma série documental na Netflix, The Last Dance (“Arremesso Final”), que conta a sua história e daquela equipe notável, vale muito a pena assistir. Pois foi ali que eu vi, já há algum tempo, algo que me marcou muito e me fez escrever esta crônica.

O Chicago Bulls havia perdido as finais da Conferência Leste (que são as semifinais da NBA) para o Detroit Pistons nos anos anteriores a conquista de seu primeiro título (quando, finalmente, venceram o Detroit). Os Pistons, que foram bicampeões da NBA naquela época, tinham um time que ficou conhecido como os bad boys. O motivo do apelido era porque, além de talentosos (entre eles estava Dennis Rodman, um dos maiores defensores e reboteiros do basquete, que mais tarde se juntaria a Michael nos Bulls para os três últimos títulos), formaram uma equipe que se destacou pelo jogo físico, agressivo, e muitas vezes violento e desleal.

Para enfrentar o Chicago Bulls, eles desenvolveram o protocolo Jordan, as Jordan Rules (“regras de Jordan”) que consistia em uma série de estratégias defensivas para marcar o gênio do basquete. Como não era nada fácil parar alguém como ele, havia uma última regra que dizia que ele não poderia sair do chão, não poderia saltar, pois aí não havia mais o que se fazer (não por acaso ele era chamado de Air Jordan). Ou seja, falando em uma linguagem bem direta: se nenhuma das táticas de marcação funcionasse, era para descer o cacete nele, parar sua progressão na porrada mesmo. O basquete da NBA é bem mais físico do que o basquete mundial, permitindo mais contato; naquela época, era ainda mais: coisas que hoje seriam punidas com mais severidade, eram “permitidas”. Se você assistir aos vídeos daqueles jogos... Michael Jordan sobreviveu, pois apanhou muito! Jogo sujo, ok, eles eram meio que odiados por todos, mas ganharam dois campeonatos assim, o que mostra que não era violência que eles tinham.

No entanto, foi diferente na temporada 1990-91. Com uma preparação inclusive muscular para poder revidar os ataques físicos, Jordan e seus companheiros derrotaram (de lavada!) os Pistons no quarto ano de disputa entre eles. Fato curioso foi que ao fim do jogo que determinou a vitória dos Bulls, Isiah Thomas (grande estrela do time de Detroit), saiu com seus colegas de quadra segundos antes de o jogo terminar, evitando, assim, de cumprimentar os adversários vitoriosos.

No documentário que citei, Isiah justifica tal atitude dizendo que era assim que as coisas funcionavam na época; Jordan não aceita a explicação, lembrando que nos anos anteriores, por mais dura que tivesse sido a derrota (e em todos os sentidos, pois levou uma surra!), ele, que, como podemos imaginar, odiava perder, cumprimentou seus adversários/agressores. Diz que fez isso “por respeito ao jogo”, e que este “é o espírito esportivo, por mais que doa”. O que ficou na minha memória (é interessante como a lembrança é viva e cria coisas por si, não?) desse momento foi ele dizendo que quando você não cumprimenta seu oponente no fim, você mata o esporte. Mantém o mesmo sentido, né? Se se perde o espírito esportivo, perde-se junto o sentido do esporte. E me traz a ideia de que esse “respeito ao jogo”, o “espírito esportivo” que Jordan ressalta, é o que diferencia um verdadeiro esportista de quem (como eu) só gosta de esporte (talvez, no fundo, goste é de ganhar). É o famoso “(não) saber perder”.

Eu fiquei pensando, por essas curvas aleatórias que nosso (o meu, no caso) pensamento faz, após algumas amargas lembranças numa conversa com uma amiga: esse sentido não seria estendido para todas as outras áreas, para todos os campos da vida?

O cumprimento após a disputa fala em nome de uma ética maior, muito além do ganhar ou perder, muito além de inimizades ou ódios: o (amor ao) esporte está acima de tudo. Quando essa norma é quebrada, a pessoa está fora desse universo. Pode até estar praticando o esporte, como eu jogava tanto futebol antigamente, mas não entendeu, não absorveu, de fato, do que se trata.

Eu acho que falar de “ética” não seria o suficiente: essa palavra está já carregada de sentidos (teóricos também). Eu gosto mais de responsabilidade. Tem um sentido ético, obviamente; porém, traz, para mim, a sensação de algo não vinculado à uma lei por obrigação, mas um nível muito mais pessoal, de pertencimento e bom senso. É certo que isso está posto na ética também, eu só estou dando o destaque para uma parte que não leva em conta o outro ou as consequências. É simplesmente pelo amor ao jogo.

É como a Raposa ensinou ao Principezinho: era responsável pela Rosa, pois a havia cativado (por mais sacana que Rosa pudesse ser!). Ou seja, alguma coisa que está para além do que possa acontecer, dos caminhos que podem ser tomados. Talvez eu esteja falando de algo próximo ao que Thomas Ogden refletiu em Esta arte da psicanálise: “do que eu não abriria mão”. Pois o que Ogden não abriria mão não está relacionado “à moralidade psicanalítica nem a um código ético de conduta”, assim como não é sobre conceitos essenciais à psicanálise; ele está falando de valores que sustentam o fazer psicanalítico: “estou, isto sim, me referindo aos modos de ser e modos de ver que caracterizam a maneira específica na qual cada um de nós pratica a psicanálise”.

Dentre os pontos que o autor destaca, está o “ser responsável”. Ser responsável diz respeito ao psicanalista não se ater cegamente às regras psicanalíticas (geralmente da escola que segue), mas sim focar analiticamente no dilema do paciente. “A responsabilidade do analista não é com a ‘psicanálise’, mas com o bem-estar do paciente”. Também se refere aos aspectos externos da vida do paciente, inclusive os sociopolíticos, grande melindre para um tipo de “psicanalista”. É como Winnicott já disse: “se o rei morre, o analista não fica indiferente”. Ogden também cita a expressão de Borges, instinto ético, para o analista se guiar para fazer o bem (e, claro, não estamos falando aqui do bem no sentido filosófico). Eu gosto muito mais dessa locução, instinto ético: dá mais a noção do que quero dizer com essa responsabilidade natural que vem mais das entranhas! É diferente da tal ética do desejo, que, por mais importante que seja, não é nenhuma lei universal e definitiva de uma ética da psicanálise, né!

Eu vejo nisso tudo a responsabilidade com o cuidado. É o se tornar “eternamente responsável”, frase batida, talvez por ser pouco escutada: realmente, “muitos esqueceram essa verdade”. É fácil se esconder por trás de conceitos, às vezes frágeis, psicanalíticos e, assim, pensar não ser responsável. Para mim, Ferenczi foi alguém rompeu (ou tentou) com isso: preocupação genuína com a eficácia do tratamento e o bem-estar do analisando, ao invés de “ser esperto”, como Winnicott disse, para mostrar aos colegas. Veja o fim que ele teve...

Também penso que isso se expande para a vida como um todo, para todas as relações ditas amorosas, ou seja, significativas. Há de se ter esse instinto ético, responsabilizar-se pelo que foi cativado, o que agora podemos ampliar: ser responsável significando fazer parte daquilo que se ama, seja um esporte, a psicanálise, ou a vida. Se eu disse no início que a falta disso faz a pessoa deixar de ser um esportista, deve também a fazer deixar de ser um psicanalista, assim como deixar de ser... um humano seria exagero? Ok, então, deixar de ser uma pessoa decente.

O jogo (esportivo) pode até ser uma metáfora para a relação analítica e também para a vida (há os que tomem a metáfora com literalidade, o que é totalmente descabido, típico do pensamento psicótico). Logo, vale aquele dito popular: não sabe brincar, não desce pro play. Se o jogo não faz parte de ti, se não consegues te responsabilizar por ele e dar conta de tudo o que vem junto com a brincadeira, não deves jogar (até porque estraga o jogo dos outros!).[1]

Michael Jordan chegou aos seus números impressionantes de vitórias pelo seu talento sobrenatural, mas também depois de encarar, vivenciar na carne (ou seja, responsabilizar-se) suas derrotas tão dolorosas. Claro que as derrotas não são necessárias, mas fazem parte do jogo. Ao abandonar o jogo porque ele não está do jeito que se quer, está se fugindo da responsabilidade de jogar, de forma que não se é mais um jogador.

O protocolo ou as regras Jordan bem que poderiam significar, ao invés daquele monte de agressões que ele recebeu, essa atitude, que é a atitude vencedora, desse instinto ético, no esporte e na vida.

 

 

Maio, 2025.


 

 [1] Aí, talvez devesse se tratar – estou pensando no que Winnicott disse: se o analista não sabe brincar, não está apto para fazer o seu trabalho; se o paciente não sabe brincar, algo deve ser feito que o habilite, e só assim o tratamento pode começar.


 

Aqui, esta cesta histórica: Jordan rouba a bola de Karl Malone e, faltando 10 segundos para o fim do jogo, cruza a quadra para fazer a pontuação do título em um lance absolutamente mágico.






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