Qual a melhor maneira, o melhor texto, para começar a ler Freud? Muitas vezes já me perguntaram isso. Não creio que exista resposta definitiva. Ainda assim, antes mesmo de explorarmos possibilidades, uma coisa já fica bem clara na minha posição: é necessário, para qualquer um que queira entender de psicanálise (e nem estou falando em “ser um psicanalista”), ler Freud. E profundamente, eu acrescentaria. Destaquei o “ler Freud” porque não é ler algum dos tantos comentadores que existem (por melhores que alguns sejam); não, é ler o próprio, de modo a não aceitar passivamente interpretações que todos os comentadores fazem. Se ler em alemão, melhor ainda! Mas aí já é exigir demais (para mim, pelo menos)... O motivo disso é simples: seja qual for o autor ou vertente psicanalítica que mais se goste, todas derivam, de uma maneira ou outra, de Freud, por mais distante que algumas possam ficar. Sem esta base, sólida, não há “entendedor” de psicanálise (muito menos psicanalista). Quando eu dava aula de psicanálise na universidade, eu sempre forçava as alunas a lerem Freud (algumas me odeiam até hoje por isso...): por mais difícil que fosse (e era), é a melhor coisa a se fazer, mesmo que se leia comentadores em paralelo, mas nunca se deve abrir mão de ler o original. Mas então, por onde começar?
Eu sempre soube que vários psicanalistas famosos leram “A interpretação de sonhos” primeiro, e aí foram capturados pela psicanálise. Muitos destes, leram em um momento muito inicial do movimento, não havia a obra toda ainda escrita, o “livro inaugural”, como Freud mesmo chamava, era das poucas mais acessíveis. Quando na faculdade, inspirei-me nisso e quis fazer o mesmo trajeto; parei no início do segundo capítulo (são sete!). Não foi por estar achando difícil: é que eu li com grande afinco, fazendo muitas anotações, as quase 100 páginas do primeiro capítulo para, no início do segundo, ele dizer algo do tipo: “agora, esqueçam todas essas teorias que vimos, pois eu vou falar sobre o que trata o sonho de fato”. Porra, por que não me avisou antes de eu fazer todo o esforço para ler tudo aquilo? Senti-me enganado e desisti. Freud escreveu aquele primeiro capítulo por último, trata-se de uma extensa revisão da literatura dos sonhos existente até então. Inseriu-o como para “defesa” contra críticas que ele já previa (não adiantou muito...). Eu já ouvi que não é a melhor introdução para a psicanálise, ainda que seja o livro mais famoso e importante, visto ser muito longo, difícil, etc. Diz-se, muitas vezes, que outros textos são mais adequados para iniciar, os mais “gerais”, que dão uma visão mais ampla da teoria. Isso tem lá sua razão, mas também pode ser uma armadilha. Vejamos.
As “Cinco lições de psicanálise” são altamente didáticas: são conferências feitas, em 1909, pelas comemorações dos vinte anos da Clark University, nos Estados Unidos, para um público leigo, justamente para apresentar a psicanálise “para o mundo”, por assim dizer, o que faz com que a linguagem seja mais simples (o que não quer dizer que o conteúdo seja!). Freud diz, no caminho para a sua odiada América, que estava levando a peste! É um texto claro, direto, bom de ler; porém, aborda somente uma parte inicial, ainda que de suma importância, da psicanálise. Toda a segunda teoria do aparelho psíquico (id, ego, superego, instinto de morte, etc.) não aparece, pois ainda não existia. A própria primeira teoria ainda está em desenvolvimento, todos os artigos de metapsicologia, por exemplo, ainda seriam escritos. As direções da clínica psicanalítica estavam recém engatinhando (os “Artigos sobre técnica”, e que mesmo eles não definem o tema, só existiriam alguns anos depois). Apesar disso, é ótimo, eu mesmo estabeleci este texto para iniciar meus grupos de estudos por muito tempo, mas é uma visão parcial, ainda que ofereça muitos caminhos a seguir dali, além de ser uma bela introdução a este mundo da psicanálise. Outros desse tipo, são mais abrangentes, por terem sido escritos mais tarde, ainda que talvez sejam um tanto mais difíceis. Por exemplo, pouco antes de morrer, Freud escreveu (e deixou inacabado) o “Esboço de psicanálise”, aí sim, trazendo uma visão completa de sua obra. Este é um texto introdutório? Durante algum tempo, eu achava que sim (por mais que Strachey nos alerte, na introdução da tradução inglesa, que não é!).
Eu tive uma época (muitos tiveram – estão tendo –, não?) que, por necessidade de autoafirmação, considerava alguns textos/autores “ultrapassados”: eu estava em outro nível, só estudava as coisas mais complexas da psicanálise (talvez por isso eu ter sempre adorado metapsicologia), não tinha tempo/paciência para coisas básicas, afinal, não era mais um iniciante, mas alguém já com grande conhecimento psicanalítico. Enfim, esse tipo de baboseira que a gente (eu, no caso) acaba pensando por vezes.
Meu segundo analista é uma grande autoridade em Freud. Uma vez, por circunstâncias especiais, pegamos o elevador juntos após a sessão (ele tinha de abrir a porta do prédio para mim). Naqueles cinco andares que pareceram uns quinze, fomos conversando, e eu falei sobre textos de Freud, algo que havia surgido na sessão (justamente em relação aos grupos de estudo que eu realizava). Em seus comentários, ele citou o “Esboço”, dizendo achar um texto “infernal”. Fiquei estupefato, e pedi confirmação, ao que ele a deu somente com a expressão. Foi uma das vezes que senti mais vergonha na vida, aquela interna, que deve ser a pior (e, talvez, uma das grandes interpretações que recebi – ou seja, interpretações de elevador podem ser importantes!): ele, que sabia termos (em mais de um idioma) usados por Freud em parágrafos específicos de sua obra por tanto que estudou, dizendo achar o livro “infernal”, e eu, um pinto molhado insuficiente, achando-me superior a este tipo de leitura. Um completo idiota.
Eu realmente não lembro qual foi o primeiro livro de Freud que eu li; lembro do que primeiro marcou: “Além do princípio de prazer”. Eu não entendi quase nada, mas adorei! É até o hoje o livro de Freud que mais reli (e, com o tempo, passei a entender algumas coisas). É bem difícil. Naquela época, houve algo, que não foi o conteúdo do texto, pois eu não entendi, que me cativou imensamente (hoje, talvez, podemos chamar de identificação). Claro que, depois de um tempo, eu li “A interpretação de sonhos” inteira (algumas vezes, na verdade... mas nunca mais reli o primeiro capítulo!), e é magnífica! Não por acaso é um dos livros mais importantes do século passado, dos que mudaram a concepção das pessoas sobre si mesmas. Não chega a ser tão difícil; Freud tem outros bem piores nesse sentido (como o que eu “comecei”). Além de ele ser um excelente escritor, o livro é recheado de exemplos de sonhos, tornando-se uma atividade até um pouco lúdica em alguns momentos. O famoso capítulo VII é o mais pesado teoricamente (o VI também é, mas não é famoso). Ou seja, não acho que seja uma leitura assustadora. Será que alguma é? Eu acho que depende muito do contexto (foi como aconteceu comigo – e, para mim, “A crítica da razão pura”, de Kant, é uma dessas que ficou assustadora: que livro do demônio!). Não concordo muito com a ideia de “vamos começar com algo mais ‘leve’ para não assustar”. Ora, se este é o caso, se não assustar agora, vai assustar depois! Por que prorrogar o sofrimento? Ao menos na minha memória, eu iniciei por um dos mais difíceis escritos de Freud, e estou aqui até hoje, sobrevivi!
O que quero dizer, então, é que eu acredito que o melhor caminho para começar a ler Freud é por aquele texto que, pelas mais diversas razões possíveis, convoca-nos. Ou seja, aquele que a gente tem pilha mesmo de ler, pois aí, difícil que seja, a gente encara; por outro lado, aquele “fácil” que vamos ler só porque o fulano de tal disse, tornar-se-á um árduo trabalho pelo simples fato de não fazer sentido íntimo algum. É aquele esquema do “barato que sai caro”. Ler Freud realmente sempre vai ser difícil, pois é sempre novo e instigante, independentemente do livro. Melhor começar por aquele que sentimos que nos toca por algum motivo. A resposta para o título que coloquei nesta crônica (que pode soar sacana, talvez tenha sido de propósito) é: de nenhuma maneira preestabelecida. Claro, os cursos de formação psicanalítica oferecem um roteiro de estudo que somos obrigados a seguir; não é disso que estou falando, mas sim da escolha que fazemos para começar. Ler aquele que caiu em mãos por um acaso pode ser um bom começo também (vai que dá liga)!
Agora, se nenhum texto fizer conexão alguma, talvez se deva desistir de ler Freud e, com certeza, de “ser psicanalista”. Afinal, não há, como parece haver às vezes, nenhuma obrigatoriedade nisso.
Aqui, uma conversa sobre este tema no meu canal do YouTube (também disponível no Spotify (Juliano Corrêa - Psicanalista).