Por que se analisar? Por que procurar uma pessoa (de confiança) para fazer psicoterapia? Pode ser uma pergunta sem sentido aparente, mas eu acho que existem elementos importantes a se pensar sobre isso.
Em uma das minhas primeiras aulas na faculdade, uma colega perguntou para a professora se seria interessante para nós, agora estudantes de psicologia, iniciarmos um tratamento psicoterapêutico. Ela respondeu que todo mundo deveria se tratar, no sentido de que a psicoterapia te deixaria uma pessoa melhor, assim tudo ficaria melhor, etc. Eu tomei isso quase como um mantra: todos devem se tratar! Então, eu pregava a favor da psicoterapia para todo mundo que eu conhecia (um chatão né!), pois era a solução para qualquer problema. Ok, eu tinha muito pouco de pensamento próprio nessa época, mas, pelo menos, não era hipócrita: eu mesmo procurei tratamento (e que me foi de muito valor) durante a faculdade.
Quando já estava bem para o fim do curso, travei conhecimento com uma menina muito querida, muito interessada por psicologia também, e que trabalhava na área da saúde em uma atividade possivelmente muito estressante. Um dia, ela me perguntou: “tu achas que eu devo me tratar?”. A minha resposta automática, “é claro que sim, todos devem se tratar”, travou. O motivo: apesar de sua ocupação difícil, ela era uma das pessoas mais “de boas” que eu já havia conhecido (ao menos, até onde eu via). Na hora, eu pensei: não vejo motivo para tu te tratares; na verdade, só pode piorar! A minha lógica foi: se ela estava tão bem consigo mesma, para que ela iria fazer terapia? Extremamente confuso, e até decepcionado, com as minhas próprias fés inabaláveis, respondi: “não sei”.
“Olha só! Juliano está falando contra a análise!”. Claro que não é isso. Inclusive, quem teve contato comigo quando eu dava aula sabe que eu fazia quase “campanhas” para que as alunas se tratassem, mas isso era muito direcionado para as que estavam atendendo pessoas, ou seja, era uma necessidade (e algumas outras que eu achava que precisavam mesmo!). Só que isso é diferente de postular análise indiscriminadamente para toda a população. E eu não estou falando dos critérios de analisabilidade, que podem ser importantes; não, eu estou pensando mais no que Winnicott fala em um pequeno (e sempre grande!) artigo chamado “Os objetivos do tratamento psicanalítico”, de 1962. Bem no início, ele diz que, ao fazer psicanálise (como analista, no caso), ele tem os objetivos de “permanecer vivo, permanecer bem, permanecer acordado”, mais ainda, “ser eu mesmo e me comportar”. Que ao começar uma análise, ele visa “continuar com ela, sobreviver a ela, e a terminar”. Ainda que pareça meio bobo, isso é uma grande aula para um analista, mas aí já fugimos do assunto, ainda que seu desejo de terminar a análise seja crucial para o que estou abordando. É que na sequência, ele escreve: “análise pela análise não tem significado para mim”. (Veja quanta coisa se tem em apenas algumas linhas do seu texto!). É essa frase que me fez escrever esta crônica.
É que eu sempre tive (continuo tendo) a convicção de que a psicanálise tem como objetivo principal e constituinte, por mais que possa servir, e com muita excelência, para outras aplicações, a clínica. Psicanálise é um tratamento psicoterapêutico (o próprio Freud definiu isso). Sendo assim, incomoda-me (para não usar um palavrão) profundamente a ideia de fazer análise para “se conhecer melhor”, como se isso, por si só, fosse tornar a pessoa mais plena ou mais feliz. Querida(o), acredite, tu não vais encontrar coisas muito boas nas tuas “profundezas”; é muito mais provável encontrar justamente o que tu mais gostarias de esconder sobre ti mesmo. Claro que têm os resultados bons, mas isso é só no fim: até lá, é "uma longa e sinuosa estrada", e bem sofrida. É por isso também que me incomodo (vamos manter essa palavra educada) com certo entendimento de que a psicanálise é uma “arte”. Ora (e agora eu estou me segurando no limite para não descambar em impropérios!), tudo bem que há uma técnica e tudo mais, mas, nesse sentido, análise não é uma coisa divertida. Tipo: ah, que legal, vou me conhecer melhor (como se tu fosses grande coisa). Quer fazer uma jornada para se conhecer? Faça um retiro espiritual, vire budista. Não tenho nada contra isso (também feito da maneira adequada), mas psicanálise não é filosofia de vida (nem filosofia de qualquer tipo), é um tratamento psíquico.
“Tá, Juliano, então, por que a gente faz análise?”. Porra! (Não me segurei mais). Porque a gente sofre!
Se você acha legal fuçar (na maior parte das vezes, no mau sentido – e, o que é ainda pior, ser fuçado por outra pessoa) nas entranhas da sua vida, durante muito tempo e pagar muito caro por isso, bom, aí sim eu acho que você precisa de análise, pois há um masoquismo assustador aí. Só se procura análise (e se gasta a enorme quantidade de tempo, energia e dinheiro) porque se sofre! É só assim que ela funciona verdadeiramente. O “conhecer a si mesmo” (vamos deixar isso para Sócrates – não o jogador de futebol, o filósofo) é uma consequência necessária (e nem sempre agradável) para livrar a pessoa do sofrimento, poder ter uma vida mais verdadeira, mais plena, mais perto do que ela pode ser. Não é um exercício existencial! Por isso que a pouca preocupação que temos com os resultados dos nossos tratamentos me apavora. Certamente, é algo muito difícil de se fazer pela natureza de nossa ciência, mas são muito tímidos (para não dizer que há uma completa falta de atenção para isso) os movimentos nessa direção, o trabalho de se fazer pesquisa sobre a eficácia da psicanálise. É nesse sentido que parece, muitas vezes, que estamos mais interessados na “arte” da psicanálise: apresentam-se casos clínicos mostrando situações interessantes e (sempre) as grandes sacadas e intervenções do analista (todos os erros ficam de fora geralmente). Ótimo, lindo, mas essa pessoa que está sendo objeto da apresentação está tendo uma vida melhor por causa da análise? Não temos ideia. É mais objetivo mostrar os procedimentos do analista para incrementar nossa “arte” ou saber se todas as perspicazes técnicas utilizadas deram algum resultado de fato? O cuidadoso processo de alta não é suficiente para termos esses dados. É só então para o analista se mostrar muito astuto para seus pares? Também por isso que eu sou crítico das análises longas demais, acho uma distorção da ideia de que a “análise sempre continua”, no sentido de continuarmos nos questionando. Sempre existirão problemas, conflitos a se resolver, afinal, a vida está constantemente em movimento. O nosso trabalho ainda é lento, precisa-se de muito tempo (que varia de caso para caso), mas às vezes eu sinto que este tempo é estendido ao infinito. A análise tem de ter o objetivo de terminar. Como muito bem colocou Winnicott, a pessoa se trata para viver, não deve viver para se tratar: a verdadeira terapia é a vida. E o nosso trabalho como analistas é tornar isso possível para as pessoas que confiam tanto tempo e dinheiro em nós. Não é nada fácil. Mas também, com certeza, não é uma “arte” no sentido de um exercício de autoconhecimento.
Inclusive, na psicanálise existe (em uma linhagem de formação psicanalítica) uma coisa chamada “análise didática”. É claro que a análise de um analista tem um valor de formação que outras análises, obviamente, não têm: é a única oportunidade de se ver como uma análise funciona realmente, e como trabalha um analista. É imprescindível. Você deixaria um cirurgião que nunca entrou em um bloco cirúrgico lhe operar? É o “didática” no nome que é horrível neste caso: o futuro analista não vai para a sua análise só por uma obrigatoriedade de sua formação (normalmente, já está em análise antes); se for assim, não será um analista. Ele vai (surpresa!) porque ele sofre! Todo o analista já sofreu (ou volta a sofrer) psiquicamente, e isso é, de certa forma, seu trunfo. Como tratar o sofrimento psíquico dos outros se eu não faço a mínima ideia do que é isso no meu íntimo? Neste ponto, somos diferentes de outras áreas de atuação: um cirurgião cardíaco não precisa ter tido problemas do coração (literalmente) para ser um bom cirurgião; um dentista não precisa ter tido sua boca infestada de cáries para ser um bom dentista. Mas uma analista que que não sofreu, tomou conhecimento de seu sofrimento e fez algo com isso, não será um analista (na verdade, eu acho que ele nem se candidata a ser um humano!).
A professora que disse que todos deveriam se tratar é a mesma que citei em outra crônica,[1] que disse que nós procurávamos o curso de psicologia para nos tratarmos (foi tudo na mesma primeira aula). Como já expliquei lá, eu concordo com a segunda afirmativa, o que é reforçado aqui. A psicanálise tem muito glamour sedutor: o divã, a figura enigmática do analista, o conhecimento mágico de desejos alheios. Está na cultura. Isso não é bom. Não vamos romantizar. Psicanálise é um tratamento psíquico para quem sofre. É por isso, e tão somente por isso, que se faz análise. Análise pela análise realmente não faz sentido nenhum.
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