Para mentes poluídas, este título talvez possa dar a ideia errada. Mas se você chegou aqui por causa disso, não desista, siga: talvez você goste.
Eu era muito ativo no CEP de Porto Alegre, onde fiz minha formação psicanalítica. Dentre outras coisas, eu participava de comissões da instituição, dentre as quais, a comissão científica (acho que era esse o nome), que criava os congressos e eventos científicos (por isso mesmo o nome!), mas também além. Nós tínhamos a “Sexta-feira Cultural” (novamente, acho que esse era o nome), na qual convidávamos, na noite de uma sexta-feira por mês, um psicanalista para debater sobre um autor de literatura universal com um especialista nesse determinado autor. Era legal demais: fazíamos decorações e outras coisas referentes ao escritor em questão, era uma atividade com grande espaço para a criatividade. Eu realmente me empenhava nesse trabalho, pois gostava tanto.
De qualquer forma, em um desses eventos (acho que era sobre Érico Veríssimo), o convidado de “fora” foi o professor Sérgius Gonzaga, que havia sido meu professor de literatura no cursinho pré-vestibular. No início de sua fala, ele disse algo que é o que me leva a escrever este pequeno texto: que tinha inveja de quem não tinha lido Érico Veríssimo (“O tempo e o vento”), assim como tinha inveja de quem não tinha lido Dostoiévski (“Os irmãos Karamávozi”), deve ter mencionado algum outro, mas não lembro. O motivo, aí está a melhor parte, é que essas pessoas teriam o indescritível prazer de ler pela primeira vez alguma dessas obras. E elas iriam se deliciar profundamente com esta primeira sensação, única, de estar diante de algo maravilhoso. Da minha parte, “Os irmãos Karamázovi” não me impressionou (tantas outras obras de Dostoiévski eu prefiro...); já “O tempo e o vento”, bah... (para ser expressão bem gaúcha!), que coisa maravilhosa.
Eu lembro das minhas “primeiras vezes”. Eu ainda estava no colégio quando li “Memórias póstumas de Brás Cubas”, o que me fez ler toda a obra de Machado de Assis e, de maneira geral, fez com que eu me tornasse um leitor (e também fosse fazer psicologia! Como já contei em outra crônica[1]). Eu fiquei absolutamente maravilhado com aquilo. Toda a vez que pegava o livro para continuar minha leitura, eu voltava algumas páginas. Não porque eu não lembrasse do que estava acontecendo, mas porque eu não queria que acabasse! (É um livro curto). Eu sabia que ao terminar de ler, não o teria mais. Esse tipo de coisa, de certa forma, abriu um perigosíssimo precedente para mim alguns anos atrás: não terminar livros. Tanto para livros como para filmes, eu sempre tive um princípio: vou até o fim. Mesmo que esteja odiando. O não terminar livros não é algo comum, não é algo que está acontecendo o tempo todo, mas aconteceu algumas vezes nos últimos anos, e tem a ver com o que estou escrevendo, principalmente o início disso.
Um querido amigo uma vez me disse: “não há nada como ler o livro certo no momento certo”. Eu sempre levei isso comigo. Eu reflito muito antes de começar a ler um livro (de literatura, que não é por necessidade, ou talvez até seja......), pois penso qual será o livro certo para aquele instante. Não faz tanto tempo que eu pensei qual livro ler que tivesse a ver comigo; veio-me direto na mente: "O idiota", de Dostoiévski. Fiquei com medo (de não terminar), pois é muito longo (o momento trazia risco para isso). Logo, encontrei um substituto do mesmo autor, bem mais curto, e com o qual rolou grande identificação também: "O sonho de um homem ridículo" (que é fenomenal! A edição que tenho, "Duas narrativas fantásticas", tem também "A dócil", que é tão bom quanto: indico de olhos fechados para você). Eu acho que isso faz toda a diferença para levarmos a termo a leitura com grande prazer. O erro nisso, pode nos fazer desistir. Comigo, o início desses poucos bizarros acontecimentos foi diferente, teve relação com o que estou escrevendo. Eu estava lendo “O castelo”, de Kafka, um de meus autores muito preferidos. Estava antes da metade, quando um pensamento aleatório me veio na mente: depois desse livro, eu só vou ter mais um (ou dois, não tenho certeza) livro do Kafka para ler; aí, nunca mais vou ter um Kafka “novo” para ler. Isso não saiu do meu pré-consciente, e na metade do livro eu parei. Não retomei até hoje. É estranho, né? “Não vou ler mais Kafka para não ter mais Kafka para ler”! Haja análise! (E isso que sou bem analisado......).
Num pequeno desvio dos livros (o que estou falando vale para músicas, filmes, qualquer outra coisa), eu lembro quando comprei “Synchronicity”, o último e mais bem sucedido disco do The Police, a “minha” banda. Tinha músicas que não conhecida, mas outras novidades inesperadas (todas são né) também. “Every breath you take”, o maior hit da banda, abre o lado B do disco. É claro que eu conhecia a música (todo mundo conhece!): eu tinha um disco de greatest hits, com o mesmo nome inclusive, e também tinha show da última turnê que eles tinham feito em uma fita VHS que eu pirateava em uma loja em uma galeria (que não consigo lembrar o nome!) no centro de Porto Alegre. Mas ouvir “Every breath you take” no seu “lugar original” foi algo fantástico, novo! Eu pensava coisas do tipo: então, é aqui que ela surgiu, esse é o seu lugar!
Da mesma forma, voltando aos livros, eu lembro quando li “Dom Casmurro” pela primeira vez: estava chegando em Tramandaí (praia do Rio Grande do Sul) numa manhã de um sábado de carnaval, de carona com o meu querido tio Adelino, chovendo (como parece acontecer em todos os carnavais lá). Eu estava em uma situação difícil, meu pai estava muito doente (e, de fato, veio a falecer), então, tudo estava meio “no extremo”. Eu ainda ficava postergando o fim do livro, como o outro de Machado que citei. Lembro até hoje das gotas de chuva que ficavam na janela do carro enquanto eu tentava (não) terminar o livro. A história ajudava nesse clima né! Toda aquela melancolia de Bentinho com a sua infernal (e adorável) Capitu. Mas a questão é que eu li “Dom Casmurro” mais umas duas vezes. Eu obrigava minhas alunas na UNOESC a lerem esse tipo de livro para fazerem um dos trabalhos de psicanálise que contavam a nota do semestre. Em umas duas ocasiões (acho), foi Machado. Muitas delas me odiaram por isso, ainda que algumas dessas até acharam legal depois ( porque me falaram, deve ter uma legião silenciosa que me odeia até hoje!). Como não sou um canalha, eu também lia o livro para poder avaliar os trabalhos (afinal, professor tem de fazer isso, né?). E, a cada vez que li, certamente eu lembrava da chuva de Tramandaí, assim como de algumas passagens do livro que já julgava “esquecidas”, mas tudo isso era com um sorriso de imenso prazer, pois eu estava descobrindo coisas novas (quem estuda Freud, por exemplo, sabe muito bem do que estou falando). O livro era (e continua sendo) exatamente igual; porém, eu mesmo já não era, portanto, tudo era diferente...
Portanto, talvez isso queira dizer que nós estamos sempre experimentando uma primeira vez, fazendo (lendo, ouvindo, vendo) algo, mesmo que já tenhamos feito! Não existe reprodução, o instante é sempre único (como nós também somos diferentes a cada momento), assim, tudo é sempre novo. Por isso gostamos (nem todos, ok, eu que gosto) de ver filmes de novo, ler livros de novo (música eu nem vou colocar nessa lista, o que é algo interessante também, parece que ela se diferencia). O primeiro beijo é inesquecível, mas beijar a pessoa amada repetidamente não é sempre novo e excitante? Nada se repte. Isso já pede outra reflexão e de outro tipo, vou escrever um texto psicanalítico em breve sobre a repetição, pois é tema essencial para mim. Ainda assim, há algo especial na primeiríssima vez.
Então, para você que está lendo isso e, por ventura, carregue culpa por não ler (ou ver, ou ouvir) os clássicos ou algo do tipo (como eu nunca vi “Top Gun”!!! kkkkkk), não fique triste, fique feliz! Tens a oportunidade, que outros não têm, única e especial, de experenciar algo realmente extraordinário.
Março, 2023.